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Marco Albertim: Levem minha memória também

Deu tempo só de debruçar-se no portão. Os homens sabiam de seu tédio a novelas, do costume de ficar sozinha, costurar as horas à espera do filho. Presa fácil, na solidão de viúva. Tinha incertezas tanto quanto a vizinha, e as juntara com a espera de mudar de vida. O que não esperava era sofrer mudança brusca com a chegada da Veraneio. Dois homens descem.

Por Marco Albertim*

– Polícia!

No Distrito, sentam-na na frente do delegado.

– Não estou interessado no seu caso, minha senhora. Não quero saber o que está acontecendo. Não sei por que a trouxeram para a minha delegacia. O que eu sei mesmo é prender bandidos, gatunos. E não conheço a senhora!

– Por que não me tira daqui?

– Não é comigo. Já disse…

O chão do lugar está sujo. As paredes, borradas, sustentando um forro com um rachão no meio. Telefone barulhento, disputando com os gritos dos homens.

– Seu filho, onde está seu filho? – pergunta-lhe de chofre o homem de linho.

– Na escola.

– Não está, não foi para a escola. Estivemos o dia inteiro à procura dele. Quem o avisou que estamos atrás dele?

– Não sei.

– Com jeito… com jeito – sopra o outro no ouvido dele. Em seguida, oferece um copo com leite a ela.

– Não quero.

Não sabe, não quer saber do filho, se o preço for entregá-lo àqueles homens.

Interrogatório vão no cartório do delegado. Meia-noite.

– Não quero mais essa mulher na minha delegacia. Já disse. O caso não é da minha delegacia. Cuidem de levar essa mulher daqui!

Na mesma Veraneio, trazem-na para a casa. Não quer dormir sozinha. Vai para a casa da irmã, de táxi. No dia seguinte, falta ao trabalho, dois dias sem ir ao trabalho. A semana finda, nem sinal do filho. A roupa dele em casa… E não lhe dera dinheiro.

Toda a semana ele passa sem sair do quarto do convento, em companhia de um Cristo na parede. Comendo ali mesmo, que não pode sentar-se no refeitório com mais de uma dezena de carmelitas, o prior no mando. Sorte sua, a cela ter banheiro e latrina.

– Não pode ficar por mais tempo, Venâncio. No máximo dois dias – diz-lhe o frade que trouxera comida e jornal.

Não tem seu retrato, só notícia dando conta de subversivo com paradeiro incerto. Nome completo, repetido três vezes em matéria de três parágrafos. Não tem, Venâncio, o costume de rezar. Olha para o Cristo, sentindo-se um intruso.

O frade volta para dizer que há uma Veraneio do outro lado da calçada do convento. Os ocupantes não descem, não tiram os olhos do portão. Venâncio olha da janela, das fendas. Polícia, campana da polícia.

– Não posso sair agora.

– Já falaram com o prior. O prior disse que não há ninguém no convento além dos frades. Mas não se convenceram.

– Os jornais não mencionam minha mãe. Notícias dela?

– Não, não sabemos nada.

Antônia, depois de seguidas visitas de estranhos perguntando-lhe pelo filho, pedira demissão. Ainda que não a vigiem, não tem condições de pensar no trabalho. Vai em casa, abre as gavetas da escrivaninha de Venâncio. Nunca examinara os papéis dele. Encontra um monte de papéis escritos com tinta de mimeógrafo. Não entende tudo, só semelhanças com o que ouvira dele sobre o governo. Leva tudo para os fundos, acende um fósforo e queima. Na rua, os polícias espreitando a casa. A vizinha entra, assustando-a.

– Também foram lá em casa, perguntando por Venâncio.

– Não deve demorar aqui. Vão suspeitar de você.

– Tome. Vim devolver os discos que ele me emprestou. Tem notícias dele?

– Não… e não quero! – desconfia da própria vizinha.

Venâncio, com a pressão do prior sobre os frades, burla a campana arriscando-se no muro alto dos fundos. Não tem para onde ir, a não ser à noite, quando o levariam para uma casa desconhecida. Esconde-se nos arbustos da mata de Paulista, perto do convento. Fica num lugar alto, observando o trânsito na rodovia, nas avenidas. Desce à noite para o centro, esquina da fábrica de tecidos, misturando-se com os operários da saída do turno.

