Michel Brie: Questões abertas no debate da esquerda
A discussão programática é parte da polêmica da esquerda em geral e do partido A Esquerda em particular, e está relacionada com as tarefas estratégicas. Os conflitos principais concentram-se nos objetivos essenciais e nos caminhos para a conquista de uma mudança fundamental dos rumos políticos atuais.
Por Michel Brie*
Publicado 11/03/2011 11:58
Primeiro: a questão do capitalismo
Nada é mais natural para a esquerda do que a consciência de que vive no capitalismo e opõe-se a ele. Mas também aqui os pensamentos dividem-se. Começando pela simples questão sobre a incrível capacidade de desenvolvimento e de inovação dessa ordem, descrita por Marx em “Manifesto do Partido Comunista” de forma tão exemplar. O capitalismo apóia-se apenas na exploração dos trabalhadores, da natureza, dos povos oprimidos, ou também baseia-se na capacidade e na necessidade de proporcionar novos produtos, tecnologias, e modos de produção e de vida, combinado de maneira sempre nova os meios de produção e a força de trabalho ?
Se o capitalismo é apenas opressão então, seguramente, a sua eliminação é condição suficiente para a libertação. Mas caso ele seja algo mais, esse “mais” deveria ser mantido em uma nova sociedade socialista, para que ela não tenha que confrontar-se novamente com uma ineficiência crescente e com estagnação econômica e social, tal como aconteceu na fase tardia do socialismo de Estado. A constante renovação do conjunto das condições de vida, de modo algum, surge de modo espontâneo – como mostra a experiência histórica -, mas, ao contrário, deve ser assegurada também institucionalmente. Mas como? A atividade empresarial autônoma é uma pré-condição para isso ou ela leva inevitavelmente ao domínio capitalista do lucro a qualquer preço, não podendo separar-se disso?
Mas a visão distinta sobre a atual sociedade vai além: as conquistas sociais, jurídicas e democrática são apenas um afastamento temporário da “normalidade” capitalista, ou a normalidade capitalista é caracterizada socialmente por relações sempre em disputa envolvendo o domínio do lucro e a política social; a dominação de uma oligarquia capitalista e as forças democráticas; a expropriação capitalista e a participação social e democrática ? Há somente uma lógica da valorização do capital, ou as sociedades atuais seriam “sociedades dirigidas” (Thomas H. Marshall), capaz de reunir as tendências capitalistas, democráticas-burguesas e sócio-estatais sob a dominância do lucro ?
Caso haja apenas uma lógica, a estratégia socialista deveria voltar-se exclusivamente para a ruptura revolucionária. A defesa de das grandes conquistas de lutas anteriores seria importante, mas ela reprentaria, sobretudo a criação de melhores condições de luta para a ruptura. No caso de haver várias tendências, a transformação socialista seria concebida então como, primeiro, a ampliação das tendências e dos elementos já existentes (da democracia e da política social ); segundo, a redução do domínio do capital; e, terceiro, a criação de novos pontos-de-partida e novas áreas para posteriores avanços.
Segundo: a questão da propriedade
Um dos principais conflitos na discussão programática da esquerda ocorre quando se levanta a pergunta: é necessária a superação da ordem capitalista privada com a transferência de todas as empresas essenciais dos setores chaves, ou seja, de todas as empresas determinantes de um ponto-de-vista estrutural? Há unidade em torno da transferência das grandes empresas privadas nas áreas do abastecimento público, da infra-estrutura, da rede de energia e de informação, bem como daquelas do sistema financeiro para a condição propriedade pública. Também há unidade quando de trata de conferir maior direito de participação aos trabalhadores, abrangendo inclusive decisões econômicas fundamentais, relacionadas com o futuro dos postos de trabalho das empresas (decisão pelos trabalhadores diante da ameaça de demissão em larga escala e no caso do fechamento de empresas lucrativas). Também é consensual a defesa de condições democráticas na definição dos desenvolvimentos estruturais de longo prazo, via os conselhos econômicos e sociais, dos quais devem participar também as entidades de defesa do meio ambiente, atuando no processo de consulta e podendo dispor do direito de veto em relação a projetos danosos ao meio ambiente.
Mas uma parte da esquerda quer a ampliação da propriedade pública, e inclusive a socialização de todas as empresas relevantes na produção dos meios de produção e de bens de consumo, bem como aquelas que prestam serviço público- vendo nisso um critério próprio do socialismo. Também existem militantes de esquerda que defendem que a empresa deva pertencer aos seus funcionários. A ruptura com o capitalismo seria caracterizada, sobretudo pelo domínio de outro tipo de propriedade – a propriedade pública, mais concretamente, a propriedade dos trabalhadores.
