Educação e desigualdades: o Ideb e o caso do Ceará

O principal indicador de qualidade da educação básica no Brasil na atualidade é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), aferido e divulgado pelo Ministério da Educação a cada dois anos. Os números divulgados no início de julho, relativos ao ano de 2009, mostram que o Brasil está longe de alcançar indicadores satisfatórios no que diz respeito à aprendizagem dos alunos.

Por Joan Edesson*

Mas mostra também que o país inteiro avançou nos últimos anos, embora num ritmo lento e que não corresponde às nossas necessidades de desenvolvimento. Para se ter uma ideia do quão distante estamos de uma situação satisfatória, basta ver que temos, nas séries iniciais do ensino fundamental das redes municipais, apenas 325 municípios com Ideb igual ou superior a seis, que é o mínimo esperado. Ou seja, é o equivalente a apenas 5,8% dos municípios brasileiros. E estamos falando das séries iniciais do ensino fundamental, onde temos indicadores melhores.

Um dado que chama a atenção é a confirmação das extremas desigualdades regionais existentes em nosso país. Dos 325 municípios com nota igual ou superior a seis, 317 (o equivalente a 97,5%) estão nas regiões sul e sudeste, mais precisamente concentrados nos estados de Minas Gerais (121 municípios) e São Paulo (123 municípios). Seguem-se 35 municípios do Paraná, 19 de Santa Catarina, 14 do Rio Grande do Sul, quatro do Espírito Santo e um do Rio de Janeiro. A região Centro-Oeste tem seis municípios entre os melhores, três de Goiás e três do Mato Grosso. Há apenas dois municípios no Nordeste, os dois no Ceará, Sobral e Abaiara. A região Norte não tem nenhum município nesta faixa de nota igual ou superior a seis.

Na outra ponta, nos municípios com nota no IDEB inferior a três, o que significa que a maioria dos alunos não está sequer alfabetizada ao final das séries iniciais, há 276 municípios. E a situação aí, quando consideramos os dados por região, se inverte completamente. Há 01 município no Acre, 01 em Roraima, 9 no Amazonas, 3 no Amapá, 24 no Pará, 01 no Mato Grosso, 02 em Minas Gerais e 01 no Rio Grande do Sul. Todos os demais estão no Nordeste. 55 na Bahia, 47 no Piauí, 40 no Rio Grande do Norte, 23 no Maranhão, 22 na Paraíba, 20 em Sergipe, 14 em Alagoas e 12 em Pernambuco. O Ceará tem apenas um nessa situação. Vimos então que a região Nordeste concentra 84.8% das piores redes municipais (234 municípios). 13.8% dos piores estão na região Norte (38 municípios). Os demais estão nas regiões Sudeste (dois municípios), Centro-Oeste (um município) e Sul (um município).

A distribuição confirma as desigualdades regionais. Há melhores escolas e melhores redes municipais de ensino nas regiões mais ricas e mais desenvolvidas do país, enquanto as regiões mais pobres e menos desenvolvidas concentram as piores redes municipais de ensino.

Isto reforça a ideia de que um projeto nacional de desenvolvimento precisa levar em conta estas desigualdades regionais e pensar o país na sua totalidade. A concentração do desenvolvimento por regiões é outra face da concentração de riquezas em nosso país, é outra faceta das desigualdades econômicas e sociais que assolam o Brasil. Um novo projeto nacional de desenvolvimento deve pensar o desenvolvimento de todas as regiões do país. É necessário desconcentrar as riquezas, e isto implica necessariamente em desconcentrar o desenvolvimento, em desconcentrar os investimentos feitos pelo Estado e em induzir também a desconcentração de investimentos privados.

Se é verdade que há relação direta entre a realidade econômico-social e a má qualidade da educação, quando pomos as coisas desta forma, os dados podem nos levar ao fatalismo, à paralisia. A constatação pode ser: enquanto não resolvermos a questão da miséria, da má distribuição de renda, do crescimento econômico do país, não há saídas para a educação. Assim, o Nordeste deveria se conformar com os péssimos indicadores de aprendizagem das suas crianças e esperar, quem sabe eternamente, pela sua redenção econômica para que essa signifique também a sua redenção educacional. As coisas não são assim. O estado do Rio de Janeiro possui apenas um município que tem nota igual ou superior a seis, o município de Aperibe. O Ceará, muitíssimo mais pobre e menos desenvolvido que o Rio, tem dois municípios (Sobral e Abaiara) e os dois têm indicadores melhores do que Aperibe. Seriam esses casos (Rio de Janeiro e Ceará) apenas as exceções a confirmar a regra geral? Penso que não.

O que o Ceará fez de diferente?

A matrícula das séries iniciais do ensino fundamental no Ceará é municipalizada na sua quase totalidade. Isso poderia levar a Secretaria Estadual de Educação a não se responsabilizar em absoluto por esses alunos e a se dedicar exclusivamente às séries terminais e ao ensino médio. Mas não foi isso que o Ceará fez. Pelo contrário, a Secretaria entendeu o seu papel de Secretaria de Educação do Ceará e não apenas de Secretaria de Educação para as escolas das redes estaduais, como ocorre em muitos outros estados.