– Trouxe-lhe algum dinheiro – diz-lhe Turbino. – Não temos ainda para onde levar você. Talvez amanhã. Terá que dormir num hotel onde não peçam identificação.

Vão para os Milagres, em Olinda. Uma dezena de hospedarias na frente do mar, das rochas do quebra-mar. Luz vermelha em cada terraço, salas escuras, radiovitrolas de fichas; corredores de rumo incerto. Conversam sentados no muro do terraço.

– Está cheio de mulheres aí. Se eu alugar um quarto para dormir sozinho, vão suspeitar de mim.

– Durma com uma mulher.

– Vou escolher a melhor…

Conversam por mais uma hora, entram. Fichas para músicas, cervejas. Sorriem para as mulheres, dispondo-se à prostituição.

– Estou com fome – diz a mulher. Modo fácil de confessar a fome; estômago vazio, a fome instigada pela dona do bordel. O garçom traz filé-com-fritas. Outra cerveja.

– Não podemos gastar muito – lembra-o Turbino.

A mulher se levantara para pôr outra ficha.

– Vá embora – diz Venâncio. – Ela não vai querer prolongar a farra com apenas duas pessoas.

Turbino sai. Não demora dez minutos, e Venâncio está na frente do catre.

Aplicada no ofício, ela desabotoa a camisa dele. No segundo botão, antes de maçar-se, ele a interrompe.

– Pode deixar.

Baixa, morena, seios bicudos e moles, sem cabelos no ventre. Sabão de coco, todo o corpo cheirando a sabão de coco. O coito á rápido. Lava-o no pênis e enxuga-o. Depois se lava.

– Quem lhe trouxe para aqui? – quer saber Venâncio.

– Não sou daqui.

– Não está trabalhando!?

– Quero receber salário.

– Não procurou?

– Só aceitam com experiência. Nunca trabalhei em escritório. Sei ler e escrever. Estudei datilografia.

– Onde?

– Em Gameleira. Nasci em Gameleira.

– Onde mora?

– Em Peixinhos, num quarto alugado. Moro com uma amiga também de Gameleira. Ela já trabalha num escritório. Quando tiver vaga, vai me avisar.

Antes de meia-noite, camburões na frente. Batida policial. A dona da pensão, servil, mostra o caminho. Os quartos são abertos. Documentos, a polícia quer ver os documentos de cada ocupante, com exceção das mulheres. Venâncio mostra a identidade. O policial militar examina-o, não o conhecia. Revista seus bolsos à procura de drogas. A mulher permanece enrolada no lençol. Só uma blitz, informam-no.

No quarto vizinho, maconha. Os dois ocupantes são levados.

De manhã, a mulher olha para Venâncio, pedinchona, sem dizer a que preço se alugara. Tem bondade nos olhos, bondade e uma vaga confiança. Distingue, ele, a tabela de preços nas duas pupilas. Paga-a com o instinto do mundo. A mulher sorri, submissa. Instila colônia nas orelhas dele, nos sovacos. Quer saber quando voltará; não pergunta, a bem do ofício não pergunta. Ele, despachando-se da prostituição, deseja-lhe boa sorte.

– Obrigado.

Turbino esperava-o do lado de fora, distraído nos recifes. Terá, Venâncio, que se esconder na pensão onde Turbino mora. Entrar à noite, tarde, para não pagar a estada nem pôr o nome na ficha dos hóspedes. Volta sozinho para as matas de Paulista. Compra água mineral e biscoitos, e rapadura para ter sustância.

Mais tarde.

Turbino, com uma chave da pensão, abre a porta da frente, da sala e do quarto no fim do corredor. Oculto, com farta vizinhança, Venâncio sente-se em casa. Reeduca os intestinos e a bexiga, para evitar precisão em hora de rush no corredor. A proprietária, agiota, para precaver-se de maus pagadores, fiara-se em telefones de polícias.

No quarto de Turbino, apenas uma cama e espaço para outra. Venâncio acomoda-se num colchonete. No fim da semana, a faxineira terá que entrar para varrer e encerar, colher teias de aranha. Silêncio, os dois fazem votos de silêncio para não ser ouvidos. Turbino não gostava de falar mesmo. Quando não estava lendo, rabiscava crônicas, elogios à beatitude da vizinha que jurara ter sido ele o único hóspede a dormir com ela.

