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Argentino defende presidencialismo forte e reeleição indefinida

Mesmo há mais de três décadas morando na Inglaterra, a cada manhã o pensador Ernesto Laclau cumpre o rito de ler os principais jornais argentinos para acompanhar de perto a política nacional. “A Argentina está evoluindo rumo a uma polarização dentro de um sistema institucional”, disse nesta entrevista.

Com um olhar macro sobre a situação latino-americana, e com um afã polêmico, advoga por “presidencialismos fortes” para enfrentar os avanços conservadores através da “parlamentarização do poder”. O cientista político argentino afirma, ainda, que, hoje, é partidário da reeleição presidencial indefinida na América Latina.

"Não (sou a favor) de que um presidente seja reeleito vitaliciamente, mas de que possa concorrer. Por exemplo, pelo presente período histórico, sem (Hugo) Chávez o processo de reforma na Venezuela seria impensável", defende. A entrevista é de Javier Lorca e publicada no jornal Página/12.

Página/12: As identidades políticas hegemônicas hoje na Argentina estão configuradas em torno do eixo kirchnerismo-antikirchnerismo? Por quê?
Ernesto Laclau: Não creio que as identidades tenham chegado a se constituir em torno desse eixo, porque o kirchnerismo ainda não conseguiu criar uma fronteira interna na sociedade argentina que divida o campo popular do outro campo. O peronismo clássico dividia a sociedade nesses termos, o chavismo na Venezuela e Evo na Bolívia dividem as pessoas nesses termos.

O kirchnerismo não chegou ao ponto de cristalização de uma identidade popular que divida a sociedade dessa maneira, mesmo que haja indícios de que o processo esteja avançando nesse sentido. Mas é um processo que não está fechado.

Página/12: Por que estão se produzindo esses indícios?
Ernesto Laclau: Em que sentido?

Página/12: Por exemplo, alguns discursos relacionam esse processo com uma vontade belicosa do kirchnerismo, outros…
Ernesto Laclau: Essa ideia de uma vontade belicosa do kirchnerismo se liga à ideia de que há um autoritarismo kirchnerista. É um discurso frequentemente apresentado pela direita, a ideia de que há uma tendência nos regimes populistas latino-americanos. Minha resposta é que, se há um perigo de deriva autoritária nos regimes políticos latino-americanos, essa deriva não está dada pelo populismo, mas pelo neoliberalismo.

Um regime autoritário foi o de Pinochet, no Chile, que foi a forma para que o programa de ajuste dos Chicago Boys fosse implantado. Um regime autoritário foi o de Videla [na Argentina], a condição necessária para aplicar o plano de Martínez de Hoz. É aí onde é preciso buscar o perigo do autoritarismo, e não nos populismos, que foram regimes que procuraram incorporar as massas e não afetaram as bases do sistema institucional.

Página/12: Para onde acredita, então, que caminha o processo político nacional?
Ernesto Laclau: O espectro político tende à polarização, mas a polarização não encontrou seu limite nem sua forma definitiva. A Argentina está evoluindo para uma polarização dentro de um sistema institucional.

Pode parecer um pouco otimista, mas penso que é isso que está acontecendo. Logo se está chegando a uma situação de um país visível, com um sistema político relativamente estável, no qual haverá uma centroesquerda e uma centrodireita. De um lado e de outro haverá também uns louquinhos marginais.

Por centrodireita estou pensando que se poderia criar um espectro opositor viável eleitoralmente, uma cooperação entre – menciono nomes tentadores, só como exemplo – Ricardo Alfonsín e Hermes Binner. Me dirão que Binner não é de direita; claro que sua ideologia não é de direita, mas muitas vezes uma força política pode exercer um papel estabilizador dentro do estatus quo mesmo que sua ideologia não corresponda exatamente.

Por exemplo, o Partido Comunista fazia parte da União Democrática de 1946. Na Argentina atual penso que a direita galopante não vai poder apresentar uma chapa política viável, então pode mover seu apoio para uma formação de centrodireita. Mais à direita, pode haver figuras como Lilita Carrió ou do tipo, que vão representar um papel marginal, sem significação.

Página/12: E do outro lado?
Ernesto Laclau: Na centro-esquerda, a única opção viável é o kirchnerismo. Com uma transversalidade real e crível – não como a que levou a Cobos – o kirchnerismo pode ser um fator aglutinante. Assim como com Carrió à direita, também haverá chapas de esquerda aberrantes.

