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Belluzzo: relatório dos EUA é “a autópsia do sistema financeiro”

Em entrevista a Bob Fernandes e Marcela Rocha, do Terra Magazine, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo fala sobre os efeitos da crise que se prolonga neste 2011. Ele também analisa o contundente relatório do Congresso norte-americano que vasculhou as vísceras da crise econômica e financeira, nascida nos Estados Unidos e espalhada pelo mundo. Num estilo agudo que os incautos chamariam de "catastrofista", ele considera o sistema financeiro um "morto-vivo".

O documento – um catatau de mais de 600 páginas – foi elaborado por uma comissão formada por seis deputados do Partido Democrata e quatro do Partido Republicano. Segundo Belluzzo, “o relatório, que é muito bem feito, montado numa trilogia de depoimentos, descrição de fatos e análises, é uma autópsia do cadáver do sistema financeiro nos últimos 30 anos. É a autópsia de um morto-vivo, um zumbi que ainda pode voltar a nos assombrar”.

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Sobre os riscos do boom no mercado imobiliário no Brasil, o economista aponta diferenças entre os movimentos no setor lá e cá. “Tivemos uma subida forte no preço dos imóveis, mas que dá sinais de arrefecimento. Por conta até das medidas que o Banco Central tomou, não em relação ao crédito imobiliário, mas em relação às outras formas de crédito”, comenta.

“A diferença é que no Brasil você não pode usar o seu imóvel e a valorização dele como garantia para extrair mais valor”, agrega Belluzzo. “Na economia dos Estados Unidos, basta que alguns tenham muito para que a economia seja sustentada. Eles estão indo pelo caminho da brasilianização, mas em direção ao Brasil do passado.”

Confira abaixo a entrevista

Terra Magazine: Há alguma semelhança entre esse boom do consumo imobiliário brasileiro com o que ocorreu nos Estados Unidos?
Luiz Gonzaga Belluzzo: Há uma diferença muito grande. Tivemos uma subida forte no preço dos imóveis, mas que dá sinais de arrefecimento. Por conta até das medidas que o BC tomou, não em relação ao crédito imobiliário, mas em relação às outras formas de crédito. A diferença é que no Brasil você não pode usar o seu imóvel e a valorização dele como garantia para extrair mais valor. O cara pagava a escola do filho, o cartão de crédito e até imposto com empréstimos. Na economia dos Estados Unidos, basta que alguns tenham muito para que a economia seja sustentada. Estão indo pelo caminho da brasilianização, para o Brasil antigo.

Terra Magazine: Há, no relatório, um depoimento dizendo que "o sonho americano de ter uma casa para a família se tornou uma commodity". Como o senhor avalia essa afirmação?
Belluzzo: Isso é que é importante. Você pegou um bem de consumo que te produz um serviço não monetário, uma renda não monetária (caso o dono não alugue), e transformou em commodity. Houve uma mudança na forma como o capitalismo americano funciona. Desde os anos 1920 o consumo e o capitalismo foram sendo colocados para dentro. Hoje o consumo tem quase a mesma dinâmica que o investimento.

Como era o consumo quando Keynes escreve a teoria geral? O consumo era uma função da renda, ou seja, quando a economia cresce, a renda cresce, mas o consumo cresce menos porque as pessoas ficam mais ricas e guardam dinheiro… Hoje, não existe mais essa de poupar. O capitalismo foi feito para gastar. Então, fica essa história, que vem das origens da economia política, de que o sujeito cresce porque ele é frugal. No capitalismo, as pessoas gastam para que o sistema funcione. Então, não tem mais essa história. Houve também uma mudança cultural.

Terra Magazine: Existiam vários tipos de contrato nas hipotecas que levaram à quebradeira nos Estados Unidos, alguns com nomes estranhos e que permitiam até mesmo não pagar nada por dois ou três anos…
Belluzzo: É o que Karl Marx escreve no volume três do Capital que é a fraude, a sacanagem. Ele já sacou isso lá atrás. Ele e o Simmel. É que os caras não leram Simmel, muito menos Marx. Keynes fala que virou uma bolha, uma corrente de bolhas no meio da atividade produtiva.

