Obras "antimendigo" se tornam marca da gestão Serra-Kassab em SP

Administrada desde 2005 pelo consórcio PSDB e DEM, a Prefeitura de São Paulo adota uma política de tipo higienista para “varrer” os moradores de rua do Centro. Iniciadas na gestão do ex-prefeito José Serra, as práticas de “faxina social” — uma dos mais inconfundíveis legados demo-tucanos — incluem a construção de obras polêmicas em algumas das principais vias, calçadas e praças paulistanas.

Por André Cintra

Banco antimendigo

A primeira iniciativa do gênero foi a chamada “rampa antimendigo”, instalada num dos mais movimentados túneis da cidade. As obras, anunciadas sob protestos em abril de 2005, foram inauguradas cinco meses depois. Tratava-se de construções de concreto, com piso de chapisco, na passagem subterrânea que liga as avenidas Paulista e Doutor Arnaldo. A superfície das rampas, áspera e irregular, impedia a permanência de moradores de rua, às portas de um cartão-postal da metrópole.

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Ainda que a intenção de “limpar” a área estivesse explícita, Andrea Matarazzo, subprefeito da região Sé e homem forte do governo Serra, alegou combate à alta incidência de furtos e roubos na região. “Os moradores de rua têm direito de ir e vir, mas não podemos permitir esses pontos de assalto. Isso nada tem a ver com higienismo. Não podemos confundir bandidos com moradores de rua”, declarou Matarazzo, sem explicar por que o combate à criminalidade não contou com reforço de segurança — só com a rampa antimorador de rua.

O sucessor de Serra e atual prefeito paulistano, Gilberto Kassab, do DEM, deu sequência ao descaso, à perseguição — e às obras “antimendigo”. Em 21 de fevereiro de 2007, por exemplo, a Praça da República foi reinaugurada com quatro novos bancos de madeira, que tinham barras de ferro como divisórias, para impedir que pessoas dormissem sobre sua superfície. “Se não dá para deitar no banco, a pessoa deita na grama, que é até mais confortável”, chegou a provocar o mesmo Andrea Matarazzo.

Com Kassab no governo, abordagens policiais truculentas e prisões à margem da lei atingiram não apenas sem-teto — mas também catadores de materiais recicláveis e vendedores ambulantes do Centro. O atendimento à população de rua piorou a tal ponto que a gestão reduziu de 44 para 20 o número de veículos da Central de Atendimento Permanente de Emergência (Cape).

Outra operação de “limpeza social” foi posta em prática pela equipe de limpeza urbana da Prefeitura — que, munida de caminhões-pipa, disparava jatos d’água sobre moradores de rua e seus pertences. Um dos ataques ocorreu à luz do dia, em plena Praça da Sé, na manhã de 20 de agosto de 2007, enquanto uma manifestação lembrava o massacre de sete moradores de rua, três anos antes, no mesmo local.

Do centro para a periferia

Também a gestão Kassab, a fim de agilizar projetos de “revitalização do Centro”, encerrou atividades de albergues tradicionais na região, como o Centro de Acolhida Jacareí, na Bela Vista, que acolhia até 400 pessoas. A medida, tomada de supetão, deixou moradores de rua sem alternativas de proteção noturna, a não ser se deslocarem para bairros mais afastados. Um símbolo de igual radicalismo foi o fechamento, em março de 2009, do Albergue São Francisco (Glicério), o maior da região, que tinha 720 vagas para desabrigados.

Alda Marco Antonio, secretária da Assistência Social e vice-prefeita de Kassab, falava em trocar o acolhimento noturno pelo tratamento diurno em “centros de convivência”. A Prefeitura, porém, admitiu não ter convicção de que as medidas surtiriam efeito. “Se em seis meses esse novo modelo não tiver resultado, pensaremos em outro”, disse Alda.

Diferentemente dos albergues, os centros de convivência — um na Santa Cecília e dois no Parque D. Pedro II — não têm dormitórios. Se um morador de rua do Centro desejar dormir sob a proteção municipal, terá de se dirigir até albergues de bairros como São Miguel Paulista e Vila Alpina. “Estão tentando limpar o Centro, empurrar o problema para a periferia”, disparou Anderson Miranda, coordenador do Movimento Nacional dos Moradores de Rua.

Banalização

A “limpeza social” tem o apoio de setores da mídia — que formam uma “rede” articulada pela Prefeitura. O veículo mais atilado à gestão é a revista Veja, que reduz os sem-teto a “mendigos, menores abandonados e loucos que vagam pelas ruas”. Nas páginas da publicação semanal da Editora Abril, Andrea Matarazzo sobressaía como “o xerifão das subprefeituras”, ao passo que uma figura como o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral de Rua, estaria cometendo “o pecado da demagogia”.

Em meio à dissimulação e à continuidade de práticas higienistas, Kassab rebaixou o papel de agentes de proteção social. Em vez disso, autorizou a Guarda Civil Metropolitana a “contribuir para evitar a presença de pessoas em situação de risco nas vias e áreas públicas da cidade e locais impróprios para a permanência saudável das pessoas”.

No mesmo período, os atentados se alastram também pela periferia. Na noite de 25 de março, dois moradores de rua foram mortos a pauladas, enquanto dormiam, na Praça Presidente Kennedy, zona leste de São Paulo. No mês seguinte, um grupo de sem-teto do Glicério foi à ouvidoria da polícia e exibiram, como prova da perseguição, uma bomba de efeito moral atirada contra eles. Outros seis moradores de rua foram assassinados, também enquanto dormiam, a 11 de maio, num viaduto do Jaçanã.