Comendo frutas para não rebelar os intestinos, Venâncio recende o quarto a maçãs, sapotis. No terceiro dia, sente enjoo e atrai mosquitos voando em torno das cascas maduras. De madrugada, o lixo é levado para o lado de fora.

A vizinha presta um grande favor ao vizinho oculto. Turbino na cama dela, Venâncio ocupando a dele. Não a noite inteira que a vizinhança não devia saber dos coitos. Antes de amanhecer, ele volta. Uma manhã, Venâncio, grogue de sono, cumprimenta-o pensando que é uma mulher; cumprimenta-o para afastar o agouro do vulto indistinto.

– Psssiu…

– Traga-me alguma coisa para ler. Passo o dia inteiro aqui, sem poder dar um pio!

– Está de quarentena, Venâncio. Vou trazer uma leitura apropriada.

– !…

– Cem anos de solidão.

– Puto!

Antônia, tomando calmantes, seda-se à noite; de dia, parece sonâmbula. Não conseguira dormir; no primeiro sono que tivera, sonhara com o filho morto, pisado por aqueles homens. Quer ir à sessão espírita, ouvir palpites do médium sobre o paradeiro do filho. A irmã aconselha-a a parar com os sedativos. “Vai ficar dependente!” Sob o efeito dos remédios, Antônia acerca-se de uma imagem da Virgem. Antes de se deitar, não reza para não admitir que o filho está marcado para morrer. Venâncio, inda que ateu, tem respeito a sua crença; aflito, pode orar por osmose.

Ele enreda-se na história dos Buendia. Lê o livro em dois dias, surpreendendo-se. Instado a assimilar teorias de guerra, lera-as com esforço para render-se ao sono. Imagina, pois, Macondo ali, entre as quatro paredes; e espremida no canavial de Goyaninha, na beira do rio que lhe transmitira parasito. O livro ceva o ódio que nutrira por usineiros.

Sabe que a mãe, àquela altura, saíra de casa. Instrui Turbino a ir lá, espreitar a rua. Caso não haja automóvel suspeito, deve entrar, abrir o guarda-roupa e tirar calças, camisas. Só tem a roupa do corpo. Turbino vai com uma cópia da chave da frente. Noite, deserto na rua sem calçamento da Estância, entra sem acender a luz. Na sacola sob os cabides, põe as roupas.

Na véspera da faxina, despacha-se Venâncio dali. Instala-se num apartamento no Bongi, de onde pode se distrair com corridas de cavalos no hipódromo. Turbino ficara para trás, catando musas nos peitos da vizinha.

Reconhece o morador com alegre assombro; é Miltinho, única bicha dos estudantes insubmissos. Não era líder, gozava de estima por causa dos arroubos. Nas ruas, ajoelhava-se na frente de carros, burlesco, com os braços para cima. “Pare para lutar contra a ditadura!” Fazia da militância um teatro.

Venâncio abraça-o como há muito não o visse. Miltinho mira-o dos pés à cabeça.

– Deus do céu! Será a cena da ressurreição!

Cobre-o de gentilezas, quer saber de seu estado de saúde, se tem fome. Acha-o magro, tira do refrigerador o feijão que preparara, feijão e arroz; e assa filés. Venâncio, uma semana comendo laranjas, maçãs, farta-se no tempero da cozinha.

Antônia voltou a casa. Não viu as roupas do filho no guarda-roupa. Assusta-se com o risco que ele correra. Não desconfia de portador, não conhecia Turbino. Os discos, todos no lugar. Ouve Caetano Veloso, chora. Venancinho, sem lenço, sem documentos. Ouve um ruído de veículo na frente. A Veraneio estacionara do outro lado, os polícias espiando sem sair de dentro. Aumenta o volume, do jeito que o filho ouvira a música. A vizinha entra. Os polícias ronronando feito gatos. Lágrimas grossas nas olheiras de Antônia; choraria do mesmo jeito se tivesse partilhado a crença do filho.

A vizinha prepara chá de camomila. Bebem caladas, para não arriscar palpites sobre a sorte de Venâncio.

A música abafa o choro de Antônia, instiga suspeitas nos polícias. Podia, ela, estar em conversa com o filho. Sem avisar, dois troncudos esbirros invadem a casa, olhando quartos, cozinha, quintal. O choro da mulher deixa-os atônitos. A vizinha se levantara, encolhendo-se num canto. Para não voltarem sem despojo, arrancam da parede o retrato na moldura com Venâncio. Pânico. Antônia segura no braço do homem. No caixilho cor de vinho, o filho em pé, braços cruzados, olhando para o Capibaribe.

