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Velório de Saramago mantém vivas suas polêmicas

José Saramago gerou controvérsias ainda após sua morte. Brigado com Portugal, foi velado em Lisboa, onde chegou coberto com a bandeira do país. Homem público, teve o início da cerimônia fechado e foi disputado entre leitores e figuras públicas. Foi após a reclamação de uma partidária do PCP – passados 30 minutos das 15h, o horário prometido – que as portas foram abertas ao público.

Por Simone Cunha, para o Opera Mundi, de Lisboa

“Eu lutei para que esse país fosse livre, para que isso não acontecesse. Temos direito a ver Saramago”, disse Elvira Nereu, de 69 anos, após discutir com alguns policiais na entrada da Câmara Municipal de Lisboa.

Aos 87 anos, o escritor faleceu nesta quinta-feira (17/6) em decorrência de falência múltipla dos órgãos, após ter passado por diversas internações nos últimos três anos. Em 2009, ele havia passado quatro meses internado em um hospital em Lanzarote, onde morava desde 1993.

Cinco minutos depois, as portas se abriram. Desde então uma fila com 200 a 300 pessoas se manteve constante até por volta das 18h, embora havendo circulação. Às 19h não havia fila. Estima-se que entre 15 e 20 mil pessoas passaram pela Praça do Município e viram Saramago.

Embaixo de um sol de 30 graus, cerca de 200 pessoas esperaram a abertura das portas. A primeira a chegar, ainda antes do meio-dia, foi a aposentada Leonor de Fatima Carrilho Viola, de 77 anos, leitora dele há tempo suficiente para não lembrar-se dos livros que mais a marcaram. “Recomendavam na escola e eu li quando tinha meus 14, 15 anos. Mas não eram como esses fortes que passou a escrever depois”, diz referindo-se a Caim e Evangelho Segundo Jesus Cristo. “Vim para mostrar que Portugal tem pessoas de valor.”

Público

A expectativa da polícia era de que o fluxo de pessoas fosse grande, se não pelos portugueses em geral, pelos militantes do Partido Comunista, ao qual Saramago foi filiado até a morte. Além do presidente do Partido Comunista Português (PCP), Jerónimo Sousa, presente no cortejo fúnebre desde o aeroporto de Figo Maduro, as coroas de flores dos comandantes Fidel e Raúl Castro marcaram a presença ideológica do autor e a receptividade que tinha na ala de esquerda.

Também não faltaram cravos vermelhos, símbolo da Revolução dos Cravos, em 1974, nas mãos dos visitantes. “Vim para dar um adeus para meu camarada. Ele é filiado ao partido há 40 anos, sou há 37”, conta Maria Clara dos Reis, 73 anos, que apesar da afinidade ideológica, afirma ser católica e gostar também da escrita do autor. “Tenho mais de dez livros em casa e gostava de seu jeito de escrever e se posicionar. Era uma pessoa afável e crítica.” Outra fã destacava o semblante duro, “marca do que ele via no país”. “A ausência de pessoas aqui hoje é a prova do que se disse dele em Portugual.”, disse Manuela Sousa.

Era, como disse o presidente do PCP, uma figura incontornável. “Questionou o mundo e passou a vida perseguindo um ideal”, disse. No dia de seu velório, suas polêmicas deixaram em saia justa os que estiveram em seu cortejo oficial.

O ministro da Administração Interna, Rui Pereira, recusou-se a responder se Saramago morreu em paz com a pátria, mas disse: “O destino de seus restos mortais mostra o quão português ele era.” Para a ministra da Cultura espanhola, Ángeles González-Sinde, sobrou opinar sobre a junção de Portugal à Espanha, que o escritor sugeria.

“Ele mostrou para que servem os intelectuais e seu trabalho aproximou os dois países até na sua morte”, afirmou em referência à cerimônia ocorrida ontem na ilha espanhola de Lanzarote, onde ele morava, e também ao trabalho cultural da fundação que leva seu nome. Francisco Louçã, líder do Bloco de Esquerda, minimizou a existência de uma guerra entre Saramago e Portugal, dizendo se tratar de “pequeníssimas e mesquinhas perseguições políticas”.

O primeiro ministro de Portugal, José Sócrates, chegou por volta das 16h ao velório. A ministra da Casa Civil e candadata a presidência, Dilma Rousseff, passou pela cerimônia e disse “ele está entre esses grandes escritores que imortalizama nossa língua e a nossa cultura”. O presidente de Portugal, Cavaco Silva, não esteve presente. Marcelo Rebelo de Souza, ex-presidente do PSD, partido de Cavaco, afirmou que o presidente estava presente espiritualmente.

A escritora brasileira Nélida Piñon, membro imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) disse que a história quis que ela estivesse aqui como representante da ABL. "Vim para proclamara meu bem querer e o dos brasileiros. Nós, os brasileiros, o amamos e penso que ele também nos amava. Senti falta primeiro do homem, o amigo, a obra já estava no bolso e no coração."

Família e amigos

Junto com o cortejo oficial, chegou a esposa do escritor, Pilar Del Río, que saiu ainda antes de a imprensa ter o acesso liberado à cerimônia. Seus 14 irmãos chegaram cedo, por volta das 13h30, e chegaram a entrar na fila que se formava àquela hora. “O que nos conforta é saber que ele vive entre os imortais, os literatos que adoramos”, disse a cunhada de Saramago, Teresa Del Río.

O maestro Antonio Vitorino de Almeida, definiu Saramago como “Há pessoas que fazem parte da história de seu país e outras que fazem seu país entrar para a história do mundo. Esse foi Saramago.”