Maria da Penha: Termos a Lei não quer dizer que ganhamos a guerra

Quatro anos após a criação da lei que leva seu nome, Maria da Penha conta sua história de luta que comoveu organizações internacionais e motivou o Brasil a mudar. A entrevista foi publicada no jornal O Povo desta segunda-feira (15/11) e o Vermelho/CE reproduz na íntegra:

Maria da Penha

A noite do dia 29 de maio de 1983 mudou os rumos da vida dela. Até então trabalhava como farmacêutica bioquímica. Era casada com o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, que conheceu na universidade. Com ele, teve três filhas. Mas o comportamento do marido já não era mais o mesmo dos tempos de namoro. Quatro anos após o casamento, Maria da Penha Maia Fernandes começava a conhecer um homem agressivo, que não tinha dia para estar bem. Ela se sentia acuada, vivia com medo. Naquela madrugada, acordou com o tiro que lhe deixou paraplégica.

Marco Antonio, da cozinha, dizia ter sido vítima de assalto. “Na hora que acordei, que levei o tiro, eu disse: ‘puxa, o Marco me matou’. Eu tive esse pensamento. Aí depois eu vi o movimento, o grito, e disseram que ele tinha enfrentado os assaltantes, pensei que (eu) tinha feito mau juízo e tinha sido assalto. Depois é que ele foi descoberto”. Chamado para depor outras vezes, Marco Antonio apresentou diferentes versões. No fim do inquérito, a Polícia concluiu que não se tratava de assalto e sim de tentativa de homicídio.

No escritório de casa, o armário tem várias medalhas e troféus que rememoram homenagens recebidas. Foi no local de trabalho que Maria da Penha recebeu a equipe do O POVO. A seguir, ela mesma conta a história de luta que comoveu organizações internacionais e motivou o Brasil a mudar suas leis contra a violência doméstica. No dia 7 de agosto de 2006, era criada a lei nº 11.340, que leva o seu nome.

Quando a senhora era menina, tinha planos de casar, sonhava ter filhos?

Claro, né? Tinha um príncipe encantado, mas só quando eu era menina. Depois que amadureci, na época que eu conheci a pessoa que me vitimizou (o colombiano, Marco Antônio Heredia Viveros), eu já tinha os pés no chão, sabia que a gente tem que conviver com pessoas com quem a gente se afina. Ele era uma pessoa que mostrava zelo pela minha pessoa. Relacionava-se bem com meu ciclo de amizades…

Como a senhora o conheceu?

Eu estava fazendo mestrado na USP (Universidade de São Paulo) e ele estava com uma bolsa de estudos também. Ele é da área de economia e eu sou farmacêutica. Ele fazia parte do meu grupo de amizades.

Como ele era?

Era uma pessoa muito legal, muito amiga, fácil de conviver. Nunca demonstrou ser violento, era uma pessoa acima de qualquer suspeita. Aliás, os agressores de mulheres na maioria das vezes, demonstram-se cidadãos de boa conduta, inclusive nas classes mais altas.

Quando ele começou a se mostrar agressivo?

Ele começou a ser agressivo depois dos quatro anos de casados. Depois a gente ficou observando, foi depois de ter sido naturalizado brasileiro. Então eu ficava me perguntando o porquê da mudança. “O que eu fiz?”. Você fica se perguntando.

E como ele se comportava?

Ele era surpreendente. Eu não sabia quando ele ia chegar de bom humor, de mau humor. Ele era mais de gritar, de mostrar que ia partir para uma agressão. Você começa a recuar. Ele era agressivo principalmente com as crianças. Isso era o que mais me feria.

Como era essa rotina?

Era uma rotina muito difícil. Eu tentei muito me analisar. Observei que eu não dava motivo. De tudo eu tentei. Inclusive eu cheguei ao ponto de dizer: “Se a gente não vive bem, por que continuar junto? Vamos separar”. E ele desconversava.

E como foi no dia do tiro? Quais são as lembranças que a senhora tem dessa noite? Vocês chegaram a discutir?

Não, não. A gente tinha ido visitar uns amigos, voltamos. E eu deitei as crianças, me deitei. Quando eu acordei foi com o tiro. Não sei por que, não teve um estopim. Quando os vizinhos correram, ouviram o tiro, as empregadas abriram a porta. A versão primeira que ele deu foi a que ele tinha lutado com quatro assaltantes que tinham entrado na nossa casa e ele tinha sido machucado por eles. Ele foi encontrado na cozinha sentado, com o pijama rasgado e com uma corda no pescoço, dizendo que era uma corda e quiseram enforcá-lo.

E nesse dia a senhora já tinha desconfiança de que ele tinha sido o autor do disparo?