– Levem minha memória também! – O grito chama a atenção. Junta gente no portão. Houve quem gritasse.

Alívio no peito de Antônia depois do grito. A vizinha, chorando, senta-a depois de puxá-la pelo braço. Tira o disco da vitrola, vai beber água.

Uma semana de confinamento. Miltinho, destro na peleja contra o tédio, mostra livros, discos. Estava lendo Redenção para Job, seu cânon. Não eram poucos os escritores veados na estante. Não indica nenhum a Venâncio, embora com o sumário à vista, multicor, à parte de outros autores. Em tarde de corrida de cavalos, não se debruçava na janela.

– Aponte um país socialista onde há corrida de cavalos! Cavalos são úteis na agricultura de países atrasados, ou para transportes. Em países sérios, o que ressalta é o seu caráter utilitário, não a exposição frívola de seus músculos.

– Sua janela é panorâmica para o hipódromo. Por que escolheu morar aqui?

– Minha janela é panorâmica para o vento sudeste. Não sinto calor aqui.

Na mesa posta com zelo, comem ouvindo música baixa. Miltinho, tão ornado quanto as iguarias. Antes de se sentar, tira o avental da cintura, pendurando-o no cabide ao lado do fogão. Dorme tarde, depois do hóspede; na rede, olhando para a janela. Monólogo solitário, combinando revolução social com intentos homossexuais. Ideava uma prisão para direitistas com crimes homofóbicos.

– Grito abaixo a ditadura porque estamos à beira do terror homofóbico!

– Também há homossexuais entre os fascistas.

– São tão enrustidos que são capazes de castrar rapazes para guardar os colhões no congelador. Conheço alguns torturadores bichas. Amassam os ovos dos torturados, depois vão para o meretrício, atrás de rapazes.

Duas semanas de confinamento. Miltinho torna-se tão tedioso quanto sua aversão a veados fascistas. Quer dormir, Venâncio, ele insiste. O risco de prisão, para ele, era um lance de folhetim.

-Tenho sono – diz Venâncio. Confissão repetida três semanas.

Na véspera da despedida, serve o jantar com pratos desenhados na borda, talheres de metal grosso e guardanapo em grampos de metal. Vinho do porto e vela acesa. Trouxe um frango inteiro assado no forno, frango doce, com maçã no oco das vísceras.

– Você é um teatro, Miltinho.

– Vi a revolução francesa no palco. A revolução é um teatro… Estamos vivendo uma cena desse teatro…

– Qual o perfil desse ato?

– Não me diga que é cômico que você me ofende… Não estrague a minha cena, por favor!

Venâncio consente em lhe dar atenção além da conta. Ouve-o, incita a mise-em-scène. Findo o jantar, bebericam. Venâncio é o primeiro a sentir sono. Vai dormir, dá boa-noite. Apaga a luz do quarto, deita-se. Meia hora depois, a silhueta do hospedeiro, sentada na cama, do lado de seus pés. Avinhara-se, Miltinho, vivendo o sonho do socialismo pirobo. Toca, manso, na perna de Venâncio. Venâncio abre os olhos; deixa-se ficar para não demonstrar rejeição. Dócil, decidido, diz:

– Não.

Miltinho recolhe o braço, a mão. Levanta-se para sair do quarto; na porta, vira-se.

– Desculpe.

Deitado na rede, olhando para a janela, dilui os sonhos no vento de seu gosto, e chora.

Despedem-se no começo da manhã, na porta. A vizinha, que saíra do elevador, repara no abraço que se dão.

Fim do mês. Antônia recolhe as correspondências na casa; cartas de amigos, parentes, todas deslacradas. Os parentes querem notícias de Venâncio, revelando detalhes de sua vida. À casa da irmã, também as cartas chegam sem o lacre.

Três meses sem saber de Venâncio, ela torna-se assídua às sessões espíritas, ao divã do psiquiatra. Decidira-se com o psiquiatra pelo fim do uso dos tranquilizantes. À chegada no Recife de médium famoso, procura-o. “Seu filho não está morto”, ouve. “Você saberá se o pior acontecer.”

