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Adeus Édouard Glissant, lutador antirracista e anticolonialista

O escritor caribenho Édouard Glissant ―um dos símbolos da cultura caribenha e criolla, escritor imprescindível para o pensamento e as letras americanas, morreu em Paris em 3 de fevereiro; ele tinha 82 anos de idade. Nascido na Martinica, Caribe francês, ele desenvolveu a teoria da “criollização” e em seus romances, poemas e ensaios abordou os temas da escravidão, racismo e colonialismo, questionando a identidade pós-colonial.

Foi autor de uma vasta obra poética e narrativa onde é notável seu interesse pela identidade antilhana, a condição pós colonial, a relação entre o espaço Caribe e sua história, as questões da linguagem, dos nexos entre o escravismo caribenho e o da América Latina, entre outros importantes temas. É sem dúvida um dos representantes vivos que simboliza uma geração de escritores caribenhos que repensaram o Caribe desde sua riqueza e diversidade cultural.

Formado em etnologia pelo Museu do Homem de Paris e em Filosofia pela Universidade da Sorbonne, foi um defensor da solidariedade entre os povos e do respeito à diversidade. Participou dos círculos e fóruns literários e artístico do movimento negro de emancipação e, na década de 1950, participou dos movimentos de protesto da esquerda francesa.

Suas reflexões apontaram como “o Caribe é uma realidade cultural” aberta “sempre a outras culturas”, reforçando a ideia de que “um negro Cuba, um branco de Guadalupe e um índio do Haiti participam da mesma identidade”, como escreveu o próprio Glissant. Esse espírito o levou a engendrar uma obra artística a cavaleiro entre o poético e o político, em que as imagens metafóricas e as lendas convivem com as reflexões teóricas.

Ativo militante anticolonialista, ele apoiou a guerra pela independência da Argélia. Companheiro de Frantz Fanon, cujas ideias partilhou, em 1959 Glissant fundou, com com Paul Niger, a frente antilhana-guianense pela independência e por isso foi das Antilhas francesas e exilado na França metropolitana entre 1959 e 1965, ficou durante muito tempo em prisão domiciliar.

Em 1958 seu romance La Lézarde recebeu o premio Renaudot, dando reconhecimento internacional a este intelectual revolucionário. Seu trabalho abriu o caminho para que outros escritores criollos desenvolvessem seus trabalhos, como Patrick Chamoiseau, vencedor do premio Goncourt em 1992.

Ele voltou à Martinica em meados dos sessenta, e lá fundou o Instituto Martinicano de Estudos e a revista Acoma. Foi diretor da revista Correio da Unesco entre 1982 e 1988, do Centro de Estudos Franceses e Francófonos da Universidade da Luisiana e desde 1995 foi professor da Universidade da Cidade de Nova York ele foi uma das grandes vozes da literatura francesa criollizada.

O texto que apresentamos abaixo, retirado do livro Le discours antillais (O discurso antilhano, de 1981) dá uma amostra de sua visão política de um mundo baseado na diversidade dos povos e das culturas.

Deixou uma extensa bibliografia onde se destacam títulos como: Un champ d’îles, Les Indes, La Terre inquiete (1955), La Lézarde (1958, Prêmio Renaudot), Le sel noir (1960), Monsieur Toussaint (1961), Le Quatrième Siècle (1964), Le discours antillais (1981), La case du commandeur (1981), Poétique de la Relation (1990), Tout-Monde(1993), Traité du Tout-Monde (1997), Mahagony (1997), Malemort (1997), Sartorius… (1999), Le monde incréé (2000), Pays rêvé, pays reel (2000), Ormérod (2003), La cohée du lamentin (2004), Une Nouvelle région du monde. Esthétique 1, (2006).