No primeiro momento, sim. Na hora que eu acordei, que levei o tiro, eu disse: “Puxa, o Marco me matou”. Eu tive esse pensamento. Aí depois eu vi o movimento, o grito, e disseram que ele tinha enfrentado os assaltantes, pensei que tinha feito mau juízo e tinha sido assalto. Depois é que foi descoberto.

Teve uma segunda tentativa de homicídio?

Depois que eu voltei do hospital – fiquei internada por quatro meses – cheguei do aeroporto, ele me levou para casa e fui mantida em cárcere privado. Nesse período, acho que uma semana depois deu ter chegado em casa, ele me levou pra tomar banho. Quando ele me conduziu ao banheiro, eu primeiro pedi para ele abrir o chuveiro e coloquei a mão para sentir a temperatura da água, pra saber se estava quente ou não. Eu tinha que tomar banho com água mais ou menos morna, porque eu tinha muita contração. Minhas pernas começam a dar espasticidade (aumento do tônus muscular e exacerbação dos reflexos profundos). Aí a água tinha que ter uma temperatura razoável. Quando botei a mão, eu senti que estava dando choque. Me segurei no boxe, me puxei pra trás. Gritei pelas meninas que estavam em casa comigo e elas já estavam sob aviso de que era pra ficar perto de mim quando ele estivesse em casa. Porque eu estava tratando já da documentação judicial para eu sair de casa. Eu já estava temendo pela minha vida. E eu não queria sair de casa, porque poderia ser considerado abandono de lar e eu perder a guarda das minhas filhas.

Mas nessa tentativa a senhora não chegou a se machucar…

Não. Porque as meninas chegaram e perguntaram: “O que foi?”. E eu: “É que ta dando choque aqui e eu não quero tomar banho”. Aí elas me puxaram e eu saí.

Foi nesse momento que a senhora começou a juntar as peças da primeira tentativa?

Não, eu já estava juntando desde o momento que me senti em cárcere privado. Ele maltratava a mim, às crianças. Ele não queria que ninguém se aproximasse. Então, nesse momento eu senti a gravidade de estar convivendo com uma pessoa que poderia me matar. Eu não dormia à noite. Sempre quando ele saía de manhã, era a hora que eu dormia.

A senhora chegou a formalizar alguma denúncia contra ele?

Eu saí de casa mais ou menos 15 dias depois de ter chegado de Brasília. E eu não formalizei a denúncia. Eu já tinha sido procurada pela Polícia para dar meu depoimento (por causa da primeira tentativa de homicídio). Da primeira vez, eu estava sem condições de falar, porque estava num estado muito grave. Quando eu voltei o processo tinha reiniciado. Com base em algumas coisas que eu tinha dito e alguns dados que a polícia tinha coletado na época, eles começaram a trabalhar a questão e no final chegaram à conclusão de que ele tinha atirado. Ele foi chamado (para depor) e não sabia mais o que tinha dito no primeiro depoimento e se contradisse. Aí nesse momento ele ficou preso por quatro dias. Durante esse período, ele foi interrogado várias vezes e, cada vez que ela era interrogado, ele fazia uma versão diferente. Então eu tenho esses depoimentos e escrevi essa história no livro (Sobrevivi, Posso Contar, da editora Armazém da Cultura). O meu caso aconteceu em maio de 1983. A parte policial foi concluída em maio de 1984.

Depois de ter saído de casa, como você fez para reconstruir sua vida? Tinha as crianças, ele podia querer encontrá-las…

Foi muito difícil, porque isso (ele pedir para ver as crianças) aconteceu. E eu ficava com o coração muito apertado, com medo de um juiz não ter o discernimento de ler, avaliar realmente o processo e impedir uma saída das crianças com ele. Porque ele foi pra Natal. E ele chegou a pedir que as crianças passassem as férias com ele. Então realmente eu passei um momento de muita angústia, esperando o resultado.

E mudou tudo na sua vida, a senhora estava na cadeira de rodas, como foi sua adaptação?

Foi um aprendizado muito grande. Eu sempre me segurei na questão de minhas filhas serem meu maior bem e, por elas, eu precisava vencer. Elas me motivaram a ser o que eu sou hoje.

A senhora saiu de casa com três crianças no colo. O que a senhora fez para se sentir protegida?

Eu me prevenia, não me expunha, não ia pra calçada. Praticamente, ia só pra fisioterapia. E tive esses sobressaltos por conta dessas ações judiciais (movidas por ele) para ver as crianças. Mas uma coisa positiva é que foi constatado que ele tinha sido o autor, ele não foi injustiçado. Isso aí era uma coisa que eu tinha que ter fé e esperança e lutei para que realmente fosse constatado que ele tinha sido o autor da tentativa de homicídio. Ele foi duas vezes a julgamento. O primeiro foi oito anos depois do fato (1991). Ele foi condenado, mas saiu em liberdade por causa de recurso. Mas aí em 96 ele foi novamente a julgamento, foi condenado, saiu do fórum por conta de recursos e graças a deus a gente conseguiu denunciar o descaso da justiça brasileira.