Sonhos se repetem em lugar de pesadelos. Venâncio soprando em seu ouvido com a quietação dos beiços. Quer, ela, se pôr a seu serviço, para exorcizar a desrazão com que o censurara. O pesadelo de Antônia sumira de seus olhos para alojar-se no juízo; em vez de ter sustos, ela assusta os outros com o rosto perdido numa fixidez imprecisa.

– Venâncio está bem – diz à irmã.

– Como você sabe?

– Se não estivesse, eu não estaria tão serena.

– O que lhe disse o médium?

– Disse que o fluxo da morte circula no sangue, mesmo a morte dos outros. Eu não sinto o fluxo da morte.

– O que você sente?

– Já disse… Paz. Estou tão em paz que não tenho medo da morte.

Venâncio logo voltaria, tão palpável quanto os fluidos que deixara.

Batem na porta. A irmã atende a um rapaz com escassos pelos no rosto.

– Da parte de Venâncio – diz Turbino a Antônia, já sentado no sofá; diz e entrega o bilhete.

A irmã foi à janela olhar para a rua. Não havia carros suspeitos estacionados por perto.

– Não tenho dinheiro aqui. Venha amanhã – diz Antônia.

Entrega no dia seguinte o dinheiro que Venâncio mandara pedir.

Venâncio fizera-se operário numa fábrica metalúrgica de uma cidade não referida na carta, para onde se evadira naquela manhã, num trem que pegara em Porta Larga, longe da estação vigiada. Fiou-se nas recomendações da mãe, no bilhete que ela lhe mandou.

Na Auditoria Militar.

O julgamento de Júlia fora noticiado. Olhos azuis e cabelos incivis, acusada de iníqua conspiração, forçada a dar conta da cumplicidade de Venâncio. Arfa os peitos por causa do busto queimado com pontas de cigarro. O juiz a inquire com os olhos.

– Defenda-se!

– Ataque!…

Pouca gente na sala. Antônia, a irmã, o marido e advogados. Alguém riu. O juiz olha em redor, catando a graça. Silêncio.

– A senhora tem um dossiê farto, de fazer inveja. Não é o mesmo de veteranos. Mas para quem está em começo de carreira, de fazer inveja a seus parceiros mais moços. Orgulha-se disso?

– Não pedi a ninguém para escrever sobre minha vida. Se me consultassem eu daria outra versão.

– Está escrito que a senhora confirmou suas atividades subversivas.

– Foi sob tortura.

– Confirma que o estudante Venâncio Silva de Mesquita foi seu cúmplice?

– Confirmo que sou sua amiga.

– Está escrito que os dois prenderam o diretor da faculdade em sua sala, enquanto faziam discursos inflamados no pátio e espalhavam panfletos atentatórios à autoridade pública.

– Foi sob tortura.

– Não sabe dizer outra coisa!?

Desabotoa a blusa de cima para baixo, desce o sutiã e mostra as equimoses nos peitos.

– Basta! Basta!

Intervalo, sala de trás. Antônia vai cumprimentá-la.

– Não tenho notícias de Venâncio, mas ele sabe que você está sendo julgada, sabe que estou falando com você. Ele está bem, está melhor do que todos nós.

– Sei disso. Ele está em boa companhia.

O juiz passa com a toga roçando, os óculos caídos na ponta do nariz. Júlia recusa o sanduíche que lhe oferecem; bebe água, toma café e fuma.

Fim da audiência.

– Lavre-se nos autos que a acusada infringiu o decoro do interrogatório – ordena o juiz.

Júlia foi condenada a três anos. Venâncio, revel, absolvido por insuficiência de provas. Não pode voltar. Sumira há oito meses, e poderá ser morto sem que o corpo seja encontrado. Coube a Turbino informá-lo. Reencontram-se na margem da linha do trem, no Bebedouro, Maceió.

Lida a sentença, o oficial do Exército apertara a mão de Antônia. Empertigara-se para reconhecer que fora derrotado. Júlia fora levada ao Presídio do Bom Pastor. Não tem familiares no Recife; a mãe, acamada num hospital de velhos em Fortaleza, não deve saber da sorte da filha. Enquanto isso, Antônia a veria na prisão.

Condenado sem sentença de condenação, Venâncio sente-se num túnel sem saída. Turbino, sem prontuário nos arquivos da polícia, sorve a luz do dia.

– Fale-me da avenida Guararapes – recorre ele a Turbino.

– Não precisa sentir saudades do Recife antigo. O prefeito o destruiu.

– E Goyaninha? O rio Goyaninha?

