Walter Medeiros: ANISTIA PARA LUIZ, ONDE ESTIVER
A mulher com o “olhar no portão” sonhava, esperava, acreditava que um dia veria chegar de volta o seu marido. Mas o tempo da sua vida não foi suficiente; ela morreu e ele não voltou. Passou cerca de 28 anos esperando notícia do paradeiro do lutador que foi preso em 1974 pelos órgãos de repressão do regime militar e nunca mais deram informação sobre o seu verdadeiro destino. Por Walter Medeiros*
Publicado 27/08/2010 18:33 | Editado 04/03/2020 17:08
O Estado brasileiro reconhece hoje que foi feito um mal à família daquele homem e pede perdão de público. A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça anistiou aquele potiguar, juntamente com muitos outros que foram perseguidos, como Agnelo Alves, Garibaldi Alves, Iaperi Araújo, Gileno Guanabara e Marcos Guerra. Eles entraram no rol onde já estavam Glênio Sá, Meri Medeiros, Luciano Almeida, Cassiano Arruda e outros. A cada julgamento, alguém afirma que é preciso lembrar sempre o que ocorreu naquele período, para que não se esqueça e que para que tais fatos nunca mais aconteçam.
A emoção era geral em cada canto da Assembléia Legislativa, onde foi descerrada uma placa homenageando Luiz Maranhão. Seu sobrinho-neto, Haroldo Maranhão, fez um curto discurso emocionado, lembrando o que chamou de tempos de jeep. Explicou que teve um jeep de brinquedo, com o qual se divertia muito. Era um brinquedo da época, principalmente em Natal, resultado da movimentação da Segunda Guerra Mundial. Mas depois apareceram para Haroldo os jeeps verdes, dos quais saíam homens de botas e capacetes, naquele ambiente onde seu tio desapareceu. Depois ficou sabendo que ele “foi levado para Recife, Fernando de Noronha, Rio de Janeiro, São Paulo e Nunca Mais”.
Num telão mostraram cenas do período da ditadura, que trouxeram de volta até aquele cheiro de gás lacrimogêneo, mas também promoveram o reencontro de velhos sonhos, conforme as palavras da vice-presidente da Comissão, Suely Bellato. Ela mostra a importância de conhecer o passado e reconstituir a verdade através dos processos de anistia, que acumulam histórias densas e intensas que o Brasil precisa conhecer. Mais de 65 mil pessoas foram atingidas pelo regime militar.
Os chamados “anos de chumbo” vividos pelo Brasil entre 1964 e 1985 constituíram um tempo atribulado, mas também – ao mesmo tempo – uma era de muita fibra, de muita luta, de muita resistência no Rio Grande do Norte. Resistência à injustiça, à falta de liberdade; resistência à solidão das noites nas quais ninguém podia nem devia procurar notícias de alguns companheiros, para não desfalcar o movimento, pois as movimentações poderiam terminar em prisões, em desaparecimentos ou mortes.
Naquele tempo, em Natal, os militantes tinham de possuir uma intuição muito aguçada, para escolher em quem confiar, pois cada desconhecido podia ser um agente da ditadura. A qualquer momento qualquer ativista podia ver-se diante de um fuzil, de uma sala escura e de um inquisidor, determinado a descobrir até o que não sabia, mas que achavam que devia saber. Todos viviam sobressaltados, pelo simples fato de defender a liberdade, o direito ao habeas-corpus, o direito de votar para Governador, Prefeito da capital e um terço do Senado.
A despeito de tudo aquilo, presenciávamos a cada momento gestos de coragem de incontáveis militantes, destemidos democratas, resistentes cidadãos, que guardavam aqueles livros que não podiam ser encontrados em nas casas dos militantes, o que aumentava a certeza de que o dia anunciado por Vandré vinha vindo. Cada filme no cinema de arte no cine Rio Grande era um grande ato democrático; cada música executada nos diretórios acadêmicos era uma ascensão da luta; cada obra de arte encenada era um impulso imenso para a derrocada do regime de exceção.
Quem optava por caminhar esses caminhos, findava marcado e perseguido. Naquele quadro, cada um vivia a sua história e encontrava a face implacável do poder de exceção, um poder desigual e injusto. Foram anos de solidão e aflição dos interrogatórios, das acareações e dos assédios. Mas foram também dias de ânimo cívico, têmpera revolucionária e coragem democrática. Uma luta ora aberta, ora solitária, ora clandestina, mas sempre no rumo de um amanhã, que seria outro dia, como dizia Chico Buarque. O outro dia chegou. Estamos a vivê-lo. E é importante fazer com que tudo aquilo tenha realmente valido à pena.