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As lições do mestre Kurosawa

O centenário do cineasta japonês Akira Kurosawa foi uma das efemérides mais comemoradas em 2010. E, justiça seja feita: o Imperador, como era chamado pelos admiradores, foi mesmo um dos luminares da arte cinematográfica.

Por Ernesto Barros, no Jornal do Commercio

A 34ª Mostra Internacional de São Paulo preparou várias homenagens para o cineasta: lançou um livro biográfico de sua mais próxima colaboradora, exibiu uma cópia restaurada de Rashomon (1950) e abriu uma exposição de storyboards que está aberta à visitação pública até o dia 28 deste mês, no Instituto Tomie Ohtake.

Os seguidores da obra de Kurosawa já conheciam o talento pictórico do cineasta desde os idos de 1982, quando assinou o cartaz do Festival de Cannes com uma gravura do material que prepara para Kagemusha – A sombra do samurai (1980).

Estas belíssimas gravuras, que pela primeira saem do Japão, fazem parte da exposição Kurosawa – Criando imagens para cinema. Ao todo, são 80 storyboards. A partir daí, todos os filmes seguintes do mestre tiveram trabalhos gráficos preparatórios, como os filmes Ran (1985), Sonhos (1990), Rapsódia em agosto (1991) e Madadayo (1993), além de Sob o olhar do mar (2002), um roteiro seu postumamente filmado por Ken Kumai.

Na verdade, como Kurosawa escreveu em Relato autobiográfico, publicado no Brasil em 1984, durante muito tempo ficou dividido entre as artes plásticas e o cinema. Aos 18 anos, fizera uma exposição na prestigiada Nika Art Exhibition.

Mas, ao seguir a carreira cinematográfica, perdemos momentaneamente um grande ilustrador e ganhamos um dos gênios da sétima arte. Do seu passado de pintor, nada sobrou porque Kurosawa destruiu seus trabalhos ao jogá-los no fogo. Apenas em Kagemusha, durante uma longa espera em virtude do adiamento das filmagens é que voltou aos pincéis.

Na exposição, percebe-se o as dimensões artísticas e o grande talento de Kurosawa não apenas em pinturas completas, mas também nos seus esboços mais simples, com a marcação típica dos storyboards, que, nas mãos de tantos outros ilustradores, não passam de rascunhos sem valor. O que se percebe é que grande parte dos seus filmes já estavam criados em sua mente. Sejam as emoções dos personagens, sejam enquadramentos e composições, figurinos e locações.

O cineasta americano Martin Scorsese, que atuou em Sonhos como o pintor holandês Van Gogh, ficou espantado com os desenhos de Kurosawa. “Ao ver os que ele me dera para minhas cenas, lembro-me da sua precisão em absolutamente tudo: quantos passos dar durante a filmagem de uma cena, o posicionamento dos meus braços, o tamanho das pinceladas de Van Gogh, o modo como meus olhos e minha barba seriam enquadrados. Ao olhar essas pinturas e desenhos, pode-se sentir que ele vive e respira cinema. Elas estão esperando para serem realizadas e postas em movimento”.

Revelações

Em À espera do tempo – Filmando com Kurosawa, que a assistente dele por 50 anos Teruyo Nogami veio lançar durante a Mostra deste ano, numa edição da Cosac Naify em parceria com a direção do evento, o leitor pode perceber como o talento do cineasta era algo impressionante. São revelações interessantes, mas sem mexericos sobre a vida do mestre, relembradas já a partir de Rashomon, o primeiro filme de Kurosawa em que ela participou, ainda como continuísta. Desde 1950, ela esteve em todos os sets dos filmes dele, sendo que nas últimas realizações alçou-se à condição de produtora.

A Mostra fez duas exibições da cópia restaurada de Rashomon, que ganhou o Leão de Ouro em Veneza, em 1950, e mostrou ao mundo a potência do cinema japonês, até então praticamente desconhecido do Ocidente. No filme, quatro pessoas contam versões, contraditórias, sobre um estupro e um assassinato ocorrido numa floresta (rashomon, em japonês). Adaptada de uma história de Akutagawa, Rashomon é uma das obras canônicas do cinema. Até hoje sua narrativa intrincada, com vários narradores dando versões de uma mesma história, é modelo para inúmeros filmes e problematiza o conceito de verdade ao mostrar que há várias faces de um mesmo fato.

Teruyo Nogami conta muitas histórias sobre Rashomon. Muitas são reveladores do talento de Kurosawa e de como ele estava bem assessorado, principalmente por técnicos brilhantes como o diretor de fotografia Kazuo Miyagawa, que filmou as sombras da floresta como um elemento participativo do filme. E outras são quase desconhecidas, como as dos dois incêndios que o estúdio Daiei sofreu durante a montagem do filme (naquele tempo a película era inflamável). Com delicadeza e respeito, mas com um olho para o humor, Teruyo Nogami conta histórias cativantes sobre Kurosawa, cuja figura, quase sempre reservada, nunca se interessou em passar adiante.