– Agora, uma fábrica de papelão juntou-se à usina no despejo de resíduos no rio. Os peixes estão morrendo. Os pescadores não têm o que pescar.

– O que está vivo por lá, diga-me! Quero manter a memória com algo vivo.

– O caldo de feijão do velho João. Ele o mantém com prazer e ciência. Mas livre-se do passado sem rejeição ao passado. Você agora está num trem.

– Está fazendo graça?

– Não. Você está no trem do futuro. Não tem como voltar. Sinto alguma inveja de você.

– O que nos separa é o prazer da sua rotina, e a comoção da clandestinidade em que eu vivo.

– Está arrependido?

– Estou com saudade.

– Você ainda vai voltar à Guararapes… ouvindo Vassourinhas.

– Tem razão. Se não for ao som do réquiem, será ouvindo o Vassourinhas.

– Mantenha as regras, e tudo se mantém.

– Por falar em regras, sua vizinha de quarto ainda tem regras? – Venâncio distende os nervos.

– Por quê?

– É mais velha que você!

– Tem regras todo mês… Respeitadas.

– O indisciplinado Turbino curvou-se às regras de menstruação da vizinha! Por que não assume o caso de uma vez, na frente de todos, da vizinhança?

– Ela é viúva, tem limites…

– Ela tem compromisso com o passado, e não confessa.

Maquinando o futuro incerto, Antônia assume-se portadora da escolha do filho. As cicatrizes nos peitos de Júlia pungem-na sem dó, e repulsa a sentença órfã de razão. Se tivesse sua vida seguido a rotina insossa, tornar-se-ia presa descuidada de sustos. Não voltou a cantar no banheiro, para não fingir a dor que tem sob custódia; se cantar, julgam-na demente. Cresce o respeito em seu redor.

– Trouxe-lhe frutas – diz a Júlia. – Como está, minha filha?

– Do jeito que a senhora está vendo. Estou pálida porque quase não vejo o sol. Mas estou bem por dentro, graças as suas frutas.

Doze camas dispostas, nenhum beliche. Janelas com grades de ferro. Na porta de entrada, de madeira grossa, uma portinhola com postigo. Duas polícias no corredor. As camas, todas ocupadas por mulheres iguais a Júlia, sentenciadas por insubmissão. Não podem ler jornais.

– Não, não está havendo demonstrações de rua – diz-lhes Antônia.

– Traga alguma coisa pra gente ler!

– Só permitem a bíblia.

– Tenho o Livro Vermelho. A diretora deixou passar, é uma funcionária de carreira, está cumprindo o tempo para se aposentar.

– Quero ler Graciliano Ramos.

– Por favor, não traga Memórias do Cárcere!

A Júlia, Antônia diz:

– Seria capaz de trocar minha liberdade pela sua prisão.

– Nem que fosse possível. A senhora está sendo útil a todas nós.

– Não têm família, as outras?

– Têm, todas têm. Mas a senhora é a mãe de Venâncio, que conseguiu escapar…

As presas, cada uma com uma sentença, penariam três, cinco, oito anos. A última a sair, dez anos, tinha medo de ficar só, anular-se nas paredes.

– Não vai ficar aqui sozinha, Teresa. Não vai ter sentido. Vão lhe conceder liberdade condicional – pondera Júlia.

Antônia quer redimir-se de erros que não sabe explicar.

Sumido há um ano, Venâncio decide voltar. Não correria o mesmo risco. A vigilância relaxara. Não iria à casa da mãe, reencontraria-a na Estação de Porta Larga. Turbino instrui Antônia com os detalhes. O orgulho entranha-se no inanimado coração dela.

O trem para, focinhando na estação. Venâncio desce sem bagagem na mão, desce do último vagão. Vira-a na frente, ao lado do vagão do maquinista, encostada a um poste. O chefe da estação, olhando-o à primeira vez, pica-se curioso. Em frente ao birô, na parede de dentro, vê o retrato de Venâncio entre outros. O homem ajeita a gravata, caminha na direção dele; segura-o no braço.

Antônia corre para acudir. O trem dá partida, o barulho desfaz-se nos sentidos. Primeiro a alça do vestido, depois o braço procurando o equilíbrio vão…

* Marco Albertim é escritor e jornalista. Ganhador do Prêmio Nacional Osman Lins de Contos. Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em Pernambuco. É colunista do Vermelho.