II parte da entrevista com Cida Pedrosa

Modernidade, pós-modernidade e democratização do conhecimento são temas recorrentes nesse papo-cabeça com Cida Pedrosa, advogada, poeta e dirigente partidária que fala com propriedade sobre poesia, cultura popular e o uso das novas mídias na produção e divulgação da literatura. Defensora da oralidade como meio para levar o povo a se apropriar de cultura e da dessacralização da arte, para ela, “poesia não é só para iniciados”.

cida perosa

Quais as dificuldades para se produzir literatura em Pernambuco?

CP – As dificuldades não são apenas de divulgação. No Conselho Municipal de Cultura o segmento que talvez reúna menos pessoas é o de literatura. Primeiro porque tem uma coisa histórica, atávica, ligada ao pessoal que faz a poesia escrita – eu tiro ai o povo do repente, eu tiro aí todo o povo que faz poesia popular e tiro os marginais e os alternativos, entre os quais eu me incluo -, mas, normalmente, o pessoal que faz literatura se sente em uma torre de marfim. De certa forma são seres mais especiais do que os outros ou estão ligados aos grandes estúdios, as grandes academias e se sentem muito distantes do povo. É tudo muito individual: ”Minha arte, minha produção, ninguém entende o que eu escrevo”. É muito umbigo. Mas, isso está melhorando profundamente.

O Movimento de Escritores Independentes, do qual participei, era formado por muita gente que não estava ligada diretamente à academia, nem a academia universitária, nem às academias de letras, e era o oposto disso. A nossa grande briga era para tirar a literatura dos gabinetes, para levar a literatura para as ruas, pois o povo entende de literatura, o povo gosta de coisa boa. O que acontece é que nós não viabilizamos, não possibilitamos ao povo ver, ouvir e ler coisas boas.

Para mim a maior prova de que a situação está melhorando é que hoje no Recife tem uma rapaziada nova que está escrevendo e é ligada à academia e outros não, mas que está levando isso para a rua também, fazendo uma oralidade que nós fizemos e uma relação direta nas ruas que nós fizemos.

Por exemplo, teve um evento muito interessante chamado FreePorto, no mesmo momento em que aconteceu a Fliporto e quem organizou foi o grupo Urros Masculinos formado por três jovens que, de certa forma, estão ligados à universidade, alguns são doutores, outros são mestres em literatura, mas que não se incomodam de descer desse patamar e dizer e ler poesia na Rua da Moeda e de acreditar nesse processo de dessacralização da arte, da literatura. Então, acho que alguma coisa está mudando, acho que vamos ter uma nova chance. Claro, que sempre vai existir aqueles que acham que poesia é só pra iniciados e tem de sair da academia, porque a elite sempre vai existir, é um processo. Mas, sinto que existe um processo de mudança.

Uma coisa muito legal é a retomada da oralidade. Isso porque a poesia, a arte e a escrita popular sempre estiveram ligadas ao processo oral, de contação de estórias, do cordel, do repente, dos causos, que nada mais são do que grandes estórias contadas para as pessoas. A minha formação é muito oral, em minha vida eu tive um grande contador de estórias e minha literatura vem daí. Eu conheci uns contos italianos medievais filmados por Pier Paolo Pasolini na oralidade de “seu” Zé Pedro ao redor da fogueira na fazenda.

O povo conhece mitologia grega através dos cordéis, o povo conhece a Bíblia e os grandes fatos históricos através dos cordéis. Se você chegar lá no interior do Estado vai ver que as pessoas sabem as estórias de princesas e dos grandes heróis, e sabem através dos cordéis. Então, a oralidade é absolutamente importante para o nosso povo se apropriar de cultura.

No meu antigo grupo do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco, todos só diziam poesia oral e na rua e hoje existe uma febre de oralidade na cidade do Recife que se repete nas demais cidades, como, por exemplo, Parati, no Rio de Janeiro. Eu vi isso em Parati. Eu, Silvana Menezes, Mariane Bigio e Suzana Morais criamos um grupo chamado Vozes Femininas. Em seguida foi criado o grupo Urros Masculinos, que veio em contrapartida, numa grande brincadeira conosco. Já existem mais cinco ou seis grupos, todos formados por poetas jovens. E para dizer poesia.

Outra coisa legal demais: não estão apenas dizendo poesia, mas dizendo contos. E isso é novo. Na FreePorto muita gente foi para a rua ler contos e isso é novo porque é a oralidade ligada a contação de causos, de grandes estórias, agora ligada ao conto. Então, esses grupos que estão fazendo poesia, fazendo literatura, estão se dispondo a dizer sua produção literária em qualquer canto e de forma oral, isso eu acho vai ajudar muito.

