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Niko Schvarz: A vitória no Brasil e a nova América Latina

A vitória contundente de Dilma Rousseff ao conquistar o terceiro governo consecutivo do PT e seus aliados volta a colocar sobre seus trilhos a situação da América Latina. Tonifica as forças de esquerda e sua unidade em nosso continente e no mundo. E se realça porque enfrentou (e derrotou) a mais abjeta e inescrupulosa campanha midiática que jamais se viu, a qual não teve indigestão em acoplar-se o Papa Bento XVI.

Por Niko Schvarz

As cifras, dadas a conhecer com notável rapidez, desmoronaram o andaime de mentiras e especulações montado ao longo das quatro semanas entre os dois turnos, e deram à candidata da coligação Para o Brasil Seguir Mudando uma vantagem de mais de 12 pontos (56.05% a 43,95% de Serra) e de mais de 12 milhões de votos (55.752.508 votos a 43.711.350).
No Congresso se registra uma mudança fundamental. No Senado de 81 cadeiras (das quais foram renovadas duas de cada três), o setor governista passou de 39 a 58 cadeiras, e a oposição caiu de 34 a 22. O PT quase duplicou seus senadores, passando de 8 a 15. Na Câmara dos Deputados de 513 membros, a maioria do governo se ampliou de 357 a 372. O PT passou de 79 a 88 cadeiras, o maior crescimento, é a bancada majoritária e pode aspirar à presidência. Em ambos os casos se supera a maioria qualificada de 2/3, imprescindível para aprovar reformas constitucionais e projetos relevantes do governo como a reforma política, que estiveram trancadas por o governo atual carecer dessas maiorias. No segundo turno foram eleitos ademais 9 governadores, dos quais 5 correspondem à coalizão de governo (Distrito Federal, Amapá, Piauí, Paraíba e Rondônia). Somados aos conquistados no primeiro turno, governarão 17 dos 27 estados, entre eles Bahia, Sergipe, Acre, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco, Espírito Santo e Ceará.

Esta eleição, que agora podemos considerar globalmente, transcorre num momento peculiar da América Latina (e aqui abordo o tema que deixei pendente em meu artigo de 17 de outubro, “Perspectivas brasileiras para o 31 de outubro”). Alinho-me à concepção enunciada pelo presidente equatoriano Rafael Correa de que desde o inicio do novo século e milênio nossa América Latina vive, no já uma época de mudanças mas uma mudança de época, e isso tem sido referendado pela chegada ao governo de forças de esquerda e progressistas, em um leque muito amplo e diversificado em um conjunto de países.

Estão na mente de todos as mudanças que têm sido processadas em nossas sociedades, na Venezuela, no Brasil, na Bolívia, no Paraguai, no Equador, no Chile, na Argentina hoje dolorosamente chocada, na Nicarágua e Guatemala, por último a explosão libertadora em El Salvador com a FMLN e sempre com Cuba socialista que resiste ao império há meio século.

Tudo isso com o advento de novos setores sociais ao governo e um ciclo de transformações progressistas em favor de nossos povos. É neste quadro que as forças da direita e a reação, estão desencadeando uma contra-ofensiva pela volta ao antigo regime, ou em todo caso para impedir que este extenso processo de profundas mudanças se torne irreversível. Têm concretizado seus propósitos no Panamá, no Chile, onde passaram ao primeiro plano remanescentes do pinochetismo, em Honduras com o golpe de Estado e por último no intento de golpe de Estado no Equador, fracassado, mas de extrema periculosidade y cujas brasas ainda não foram apagadas e obrigam a uma vigilância permanente e à solidariedade ativa com o governo do presidente Correa. Porque pode constituir um ensaio de técnicas de subversão, no verdadeiro sentido da palavra, como sem dúvida foi o golpe hondurenho de 2008.

Neste sentido, o Brasil – onde concentram sua ação forças retrógradas de distinta roupagem, com conexões internacionais evidentes- passava a constituir um teste de sobrevivência da esquerda, de suas formas de unidade e de sua capacidade de governar. A resposta do povo foi rotundamente positiva. A esquerda se apresta a seu terceiro governo consecutivo, com o apoio incomensurável de grandes massas cidadãs em todos os aspectos.

É muito importante que isso ocorra no Brasil. Por ser um grande país com quase 190 milhões de habitantes. Pela magnitude da obra transformadora empreendida nos dois governos do presidente Lula, que o próximo se propõe – como Dilma Rousseff expressou – continuar e estender em uma série de medidas concretas, já explicitadas em seu primeiro discurso da noite de 31 de outubro. Porque esses governos mudaram a situação social e a estrutura de classe da sociedade brasileira, tirando dezenas de milhões de seres humanos da extrema pobreza (o programa de Dilma é erradicá-la definitivamente) e elevando outras dezenas de milhões na escala social. E coroando tudo isso com um esforço tudo isso com um esforço concentrado na educação, em sua extensão a todos os níveis com uma qualidade de excelência, assím como na atenção à saúde. O objetivo, em última instância (e isto o reiteraram tanto o mandatário que sai como sua sucessora) é elevar o nível de auto-estima e a dignidade de cada habitante.

O Brasil está fazendo isso e estará em condições de aprofundar, entre outras cosas, porque projeta destinar a estas finalidades o grosso das receitas resultantes da exploração, já iniciada a ritmo acelerado, da camada de pré-sal de petróleo e gás no litoral atlântico, ao que acabam de ser agregadas outras descobertas de um volume ainda maior (superior, diz-se, a todas as reservas já conhecidas do país), o que lhe permitirá transformar-se numa das principais potências petrolíferas, todo isso sob a égide da estatal Petrobras.

Isso contribuirá, ademais, para elevar o papel internacional do Brasil, que já gravita decididamente no cenário mundial. Por uma parte, por sua participação no BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) que concentra 25% do PIB mundial e uma porção considerável da população do planeta. O Brasil passou a ser a oitava economia mundial e a China a segunda, deslocando o Japão. Por outro lado, por sua integração ao grupo do G-20, que logo se reunirá. Em terceiro lugar, por suas iniciativas na solução dos grandes problemas internacionais, como o do Irã, em que uma iniciativa brasileira reuniu ambos os países com a Turquia. Ademais, por sua política ativa de contactos e de intercâmbios com todo o mundo, em particular com os países árabes e com o continente africano. Toda esta política repercute positivamente na América Latina em seu conjunto, na política a levar adiante por seus organismos comuns, como a Unasul, ou nos organismos regionais como o Mercosul, sem esquecer que o Brasil é o principal parceiro comercial do Uruguai.

A projeção internacional da vitória no Brasil tem outro viés, que surge se a comparamos com a situação prevalecente na Europa, onde os partidos de direita e extrema direita conquistaram primazia e aplicam políticas de neoliberalismo radicais de cerceamento da legislação social conquistada em décadas de luta, unidas a um forte componente racista e xenófobo. O Brasil, suas forças de esquerda e sua unidade estão mostrando outro caminho e outra perspectiva, a possibilidade de alcançar objetivos a favor das grandes maiorias, de afiançar a democracia as formas de participação popular no forjamento do destino coletivo, tema enfatizado pela presidente eleita na noite da eleição. Em boa medida estamos falando do destino da humanidade.

E nessa luta renhida na América Latina, a vitória no Brasil reforça o campo da esquerda, de sua unidade e seu sistema de alianças, e tonifica o conjunto dos lutadores pela democracia e as transformações progressistas. Essa perspectiva se afiança no horizonte do continente.

*Jornalista e membro da direção da Frente Ampla do Uruguai

Publicado em Bitácora, suplemento de La República, 7 de novembro de 2010