Da Redação, com informações de La Ventana

O mesmo e o diverso
Por Édouard Glissant
Consideramos os avatares da história contemporânea como episódios desapercebidos de uma grande mudança civilizacional, que é passagem: do universo transcendental ao Mesmo, imposto de maneira fecunda pelo Ocidente, ao conjunto difratado do Diverso, conquistado de modo não menos fecundo pelos povos que conquistaram hoje seu direito à presença no mundo. O Mesmo, que não é uniforme nem estéril, pontua o esforço do espírito humano em direção a essa transcendência de um humanismo universal sublimando os particulares (nacionais). A relação dialética de oposição e de ultrapassagem compreendeu, na história ocidental, o nacional como obstáculo privilegiado, que era preciso conquistar ou vencer. Neste contexto, o indivíduo, considerado como veículo absoluto da transcendência, pôde afirmar de maneira subversiva seu direito a contestar o acidente particular embora nele se apoiando. Mas, para nutrir sua pretensão ao universal, o Mesmo requisitou (teve necessidade de) a carne do mundo. O outro é sua tentação. Não ainda o outro como projeto de acordo, mas o outro como matéria a sublimar. Os povos do mundo foram então presa da cobiça ocidental, antes de encontrarem o objeto das projeções afetivas ou sublimantes do Ocidente.

O Diverso, que não é o caótico nem o estéril, significa o esforço do espírito humano em direção a uma relação transversal, sem transcendência universalista. O Diverso tem necessidade da presença dos povos, não mais como objeto a sublimar, mas como projeto a por em relação. O Mesmo requer o Ser, o Diverso estabelece a Relação. Como o Mesmo começou pela rapina expansionista no Ocidente, o Diverso nasceu através da violência política e armada dos povos. Como o Mesmo se eleva no êxtase dos indivíduos, o Diverso se expande pelo elã das comunidades. Como o Outro é a tentação do Mesmo, o Todo é a exigência do Diverso. Não é possível nos tornarmos trinidadianos ou quebequenses, se nós não o formos; mais é, contudo, verdadeiro que se Trinidad ou Quebec não existissem como componentes aceitos do Diverso, faltaria algo à carne do mundo – e hoje nós conhecemos esta falta. Dito de outra forma, se era desejável que o Mesmo se revelasse na solitude do SER, permanece imperioso que o Diverso passe pela totalidade dos povos e das comunidades. O Mesmo é a diferença sublimada; o Diverso é a diferença consentida. Se não retivermos os aspectos fundamentais desta passagem (do Mesmo ao Diverso) que são a luta política, a sobrevida econômica, e se não contabilizarmos os episódios centrais (esmagamento dos povos, emigrações, deportações, talvez o mais grave dos avatares que é a assimilação), e se nos mantivermos em uma visão global, perceberemos que o Mesmo, imaginário do Ocidente, conheceu um enriquecimento progressivo, um estabelecimento harmonioso do mundo, como pôde "passar", sem ter que confessar, da ideia platônica à nave lunar. Os conflitos nacionais marcaram do interior o clã do Ocidente para uma única ambição, que era impor ao mundo como valor universal o conjunto de seus valores particulares. É assim que o slogan circunstanciado da burguesia francesa de 1789, "Liberdade, Igualdade, fraternidade", tendeu durante muito tempo a significar de maneira absoluta um dos fundamentos do humanismo universal. O mais belo sendo o que efetivamente ele significou. Foi ainda assim que o positivismo de Augusto Comte tornou-se realmente uma religião na América do Sul para uma elite "descentrada". O que se chama em toda parte a aceleração da história, que provem da saturação do mesmo, como de uma água que transborda de seu continente desbloqueou em toda parte a exigência do Diverso.