Não que o povo não possa se apropriar através do papel, claro que pode, e vai, mas se você cria um link entre essa nossa coisa histórica e cultural do ouvir, você começa a quebrar amarras, inclusive com a nova literatura que está sendo feita. É muito mais palatável, às vezes, a poesia entrar pelo ouvido do que pelos olhos, porque poesia tem música. E eu descobri isso com os meninos que lêem contos: um conto bem lido é uma estória bem contada. Daqui a pouco a gente vai ter nesta cidade encontros para se ler prosa mais extensa, vamos ter encontros onde fulano vai ler o primeiro capítulo do seu novo romance, por exemplo.

A oralidade é importante, mas registrar esse conhecimento, essa produção intelectual em papel também é. Nesse contexto, quais são as dificuldades para se publicar hoje em Pernambuco?

CP – Eu acho que hoje é mais difícil divulgar e distribuir do que publicar. Isso porque, se você for uma pessoa minimamente organizada, mesmo que seja em uma brochurazinha alternativa e simples você consegue publicar, mesmo que não seja um livro de grande qualidade do ponto de vista gráfico, mas você faz até de forma barata, de forma artesanal. Qual é então a grande dificuldade? Primeiro, porque nesse mundo globalizado ficou ainda mais difícil distribuir, sempre foi difícil, mas ficou ainda mais. A dificuldade é você sair daqui para ser lido em São Paulo ou no Maranhão e fazer com que a crítica especializada leia e veja você. Então, é mais difícil distribuir e divulgar e receber a crítica especializada do que publicar.

Estou falando da publicação mais alternativa. Do ponto de vista da publicação oficial que é feita por editora, que te banca, com contrato, como está posto do ponto de vista da ordem estabelecida, isso é dificílimo. Eu conheço vários autores que tem prêmios importantes – Belmar, por exemplo, tem prêmios importantes -, que mandam seus livros para editoras de nível nacional, recebem respostas carinhosas, mas não conseguiram ainda publicar em nível nacional, não conseguiram que editoras como a José Olympio, Saraiva e Companhia das Letras se interessem e publiquem. Qual é o grande problema? Não é publicar, é distribuir.

Eu publiquei “As Filhas de Lilith” por uma editora, mas a distribuição ainda é precária, você não vai encontrar Lilith em Rondônia ou no Maranhão. Em uma cidade que tiver Livraria Cultura ou Livraria Saraiva eles mandam buscar na outra livraria e resolve, porque tem cinco ou seis editoras que são capazes de distribuir bem, Globo, Companhia das Letras, que estão aí no mercado e tem uma boa logística de distribuição. Mesmo ótimas editoras que tem títulos muito interessantes e estão estabelecidas em São Paulo tem problemas.

Então, a fluição da arte do ponto de vista global no Brasil é o grande problema. Tem também o problema do que chamam “panelas culturais”. Existem também os estereótipos do que é aceito ou não pelo mercado. Eu não sei se Lilith seria aceito por uma editora de forma fácil porque existe uma literatura mais específica, que o pessoal das grandes editoras contrata e banca.

A TECNOLOGIA A SERVIÇO DA ARTE

Qual a contribuição da internet para a produção e divulgação da literatura?

CP – A internet é a grande novidade, é o grande processo de democratização. Eu não preciso mais que a Companhia das Letras me ponha em Rondônia, eu me ponho e de graça. Qualquer autor desenrolado entra em uma rede solidária. A internet, essa rede que está aí, tem de ser cada vez mais sortida de coisas boas para que mais e mais pessoas possam ter acesso ao conhecimento. Hoje a comunicação vive um momento ímpar, um momento em que se discute comunicação como direito humano, o direito ao conhecimento é direito de todos, e para mim o conhecimento tem de ser absolutamente democratizado.

Todo mundo fala muito mal da internet, que tem pedofilia, claro que tem. A internet é a feira de Caruaru. Tem o lado bom e o lado ruim. Mas, acho que ela é muito mais benéfica do que maléfica porque possibilita quebrar fronteiras e por quebrar uma estrutura de poder. Porque eu não preciso mais me colocar na mão do complexo sistema de produção promovido pelo capitalismo, eu quebro toda a linha de produção de alguém me publicar, alguém me distribuir, algum especialista fazer a crítica. Não, na internet eu publico, me autoedito, divulgo para o mundo todo e ainda recebo as críticas sob a forma de comentários.

E o futuro das novas tecnologias?

CP – Acho que existe um campo novíssimo para se abraçar em termos de novas tecnologias. Acho inclusive que usamos a internet muito pouco enquanto ferramenta para a literatura, usamos mais como aporte para a divulgação e a publicação. Se considerarmos, as possibilidades de interação com a arte, essas novas tecnologias ainda estão sendo pouco usadas, mas a gente vai chegar lá.

