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Manuel Scorza: Uma mulher interrompe o relato

Pela porta do La Coupole apareceu então uma mulher. Parou procurando alguém, passeou o olhar pelo salão buliçoso, talvez não tenha encontrado ninguém, pois com passo decidido, penetrou no salão. Sua beleza me alterou, quero dizer: alterou o curso de minha vida. Até um instante atrás, conversava com o editor e o diretor editorial da Edições Universo. Mais que ouvir as desventuras das minhas personagens, o editor parecia cochilar.

Por Manuel Scorza*

De repente acordou, emitiu um comentário que deveria me interessar. Não o ouvi. O buliçoso restaurante e seus comensais, o editor, o Vaca Sagrada, os garçons, os grupos que entravam, os casais que saiam continuam raro existindo dentro dos limites que a desconhecida agora também ocupava, mas como personagens de um filme mudo. A quem procurava? Que ser humano podia merecer o ansioso olhar dessa mulher? Um jovem Picasso provisoriamente desconhecido, certo, porém, de seu gênio, teria conseguido deslumbrá-la? Um combatente revolucionário, um varão marcado pelo heroísmo, indiferente ao perigo, ciente de que sua morte será sempre vida para os outros? Um ser, em suma, irresistível? Busquei nas mesas esse rosto talhado ao mesmo tempo pelo ferro e a ternura, esse varão que retomava invicto dos combates, das perseguições, das emboscadas, só para se oferecer a ela como um caminho diferente, como algo que de maneira alguma podíamos brindar-lhe, simples mortais como nós, meros forjadores de guerras verbais, de contendas de palavras, dissertando em uma mesa em que se decidia o destino de um livro prescindível e não a terrível sorte de um Continente. A desconhecida continuou caminhando. Até os garçons habituados às belas mulheres faziam-se lentos, como que titubeavam para vê-Ia melhor. O editor murmurou algo. A presença de uma mulher incandescentemente bela, em um restaurante ou em qualquer parte, sempre provoca mal-estar. Quantas vezes, eu mesmo, no La Coupole, tinha sido testemunha dos distúrbios causados por esses soberbos exemplares da beleza humana! Quando uma das tais fêmeas entra (e curiosamente o fazem quase sempre sozinhas, como rainhas que um invisível protocolo condena a caminhar sem companhia. E, depois, quem é digno de acompanhá-las?), os homens buscam pretextos para contemplá-las, fingem necessidades fisiológicas urgentes, inventam impostergáveis telefonemas, levantam-se para cumprimentar amigos que jamais cumprimentaram antes, só para passar diante dessa mesa onde se apinham, obsequiosos, os maîtres. Os garçons já telegrafaram o acontecimento à cozinha, todo o pessoal se agita, homens e mulheres desfilam, os homens para admirá-la, as mulheres para encontrar defeitos nela: "A boca é pequena demais", "é, praticamente não tem seios…", "é uma pena que uma mulher tão linda não saiba se pentear", "e nem se vestir, ainda por cima…", isso sem contar o infeliz que tem, diante de seus olhos, os 20 anos de aborrecimento de sua esposa, e atrás dela, em uma mesa próxima e com o rosto em sua direção, esse ser que em uma rua do Renas- cimento teria suscitado a palidez de Leonardo descobrindo a Virgem das Pedras. Feliz, sim, o comensal, mas não de todo, condenado à hemiplegia visual: um olho imparcial, quase de vidro, olhando a própria esposa, e o outro astral, de fogo, prodigiosamente desorbitado. E há também nesses casos o sentenciado a olhar, sem atenuantes, para a. esposa, pois está de costas para a mulher que os matrimoniais olhos invejosos retratam severamente. E sem contar também os que, pretextando um torcicolo, voltarão muitas vezes o rosto, e numa dessas vezes não mais encontrarão a sua convidada. Os maîtres sabem que essas cenas não terminarão ou terminarão mal. As mulheres irritadas cancelarão os pedidos de sobremesa, pretextarão enxaquecas. Os maîtres já têm as contas preparadas, mas às vezes nem podem entregá-las. Com o escândalo da beleza, confunde-se o da inveja, como na vez em que, mortificadas pela aparição de Bruna Negri, três jovens mulheres levantaram as blusas e mostraram seus seios, que, talvez em outra ocasião, teriam provocado alvoroço, mas nunca ali, naquele instante em que tudo era inadvertido, menos os olhos e o cabelo e o corpo e os inimagináveis gestos de Bruna Negri. Um romance sobre a luta armada, agora que… remota soou a voz do editor. A mulher que havia entrado vestia um vestido de seda indiana manchada de flores arroxeadas, simplicidade compensada (surpreendeu-me ainda mais!) por um valioso colar de jade pré-colombiano, que as mãos dos meus ancestrais tinham enfiado há séculos para esse pescoço, para ela, pensei com a dor do inacessível.