Esta aceleração, levada pelas lutas políticas, fez com que os povos que ainda ontem povoavam a face escondida da terra ( como houve durante muito tempo uma face escondida da lua) tiveram que nomear-se diante do mundo totalizado. Se não se nomeassem, amputariam o mundo de uma parte de si mesmo. Esta nomeação assume formas trágicas (guerra do Vietnam, esmagamento dos palestinos, massacres na África do Sul), mas passa também pelas expressões político-culturais salvamento dos contos tradicionais africanos, poemas engajados dos militantes, literatura oral (oralitura) do Haiti, consenso difícil dos intelectuais antilhanos, revolução tranquila no Quebec. (Sem contar os avatares insuportáveis: "impérios" africanos, "regimes" sul americanos, auto-genocídios na Ásia, dos quais poderíamos pensar que eles constituem o "negativo" – que não pode ser possuído – de um movimento planetário). Chamo de literatura nacional esta urgência para cada um de nomear-se diante do mundo, isto é, esta necessidade de não desaparecer da cena do mundo e de contribuir, ao contrário, à sua ampliação.

Consideremos a obra literária em seu alcance mais amplo; podemos convencionar que ela satisfaz a dois usos: existe função de dessacralização, de heresia, de análise intelectual, que consiste em desmontar as engrenagens de um sistema dado, em pôr a nu os mecanismos escondidos, em desmistificar. Mas existe também função de sacralização, função de agrupamento da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia. Digamos, parodiando Hegel e seu discurso sobre o épico e a consciência comunitária, que a função de sacralização seria o fato de uma consciência coletiva ainda ingênua, e que a função de dessacralização é o fato de um pensamento politizado. O problema contemporâneo das literaturas nacionais, tais como as concebo aqui, é que elas devem aliar o mito à sua desmitificação, e a inocência primeira à inteligência adquirida. E que, por exemplo, no Quebec, as inquietações de Jacques Godbout são tão necessárias quanto os enlevamentos inspirados de Gaston Miron. É que estas literaturas não tiveram tempo de evoluir harmoniosamente, do lirismo coletivo de Homero ao dissecamento de Breckett. É necessário que assumam de uma só vez, o combate, o militantismo, o enraizamento, a lucidez, a desconfiança de si mesmo, o absoluto do amor, a forma da paisagem, o nu das cidades, as ultrapassagens e as fixações. É o que eu chamo de nossa irrupção na modernidade.

Contudo, uma outra passagem tem lugar hoje, contra a qual nós nada podemos. É a passagem do escrito ao oral. Eu não estaria longe de acreditar que o escrito é o vestígio (trace) universalizante do Mesmo, onde o oral seria o gesto organizado do Diverso. Existe hoje uma vingança de muitas sociedades orais que, do próprio fato de sua oralidade, isto é, de sua não-inscrição no campo da transcendência, suportaram, sem poder defender-se o assalto do Mesmo. Hoje o oral pode se preservar ou se transmitir, de povo a povo. Parece que o escrito poderia transformar-se cada vez mais à medida do arquivo e que a escritura estaria reservada à arte esotérica e alquimia de alguns. É o que se manifesta na proliferação poluente de obras de livraria, que não são o símbolo da escritura, mas a reserva sabiamente orientada da pseudo-informação.

O escritor não deve velar a face diante de tal constatação. Pois a única maneira, na minha opinião de preservar a função da escritura (se cabe fazê-lo), isto é, de separá-la de uma prática esotérica ou de uma banalização informativa, seria de irrigá-la com as fontes do oral. Se a escritura não for preservada das tentações transcendentais, por exemplo, inspirando-se nas práticas orais, teorizando-as se for o caso, acredito que ela desaparecerá como necessidade cultural das sociedades futuras. Como o Mesmo não será extinto nas vivacidades surpreendentes do Diverso, a escritura se fechará no universo fechado e sagrado do signo literário. Aí poderá realizar-se o sonho de Mallarmé, que também é o de Folch-Ribas, velho sonho do Mesmo, de abrir-se ao Livro (com um L maiúsculo). Mas não será o livro do mundo. Uma literatura nacional apresenta todas estas problemáticas. Ela deve significar a nomeação dos povos novos, o que chamamos seu enraizamento, e que é hoje sua luta.

Tradução: Normélia Parise, do livro Le discours antillais. Paris, Seuils, 1981.