Quem lhe ajudou a denunciar o descaso?

Eu tinha escrito o livro. Depois do primeiro julgamento que ele foi condenado e saiu em liberdade, eu trouxe o processo para dentro do livro, contei a história e o que estava acontecendo. E esse livro chegou às mãos do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), uma ONG do Rio de Janeiro e da Cladem (Comitê Latino Americano do Caribe em Defesa da Mulher). Juntos, conseguimos denunciar o Brasil na OEA.

Depois de quanto tempo, seu ex-marido foi preso de fato?

No primeiro julgamento ele foi condenado a 13 anos de prisão e no segundo foi condenado a 10 anos. E a prisão real só aconteceu pelas pressões internacionais, no ano de 2002, faltando só seis meses para o crime prescrever (ele foi condenado a 13 anos de prisão).

Ele ficou preso quanto tempo?

Dois anos e alguma coisa.

E como a senhora se sentiu depois de tudo isso? Mesmo com as pressões internacionais, ele ter sido condenado a 13 anos e com dois anos ele ter sido solto?

Eu acho que uma pessoa que viveu ameaçada durante quase 20 anos, viu ele ser preso, viu o caso motivar uma mudança tão grande… Eu não tenho do que reclamar.

A senhora teve notícia depois, sobre a história do seu ex-marido?

Não, não.

A senhora imaginava que sua história chegaria a mudar a história de várias mulheres?

Eu estava lutando pela minha história pessoal. E chegou um momento em que a história cresceu da maneira que cresceu. Eu recebo e-mails de pessoas que se identificam com esse mesmo tipo de problema, que estão vivendo ou já passaram a situação que passei. E a gente vai juntando forças.

De quem foi a ideia de a lei ter o seu nome?

Não sei. Eu soube no dia. Quando me convidaram para a sanção da lei, me disseram que ia ter meu nome. Foi surpresa. Fiquei muito feliz.

A lei foi sancionada em 2006. Quais as principais mudanças que a lei trouxe?

A lei ter saído não quer dizer que ganhamos a guerra, porque nós temos muita resistência para a aplicabilidade. Então o meu compromisso é que essa lei seja efetiva e eu estou à disposição para trabalhar nesse sentido. Observo que nos municípios onde ela foi implementada, as mulheres passaram a ter direitos, passaram a denunciar mais. E ao mesmo tempo, às vezes a gente encontra um caso ou outro onde a lei não foi devidamente aplicada. Por quê? Porque ainda é muito forte a questão cultural. A sociedade ainda acha que o homem é superior à mulher em direitos. Que a mulher ainda deve obediência ao homem. Que a palavra final de um relacionamento ainda é do homem. Então isso precisa ser desconstruído.

O que a senhora acha que ainda é entrave para a aplicação da lei?

Falta conscientização de todos e do poder público. Falta criar mais delegacias da Mulher. É inconcebível Fortaleza ter apenas uma delegacia da mulher para dois milhões e 500 mil habitantes. É inconcebível Fortaleza ter um Juizado da Mulher. O Juizado da Mulher tem mais processos por mês do que todas as outras varas criminais. Então por que não criar mais Juizados, condensar as Varas, já que recebem poucos casos, para dar mais celeridade aos casos de violência doméstica? Então é a cultura interferindo numa decisão administrativa.

Como vai funcionar o Instituto Maria da Penha?

Ele é muito jovem, o CNPJ dele foi tirado em 2009, a gente já tem algumas ações feitas em Recife, porque tivemos a parceria com a faculdade Maurício de Nassau. E a nossa diretora pedagógica é de Recife. E nós estamos com alguns projetos para serem iniciados agora em 2011. Vai funcionar em Fortaleza. A nossa principal missão é trabalhar para que o artigo primeiro da lei seja efetivamente implantado. Que é tentar de todas as formas coibir a violência doméstica contra a mulher, através da educação, da informação.

Saiba Mais

PRISÃO Com a Lei Maria da Penha, a pena máxima foi aumentada para 3 anos, acrescentando-se mais 1/3 no caso de portadoras de deficiência.

ANTES E DEPOIS
Antes da lei, não existia legislação específica sobre a violência doméstica. Depois, a lei passou a tipificar e definir a violência doméstica contra a mulher e estabelecer as suas formas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.Foram criados Juizados Especializados de Violência Doméstica.

Fonte: O Povo