Terra Magazine: Quais são as consequências, as medidas práticas tomadas depois disso tudo, nos EUA e mundo afora?
Belluzzo: Nenhuma. A consequência prática é que eles vão eleger uma pessoa fraca para a presidência da República na próxima eleição. Até agora, está tudo como antes, os bancos estão líquidos, com lucros monumentais, até agora só quatro foram presos. Não há uma nova regulamentação, e a feita foi muito tímida. Obama não teve coragem. Pessoas perderam suas casas, não teve conversa. O banco tomava as casas e as pessoas iam morar em trailers.

Terra Magazine: E consequências mundiais?
Belluzzo: Os americanos entupiram o mundo de dinheiro. O Timothy Geithner veio dizer que isso tudo não tem nada a ver com a valorização do Real, nem com o que eles fizeram, e colocou a culpa nos chineses. Na verdade, eles não podem brigar com a China porque os chineses financiam o déficit deles (EUA) e ainda produzem mercadoria barata. Então, eles bombaram dinheiro para todo lugar do mundo. Têm liquidez, mas não têm crédito. E agora a economia americana está recuperando lentamente.

Terra Magazine: Quais são os riscos sistêmicos hoje? Onde é que estaria o futuro problema?
Belluzzo: No conjunto, o que os republicanos estão fazendo com os estímulos, que é abortá-los. Outro risco está na Europa, onde o estoque de dívida foi absorvido pelo governo depois da crise. A liderança europeia está muito vacilante, hesitante. Parece que agora estão caminhando para uma solução melhor. Tem que fazer uma reestruturação da dívida.

Terra Magazine: E o Brasil nisso?
Belluzzo: O Brasil só vai sofrer se houver outra recessão mundial. Muitos países são importadores líquidos de commodities e há agora um choque no preço delas. Na Inglaterra, por exemplo, tem um baixo nível de atividade e uma inflação projetada para 5%, parecido com o Brasil. As revoltas no Egito não foram determinadas estruturalmente por isso, mas têm a ver. Cortou salário de todo mundo, o poder de compra é menor e o Brasil sofrerá.

Mas isso é uma coisa um pouco discutível, porque os grandes demandantes das commodities brasileiras reduziram um pouco o crescimento – a China caiu de 10% para 8% ou 6% –, mas não para. A não ser que tenha um down geral na Europa e nos EUA, porque o que determina o crescimento chinês são as exportações. Há um conjunto de relações interrelacionadas que exigirão muito tempo para serem resolvidas.

Terra Magazine: Voltando ao relatório, o que se deveria fazer é rediscutir esse modelo?
Belluzzo: A estrutura social e de poder dos Estados Unidos bloqueia uma nova forma de desenvolvimento. Nada foi feito e prepararam um ambiente onde crescer só vai depender das mesmas práticas. Os bancos, de qualquer maneira, farão outras concessões, como podemos ver com as commodities. O que está acontecendo com elas agora? Fez chuva, sol, problemas de oferta, mas com uma taxa de juros muito baixa permite a especulação das commodities. Tem uma bolha aí, uma bolha no setor de alimentos.

Terra Magazine: Como assim?
Belluzzo: O preço nesse setor, dos alimentos como commodities, flutua muito e, em geral, em desfavor dos produtores. A estrutura de oferta é dominada por três ou quatro cartéis e a demanda tem crescido cada vez mais. Obviamente as empresas estão especulando nesse setor, fazendo contratos futuros e ninguém faz nada. Se essa inflação generaliza, as taxas de juros, que hoje estão muito baixas, não têm como subir. E do jeito que a coisa está, um negócio como esse pode acabar com a recuperação do pós-crise.

Fonte: Terra Magazine