Não era a inconcebível simetria de seu corpo nem sua espantosa beleza o que me abalava, o que me fazia padecer, mas um desejo absurdo e selvagem, a visão de um cavalo comendo flores, uma vez que as pessoas sofrem porque são constantes traidoras do próprio desejo. A julgar pelo que temos escutado, penso que a editora… Ele tornou a parar, a meia chuva de seus cabelos negros caiu de repente sobre os milagrosos olhos azuis. Claro que seria melhor não tocar em certos temas políticos… Se bem que, é verdade, a situação social de seu Continente é um escândalo, falar agora da luta armada… Ela pareceu cansar-se. Não era fadiga: era o impulso do corpo aprontando- se para fender a multidão. Em minha opinião, conviria que… Eu escutava cada vez menos. Não sei por quê, olhando-a, recordei-me de outra forma perfeita. Há dias, impossibilitado de expressar o que me era inexprimível, decidi visitar o Jardin des Plantes, próximo do apartamento em que vivia. Ainda fazia frio. A tarde era transparente. Não quis, porém, voltar para buscar um agasalho. Achei melhor abrigar-me na temperatura tropical do Jardin d'Hiver. Encaminhando-me para lá, vi, sobre a fachada do edifício central, um letreiro que anunciava uma exposição de conchas marítimas. Entrei. Sem dúvida por- que a crueza da luz impedia que se apreciassem os delicados matizes dos caracóis, os organizadores tinham optado pela penumbra. Luzes sabiamente escolhidas destacavam com maior plenitude os esplendores submarinos. Iniciava o percurso da exposição quando, no fundo da sala, uma arquitetura perfeita me atraiu. Era, descobri logo, a radiografia de um caracol. Um slide de três metros mostrava, com timidez, a espiral à volta da qual se enroscam os caracóis. Muito tempo, tempo demais na penumbra, eu me entretive admirando os meandros dessa serenidade. Com desagrado, e só porque os guardas me recordaram que era hora de fechar, precisei sair. E então, a um lado da ampliação, distingui um texto informando que esse, como todos os caracóis que povoam os oceanos, era uma espiral enroscada em uma relação matemática constante com sua curva anterior. A espiral do caracol, uma curva polar, era uma espiral logarítmica. A forma que. me maravilhava expressava-se em uma fórmula matemática

 
o
n
P = e
n


Espantei-me. Subitamente, imaginei o fundo do mar, não povoado por miríades de caracóis, mas constelado de símbolos. E não apenas caracóis. As estrelas e os ouriços-do-mar, os caranguejos, os polvos e até os peixes domésticos eram seres recobertos por carnes crescidas na obediência a formas geométricas, todas se expressavam mediante equações precisas e axiomáticas! Mais que atapetado com formas deslumbrantes ou tenebrosas, o fundo do mar me apareceu coberto por uma miríade de fórmulas matemáticas que, talvez — pensei com a dor de não conhecer —, se expressava, por sua vez, em uma fórmula única. Todo o mar, todos os mares, todos os segredos dos mares revelados em uma única equação! E suspeitei que o próprio homem era uma metáfora temporariamente vestida de carne. O homem é carne que cobre uma metáfora, ou uma metáfora que reveste a carne? Além das matemáticas comuns, por enquanto fora do nosso torpe alcance, uma matemática sublime, ainda inalcançável, explica com clareza as obscuridades luminosas do desejo, do ciúme, da recordação, do engano, do esquecimento, do jogo, de revanches, concessões e vinganças do amor e do ódio, esses mistérios que nos torturam? No grande sistema do universo, para q Grande Matemático que se diverte fazendo-nos acreditar que somos algo mais que aparências, meros símbolos condenados a obedecer irreparavelmente o sentido da própria espiral, nossos sentimentos se expressam em equações luminosamente simples? E com dor, com amor, com desejo, eu me perguntei qual seria a equação capaz de me abrir caminho para o amor dessa mulher.

* Manuel Scorza (1928-1983) foi um escritor e poeta peruano. Trecho extraído do livro A Dança imóvel, tradução de Remy Gorga Filho.