Agora, se chegássemos a um sistema político com uma força de centroesquerda e uma força de centrodireita, que configurassem o espaço do poder, a Argentina poderia ter um sistema institucional bastante estável. Sempre os sistemas políticos oscilam entre as forças institucionalistas, que tendem a manter as relações de poder, e as forças de mudança. Se a centrodireita vencer as próximas eleições, nesse caso as forças do status quo terão predominado sobre as forças da mudança, que foram representadas pelo kirchnerismo.

Página/12: Por que defende que os presidencialismos fortes são condição necessária para a mudança na América Latina e, por outro lado, que a parlamentarização do político é uma modalidade de intervenção conservadora?
Ernesto Laclau: O antipersonalismo foi uma linha de apelação à direita. Foi a linha que se opôs a Yrigoyen e a Perón. Há uma tradição pela qual o antipersonalismo e o antipopulismo são as formas através das quais a direita vai se consolidando.

O problema fundamental é que, quando se dá uma ruptura, necessita-se de uma cristalização simbólica, ideológica, que não está dada pelas meras forças que participam. Se pensamos na crise da IV República na França, aí havia um sistema parlamentar onde as elites haviam levado o país à beira do caos e se necessitou da cristalização simbólica em torno da figura de De Gaulle para fundar a V República e um sistema viável de poder; aí o momento do personalismo exerceu um papel decisivo na solução da crise.

Na América Latina creio que vamos ter regimes presidencialistas fortes como uma possibilidade de mudança, porque qualquer regime que seja uma democracia diluída em uma pluralidade de frações é incapaz de, como diriam os ingleses, delivering the goods (Nota da redação: entregar a mercadoria, cumprir os compromissos).

Todo regime político democrático está em um ponto intermediário entre o institucionalismo puro, que seria a parlamentarização do poder, e o populismo puro, que seria a concentração do poder nas mãos de um líder. Sempre esse espaço intermediário vai ter que jogar nas duas pontas. Mas, na América Latina, mais que na Europa, o momento presidencialista, o momento populista, vai ser mais forte que o outro.

Página/12: Como concilia esta aposta no presidencialismo com os ideais pluralistas da democracia, que parecem melhor representados pela diversidade de vozes admitidas pelo Congresso?
Ernesto Laclau: O pluralismo pode se dar em nível das bases democráticas de um sistema, mas esse pluralismo não necessariamente coincide com o pluralismo do parlamentarismo, porque um poder parlamentar pode ser um parlamentarismo baseado em formas clientelísticas da eleição de deputados ou senadores.

Essas formas clientelísticas podem ser muito pouco democráticas. Um exemplo: se existe uma demanda concreta de um grupo local sobre uma questão como o transporte e a municipalidade a nega, há uma demanda frustrada. Mas se as pessoas começarem a ver que há outras demandas em outros setores e que também são negadas, então começa a se criar entre todas essas demandas uma certa unidade e começam a formar a base de uma oposição do poder.

Em certo momento é necessário cristalizar essa cadeia de equivalências entre demandas insatisfeitas em um significante que as significa como totalidade: é o momento da ruptura populista, quando a relação líder-massa começa a se cristalizar. Mas há todo uma linha intermediária que é o momento parlamentar. Esse momento muitas vezes opera sobre bases clientelísticas e pode tratar de interromper a relação populista entre massa e líder.

Quando isso ocorre, temos um poder parlamentar, antipersonalista, que se opõe à mobilização de bases. Por isso, não é preciso pensar que a parlamentarização do poder significa uma tendência mais democrática; pode significar o oposto: o represamento das demandas democráticas através dos estratos intermediários que, de uma forma corporativa, administram as instituições.

Página/12: Um poder presidencial forte seria, a partir desta perspectiva, um fenômeno conjuntural e necessário para produzir um rompimento: não seria difícil delimitar quando essa mudança já se produziu e a apelação ao líder se torna desnecessária?
Ernesto Laclau: É muito difícil dizer quanto tempo deveria durar, diria que por todo um período histórico. Não necessariamente é antidemocrático. Nyerere [na Tanzânia] liderou um regime no qual houve ampla participação democrática.

Mas a experiência de Mugabe [no Zimbábue] chegou a um efeito completamente diferente. Até quando e como? Não sei. Mas sou partidário hoje na América latina da reeleição presidencial indefinida. Não de que um presidente seja reeleito vitaliciamente, mas de que possa concorrer.

Por exemplo, pelo presente período histórico, sem Chávez o processo de reforma na Venezuela seria impensável; se deixasse hoje a presidência, começaria um período de restauração do velho sistema através do Parlamento e outras instituições. Sem Evo Morales, a mudança na Bolívia seria impensável.

Na Argentina não chegamos a uma situação na qual Kirchner seja indispensável, mas tudo o que significou o kirchnerismo como configuração política desapareceria, muitas possibilidades de mudança desapareceriam.

Com Página/12