Acho, entretanto, que o livro não vai acabar nunca, porque quando apareceu a primeira tipografia todo mundo se assustou e na verdade a tipografia possibilitou a democratização do acesso ao conhecimento, mínima, mas possibilitou porque antes só alguns, os monges nos mosteiros, os escribas, que transcreviam o livro para o pergaminho e o povo ficava sem ler nada. Além disso, a publicação em papel é objeto de desejo mesmo, quem gosta de ler é muito vouyer, tem uma relação de prazer, de olhar, de sentir, de cheirar, com o papel, por isso, acho que o livro enquanto suporte não vai acabar nunca porque todo mundo tem vontade de publicar em papel, mas os novos suportes, como o e-book, por exemplo, permitem o alargamento de fronteiras.

AS FILHAS DE LILITH E OUTRAS (NOVAS) PRODUÇÕES

Você já tem algum outro livro no forno? E “As filhas de Lilith”, sua mais recente produção?

CP – Vou começar pelo que tenho no forno. Estou escrevendo um livro de contos cujo título, a priori, é “Os filhos de Eva”, cujos personagens principais são todos masculinos, o oposto de Lilith, e que de certa forma retratam toda a dor, todo o processo de solidão que o ser humano pós-moderno vive, só que sob a forma de contos, o que é um aprendizado muito novo, muito desesperado, porque não domino a técnica ainda. Porque poesia é uma outra linguagem e o conto tem outro tempo, outra forma de tensão, você não pode nem se alargar demais nem fechar muito, eu ainda estou aprendendo.

Além disso, eu preciso fechar, eu me devo isso, um livro de poesia que comecei há muito tempo, que se chama Visitação ao Capibaribe,pois desde que cheguei aqui nunca trabalhei em um lugar em que eu não tivesse o Capibaribe como espelho. Trabalhava no Centro e passava por cima do rio todo tempo, fui para a Prefeitura do Recife e atravessava várias pontes, estou trabalhando na Sanear e o Capibaribe passa por trás do prédio. Esse rio sempre esteve ligado a mim nesta cidade. Então, tenho vários poemas e quero juntar em um livro.

“As Filhas de Lilith” é um livro que gostei muito de fazer e que tem me dado muito prazer porque as mulheres, principalmente, tem gostado muito. Ele é um abecedário, são 26 poemas, 26 personagens femininos, mulheres, onde eu saio fazendo, de certa forma, uma colcha de retalhos de muitos dos processos dolorosos pelos quais nós mulheres estamos passando nessa pós-modernidade. Então, lá tem uma mãe, lá tem uma mulher de quem cortam o clitóris em pleno século 21, ou seja, cadê a modernidade? Lá, tem uma negra que a única coisa que a une ao mundo dos brancos é a gravidez, tem um travesti que na verdade é uma mulher, porque ser mulher é uma questão de orientação psicológica não é uma questão física. Então, eu saio tratando dessas coisas no livro porque são coisas que sempre me incomodaram.

Acho que nós mulheres estamos na luta pela transformação. Acho que essa coisa de igualdade entre homens e mulheres não é só uma luta pela igualdade, é muito mais: é atingir igualdade de direitos, mas ter o direito de ter uma identidade própria e ter tratamento diferenciado porque nós pertencemos a um gênero diferenciado e isso é a grande luta. É como atingir a igualdade de direitos e atingir individualmente o direito aos sonhos, de identidade como mulher mesmo. E eu sempre quis falar sobre essas coisas e falei em Lilith, que mais do que um livro de denúncias é uma grande declaração de amor às mulheres.

Você também participa do site Escritoras Suicidas?

CP – Eu gosto muito desse site, tem muitas mulheres e homens que usam pseudônimos femininos e escrevem para ele. O site fez uma edição com uma antologia belíssima de contos e poesias de todas/os que participam do espaço. Nós temos quatro escritoras de Pernambuco dentre as quais dois homens que se fingem de mulher. Quanto ao título do site todo mundo pensa que é em homenagem à Virginia Wolff, Sílvia Plat, mas não é. Trata-se de uma grande ironia do fato de se achar que nós mulheres só escrevemos porque queremos nos matar, nos suicidar ou nos angustiar. Então, é uma grande ironia, pois não tem nada a ver esse negócio de que mulher escreve como válvula de escape, mulher escreve porque é cidadã, porque quer se expressar, porque tem o que dizer, porque tem um olhar próprio, não porque quer se matar, porque é uma suicida em potencial. Então é uma grande brincadeira. E para não criar um espaço só para mulheres, pois o olhar é para além de ser só mulher, é que tem homens que se fingem de.

Fonte: Site do vereador Luciano Siqueira