Capistrano: A política de cotas e a abolição incompleta

O jurista Fábio Konder Comparato, em uma audiência pública realizada, recentemente, pelo Supremo Tribunal Federal, audiência essa com a finalidade de debater a constitucionalidade ou não das cotas nas universidades públicas. Comparato deu uma aula de história, humanismo e direito, mostrando a importância das políticas afirmativas com relação à questão dos negros e pardos no Brasil. Políticas para sanar uma injustiça histórica cometida contra um povo que foi violentamente explorado.

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Copiei a sua fala de um vídeo postado no blog “Vi o mundo” do jornalista Luiz Carlos Azenha, no dia 12/3/2010 e fiquei na obrigação de compartilha com os meus minguados leitores, tão palpitante tema. A exposição do jurista Fábio Comparado, é uma peça irretocável, tanto no aspecto jurídico, como no aspecto humanista. Peço licença e reproduzo o que disse o jurista Fábio Konder Comparato:

“A Constituição de 1988 criou ou tentou criar um Estado Social. Estado Social é aquele que se rege por princípios finalisticos ou teleológicos, não se trata para o Estado simplesmente promulgar leis e deixar que cada membro da sociedade civil escolha o destino de suas vidas, trata-se de dar um rumo ao país e, esse rumo é indicado, sobretudo, pelo disposto no artigo 4º da Constituição de 1988 que diz: são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, eu destaco dois inciso desse artigo: o de número 3 que fala sobre erradicar a pobreza, a marginalização e as desigualdades regionais e, o artigo de número 4 que diz, promover o bem de todos sem descriminação. Trata-se de normas cogentes e não simplesmente disposições facultativas."

"O inciso 3º mostra que o objetivo final é a eliminação das desigualdades socioeconômicas. Aponta esse dispositivo, em especial, para a erradicação da pobreza e da marginalização social e, o inciso 4º, repito, tem sido mal interpretado e não se percebe o conteúdo ativo que está dentro dessa norma constitucional. Promover o bem-estar de todos não se trata simplesmente de deixar o Estado se mover com os movimentos sociais, com a força dos movimentos e com as pressões desses movimentos."

"Promover é indicar um rumo e, esse rumo é Republicano: o bem comum de todos e, o dispositivo acrescento ainda, que proibi as discriminações. Ora, o que se demora muito a entender é que a discriminação é de duas espécies, ela pode ser uma discriminação ativa, que é a discriminação clássica, mas há uma discriminação omissiva, que é absolutamente contrária ao Estado Social, ou seja quando os poderes públicos não tomam as medidas indispensáveis para fazer cessar uma situação de inferioridade injusta, inaceitável de determinados grupos sociais."

"Eu quero assinalar, também, para o fato de que a própria Constituição tem duas disposições especificas em aplicação ao principio da redução das desigualdades sociais. O artigo 7º inciso 20 determina a proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos. Ora, seria ridículo, como se fez com relação à política de cotas para negros nas universidades, dizer que a Constituição aí é sexista uma vez que ela estabelece a obrigação de proteger o mercado de trabalho da mulher. E o artigo 37 inciso 8º que diz, “a lei reservará um percentual dos cargos de empregos público para pessoas portadoras de deficiências e definirá os critérios de sua admissão”. Exatamente como na política de vagas para alunos negros no ensino superior."

"Este próprio dispositivo constitucional, implicitamente, responde a objeção de que a política de reserva de vagas nas universidades contraria o critério do mérito que é essencial no ingresso na universidade e na obtenção do diploma. Ora se se trata do artigo 37 inciso 8º de reserva de vagas para cargo e empregos públicos é evidente que esses beneficiados com as reservas de vagas não são dispensados do concurso público, eles fazem o concurso de ingresso, exatamente como se quer e se pretende, para reserva de vagas para o ensino superior em benefício da população de negros e pardos."

"Eu quero assinalar o fato que se procura esconder desde sempre no Brasil: do total da população considerada pobre 14,5% são brancos e 33,2% são negros, em grosso modo, o dobro. No grupo dos 10% mais pobres da população mais de 2/3, portanto, 70% são negros e pardos. No mercado de trabalho com a mesma qualificação de escolaridade negros e pardos recebem em média quase a metade do salário pago aos brancos. Nas nossas cidades mais de 2/3 dos jovens assassinados entre 15 e 18 anos são negros ou pardos."

"No ensino médio 58,4% dos alunos são brancos e 37,4% são negros, isso no ensino médio, no ensino superior essa desigualdade é escandalosa, na Universidade de São Paulo (USP) a maior universidade do Brasil, nós temos menos de 2% de alunos negros. Em conclusão, senhores ministros, se se trata de discutir, não é o caso, nessa argüição descumprimento de preceito fundamental de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, da política de reserva de vagas para negros nas universidades, nos devemos chegar a uma conclusão, a meu ver, muito clara, até hoje a constituição foi descumprida com uma inconstitucionalidade por omissão no que diz respeito a proteção dos negros e pardos no ensino superior."

"Dizem que isto não resolver o problema da pobreza, mas, eficiência ou uma ineficiência de uma política pública não é assunto que seja decidido no Supremo Tribunal Federal, o Supremo Tribunal decidi sobre constitucionalidade ou inconstitucionalidade de Políticas Públicas e, a meu ver, o descumprimento do artigo 3º da Constituição representa a desfiguração por completo do perfil de justiça social que a Constituição procurou imprimir ao Estado Brasileiro. Nós já conhecemos a inconstitucionalidade por omissão em relação ao legislativo, é hora de se pôr na pauta das discussões à inconstitucionalidade por omissão por parte do poder executivo, pois é ele que tem a iniciativa das políticas públicas."

"Eu encerro senhores ministros, com uma manifestação de profunda tristeza, mais de um século depois da abolição da escravatura neste país, nós estamos ainda a discutir uma política que certamente não é suficiente para dar aos negros e pardos que vivem no território brasileiro uma posição de relativa igualdade com os demais brasileiros. Mas, nada se disse e nada se diz até hoje do fato de que quase quatro séculos de escravidão não suscitam a menor, a mais leve discussão sobre a necessidade ética e jurídica de se dar aos descendentes de escravos uma mínima compensação, pelo estado de bestialidade a que foram reduzidos pelos grupos dirigentes."

Este depoimento do professor Fábio Konder Comparato, coloca ponto final na discussão da constitucionalidade ou não da política de cotas para negros e partos nas universidades públicas e dá uma aula de humanismo e história.
 

Antonio Capistrano – ex-reitor da UERN é filiado ao PCdoB