Em 2007 a Seduc criou o Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic), um amplo programa de gestão municipal e escolar destinado a apoiar os municípios do estado, contando com a adesão da totalidade dos municípios. Com apoio financeiro do Ministério da Educação, e com um considerável aporte de recursos próprios do estado, o Ceará deu um salto na alfabetização das crianças, verdadeiro gargalo no processo de aprendizagem nas séries iniciais.

Este trabalho de apoio às gestões municipais, com cooperação técnico-científica, apoio financeiro e um trabalho sistemático de acompanhamento e avaliação da aprendizagem de todas as crianças, é o grande responsável pelo salto que o Ceará deu, colocando-se no Ideb como o melhor desempenho entre os estados nordestinos e como aquele que mais cresceu desde 2005, ano em que começou a divulgação do Ideb. Das trezentas melhores escolas municipais apenas 28 estão no Nordeste, e destas 21 estão no Ceará. Mais uma vez as regiões Sul e Sudeste concentram a maioria (265 escolas). Um fato relevante é que entre as cem escolas com indicadores mais baixos não há nenhuma do Ceará e a escola com o mais baixo indicador é uma escola da rede estadual de Minas Gerais localizada em Belo Horizonte.

A mudança qualitativa nas escolas das redes públicas municipais do Ceará é fortemente influenciada por uma sólida política educacional coordenada pela Secretaria Estadual de Educação. Sem isso, provavelmente o Ceará não teria se destacado como o fez.

O exemplo de Sobral

A política educacional levada a cabo pela Seduc para os municípios do Ceará foi formulada a partir da experiência de Sobral. O governador Cid Gomes foi prefeito de Sobral por duas gestões. A secretária de Educação do Ceará, Izolda Cela, e o secretário-Adjunto, Maurício Holanda, foram secretários de Educação em Sobral.

A partir de 2001 Sobral desenvolveu uma nova política educacional, tendo como foco a aprendizagem das crianças. Os resultados podem ser vistos no Ideb deste ano. Sobral foi um dos dois únicos municípios do Nordeste com nota igual ou superior a seis no IDEB (o outro foi Abaiara, também no Ceará). Se considerarmos apenas as redes municipais nas séries iniciais Sobral ocupa a 55ª posição no ranking dos melhores municípios. E fez isso em todas as suas escolas. Das 39 escolas municipais 38 tiveram nota igual ou superior a seis no Ideb. Apenas uma escola ficou abaixo disso, mas perto (nota 5.3).

Das trezentas melhores escolas municipais do país nas séries iniciais, o município de Sobral tem dezoito, o que corresponde a quase metade das suas escolas. Para saber o que isto significa basta dizer que redes municipais como Porto Alegre, Fortaleza, São Paulo, Recife e Salvador não tem nenhuma escola entre estas. O município de Belo Horizonte tem apenas uma e o município do Rio de Janeiro tem apenas dez.

Não houve nenhum milagre no município de Sobral, mas uma política educacional voltada para garantir a aprendizagem dos alunos, que é o foco da rede municipal de ensino e de todas as suas escolas. Para isso foi fundamental a adoção de uma série de medidas, tais como o estabelecimento de uma política de alfabetização; o fortalecimento da gestão escolar com um processo criterioso de seleção e formação de diretores e coordenadores pedagógicos; o fortalecimento das escolas com autonomia pedagógica, administrativa e financeira; um processo permanente de acompanhamento e avaliação da aprendizagem por parte da secretaria municipal de educação; a formação permanente em serviço de todos os professores da rede municipal de ensino (para isso foi criada uma Escola de Formação Permanente do Magistério); dentre outras.

O que o Ceará e Sobral têm a nos dizer é que há, sim, relação entre as questões econômico-sociais e as questões educacionais, expressas nas desigualdades reveladas pelo Ideb. Mas o que eles nos dizem também é que é possível, a partir de políticas educacionais sólidas, focadas na aprendizagem das crianças, romper com essa lógica perversa dos melhores do lado de lá e dos coitadinhos do lado de cá, em todos os aspectos. E, rompendo essa lógica, talvez também possamos inverter uma outra lógica, de que nossa educação é ruim porque somos mais pobres. Se entendermos a educação como parte fundamental e imprescindível de um novo projeto nacional de desenvolvimento, talvez Sobral e o Ceará, pobres, miseráveis, no semiárido nordestino, nos digam, num futuro não muito distante, que ficamos menos pobres e menos desenvolvidos porque passamos a ter escolas melhores e políticas educacionais mais sólidas e mais focadas na aprendizagem das crianças e dos adolescentes.

* Joan Edesson de Oliveira é educador. Foi consultor do Programa Alfabetização na Idade Certa da Secretaria de Educação do Ceará entre os anos de 2007 e 2009.