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Volodia Teitelboin: Desolação, raio negro ou celeste?

A vida e a obra de Gabriela Mistral são magistralmente retratadas no livro Gabriela Mistral Pública e Secreta, de Volodia Teitelboin (Ediciones Blat, Santiago do Chile, 1991).

Intelectual marxista, homem de duas vocações pois além de escritor foi dirigente do Partido Comunista do Chile, Volodia fala-nos no texto abaixo, do arrebatamento que os versos da poetisa provocam, como um vulcão a vomitar fogo e lava.

Desolação, raio negro ou celeste?

Por Volodia Teitelboin
Tradução: José Reinaldo Carvalho 
Enquanto isso, a estrela de Gabriela se acendeu no ciclo de Nova Iorque. Não por um norte-americano mas por um espanhol, Federico de Onis, que dava aulas na Universidade de Columbia e pronunciou uma conferência no Instituto de las Españas; fala de uma desconhecida; suas palavras soam talvez excessivas, com tonalidades de fanfarra. Esse tipo de auditório ouviu muitas vezes louvores fora de órbita. O público, formado sobretudo por profesores ianques de espanhol,escuta com certo ouvido cético. Provas, provas da pretensa descoberta!

Federico de Onís começa a ler poemas. É uma poesia violenta. Sua palavra quebra pedras, dá calafrios nos corações.

– Quem é ela? – exclamam os mais atônitos

– Onde está?

Que se apresente! E se não pode vir, por favor, continue lendo seus poemas, senhor professor Onís, porque essa poesia nos deixa pasmos, tira-nos a tranqüilidade, traspassa-nos por dentro, como se nos enfiassem um vulcão entre o peito e as costas. E o maldito está em erupção, vomita fogo e lava. E, como se não bastasse, o desgraçado nos faz sofrer e além de gritar e estremecer é belo, ferozmente belo, nos dá vontade de chorar e temos a sensação de um grande mistério, o mistério do ser e do morrer. Por favor, que pelo menos cheguem seus livros, para que os tenhamos em casa para lê-los à noite, perder o sono e ter pesadelos.

– Não. Não há livros dela. Nenhum foi editado – Responde o professor.

– Então copilemos nós mesmos esses poemas. Editemo-los sem falta.

Foi assim que apareceu publicado em Nova Iorque seu primeiro livro, Desolación (Desolação) , em 1922.

Talvez isso tenha envergonhado um pouco os chilenos. E logo saiu em Santiago uma segunda edição, com um prólogo de Pedro Prado, dirigido aos poetas mexicanos.

Anos mais tarde ela dirá algo sobre seu descobridor nos Estado Unidos:

Um espanhol dirige moralmente o corpo de professores de castelhano nos Estados Unidos; um espanhol antiquado da época grande, um extraordinário nome que, como o de Lope, que ele ensina, balança entre os séculos 16 e 17. Ele podería dizer que tem o pé direito no primeiro, por seu amor ao gênio folclórico da Espanha, e poderia acrescentar que direciona o outro para o Renascimento, por causa de seu temperamento de homem de missão na América do Norte…

Seu amigo, embaixador mexicano no Chile, o poeta Gonzalez Martinez, cujo trato Gabriela recomendava a Manuel, propunha dobrar “o pescoço do cisne de bela plumagem” do modernismo.

Desolação é a obra de uma última modernista ou de uma primeira pós-modernista? Mas que significado tem espartilhá-la em escolas quando ela não as professou? Ela foi uma autodidata que aprendeu mais ou menos sozinha na vida e esta lhe ditou sua poesia, que não admite classificações rígidas.

Julio Saavedra, em seu prólogo às obras completas de Gabriela Mistral, publicadas pela Coleção Aguilar, sustenta que Desolação não é, pois, um livro de versos como tantos, sem matéria dramática. Ao contrário, seu lirismo deita raízes em uma tragédia vivida e nos sentimentos derivados. Não é produto da imaginação servida por uma sensibilidade feliz; é a sensibilidade mesma de uma neurose, exteriorizada quase sem imaginação: é poesía e não arte de artífice.

Desolação é livro capital da poesia latino-americana do século 20 e um dos mais singularmente trágicos.

Com fins pedagógicos a autora o divide em seções: Vida, A Escola, Infantis, Dor, Natureza, Canções de Ninar e Prosa. E dentro da Prosa Escolar, Contos. Tal índice nos dá uma idéia do incêndio que calcina seus versos, sem terminar de consumi-los jamais.

Esse livro preencheu textos escolares de nossa época, editados por Manuel Guzmán Maturana. Aprendemos de memória muitos deles. Ainda continuam comovendo-nos o Credo (Manuel Magallanes é o destinatário incógnito dos mais desolados).

Desvelada:

Como sou rainha e fui mendiga, agora
vivo em puro tremor de que me deixes
e te pergunto, pálida, a cada hora:
«Ainda estás comigo? Ai! Não te afastes!»

Vergonha:

Se me olhas, torno-me bela
como a erva em que caiu o orvalho,
e não reconhecerão minha gloriosa face
as altas canas quando desça ao rio.

Também «Tribulação», especialmente «Noturno» e «Os sonetos da morte»,
junto a «Interrogação». Em «Ceras eternas» delata sua obsessão:

Ah! Nunca mais conhecerá tua boca
a vergonha do beijo que jorrava
concupiscência, como espessa lava…

E em A prece

Senhor, tu sabes como, com aceso brio,
por seres estranhos minha palavra te invoca
Venho agora pedir-te por um que era meu,
meu vaso de frescura, favo da minha boca

Neruda (na foto, ao lado de Mistral) visualiza que ela abriu a porta a uma emoção poética sem paralelo no continente. Em 1954 escreve:

É tal a força torrencial dos Sonetos da morte, que foram ultrapassando sua própria história, deixaram para trás o núcleo desolador da intimidae e ficaram abertos e descascados, como novos acontecimentos em nossa história poética americana. Têm um som de águas e pedras andinas. Suas estrofes iniciatórias avançam como lava vulcânica. Prendemos a respiração, algo vai acontecer e então os tercetos caem em avalanche.

Quiçá poucas vezes foi mais verídico aquele dizer de Walt Whitrnan: «Não leio um livro.Toco um homem». Neste caso tocamos até as entranhas da alma de uma mulher, que parece condensar em suas páginas boa parte da dor. Ela estava consciente de que em Desolação a desdita pesa como uma montanha que oprime o peito. Queria doravante respirar ares mais benévolos. Por isso, para ela este livro quer ser catarse e adeus a um passado terrível. No futuro ela se propõe escrever com menos «pathos». É o que diz, como um colofão, na página final de Desolação:

Deus me perdoe este livro amargo e os homens que sentem a vida como doçura me perdoem também. Nestes cem poemas fica sangrando um passado doloroso no qual a canção se ensanguentou para aliviar-me. Deixo-o atrás de mim como a um buraco profundo e por ladeiras mais clementes subo às mesetas espirituais onde uma ancha luz cairá sobre meus dias. Eu cantarei a partir delas as palavras da esperança, cantarei, como um misericordioso o quis, para consolar os homens. Com trinta anos, quando escrevi o Decálogo del artista, fiz esse voto. Que Deus e a vida me deixem cumpri-lo.

Cumpriu… em parte. Há muita gente que lamenta.

A poesia que escreveu depois saía do mesmo espírito, brotava da mesma mão, mas era diferente. Muitos leitores o sentiram porque crêem que ela nunca voltou a escrever um livro de poesia tão comovido como o primeiro.