Ainda há outra parte da esquerda engajada na conquista de uma economia solidária, concebida como mista. Ela defende, entre outras coisas, a (re) transferência dos setores citados acima – abastecimento , áreas centrais das finanças – para o setor público, prevendo-se o seu fortalecimento de instituições públicas que orientam-se por uma outra lógica que não a da economia empresarial. Essa esquerda também aceita a formação de um setor empresarial, no qual atuem unidades empresariais descentralizadas e em concorrência entre si, por sua própria conta e responsabilidade. Os monopólios e a oligolização dos mercados devem ser impedidos, sobretudo por meio da desconcentração do poder e de uma rigorosa legislação sobre os cartéis, além do fortalecimento dos direitos dos consumidores. A direção econômica deveria privilegiar o uso de formas indiretas (impostos, subvenções, apoio a determinados projetos, encomendas estatais, etc). Diferentemente do que ocorre no capitalismo (domínio da valorização do capital sobre a economia e a sociedade), e tendo como base uma ordem econômica plural, também no que se refere às formas de propriedade, haveria a instauração da dominância de outros objetivos – os da igualdade social e da sustentabilidade ecológica.
A questão da propriedade é claramente importante; pois também ela indica diferentes concepções sobre o socialismo. Isto é, onde se encontra a essência da propriedade socialista? Na transferência de todos os meios de produção para a condição de propriedade pública ou no controle democrático em uma economia de vários setores com um setor público fortalecido? E o que quer dizer concretamente propriedade pública? Ela é a propriedade e a disposição organizada prioritariamente pela via estatal ou pela via social (cooperativas, empresas dos trabalhadores, etc)?
Terceiro: a questão das classes sociais
Supondo que haja existido a sociedade de classe média, ela, sem dúvida, desapareceu no furacão das contra-reformas neoliberais. Os dominntes nem se preocupam mais em dar a aparência de que viveriam e decidiriam segundo as nomas do bom centro no espectro social e político; ao mesmo tempo, o abismo social aumentou. Mas também a classe trabalhadora, antes majoritariamente unida nos sindicatos, representadas politicamente em um partido de classe, já não existe mais, mesmo que a parte dos assalariados na população ativa nos países altamente desenvolvidos corresponda a cerca de 85%. Além disso, em muitos países, o número de trabalhadores se reduz. A sua diferenciação interna gera contradições de interesses.
O partido A Esquerda tem de enfrentar a tarefa de representar os interesses diferenciados de grupos sociais concretos, além de, dessa maneira, unificá-los na luta. Apenas para mencionar o exemplo mais destacado de 2009: os trabalhadores da Opel merecem solidariedade. Mas foram os trabalhadores que tinham contratos temporários, os primeiros a perderem seu trabalho de maneira silenciosa. E por que deveria se defender postos de trabalho que são claramente danosos ao meio ambiente? Além disso, os que trabalham com exportação recebem mais que os que exercem a mesma atividade no setor público.
O que é então o partido A Esquerda: uma organização de representação de interesses (sem jogar com interesses particulares menores, opondo-os) ou é o representante do conjunto de interesses da grande maioria da sociedade; das novas gerações ou da parte sul do hemeisfério globalizado (sem se referenciar abstratamente nos interesses da humanidade)? Uma coisa é clara: O domínio (hegemonia) de uma Esquerda surge da articulação de diferentes interesses e de sua unificação.
Quarto: a questão parlamentar e da participação em governos
Além das debilidades apresentadas pelas divisões sectárias, também a intervenção das esquerdas na política real é motivo de divisão. Assim, os sindicatos mais influentes são criticados pela esquerda, especialmente, quando lutam por aumentos salariais e melhores condições de trabalho, pois estariam negligenciando a mudança social geral. Além do constante debate sobre a participação nos governos. Dois problemas separam as posições reformistas das revolucionárias: Como se pode alcançar uma política melhor? Pela luta em todo lugar onde seja possível obter algum avanço, ou acumulando forças na oposição, sem negociar com o empresariado e sem participar de um governo, do qual não se tenha a hegemonia? O trabalho parlamentar é também a preparação de governos de esquerda ou apenas um palco para a confrontação política?
Em relação à participação nos governos, quais seriam os limites a serem construidos: nenhuma eliminação de postos de tabalho no setor público, sejam quais forem as circunstâncias, ou, sobretudo, a garantia de uma prestação de serviços de bom nível? Nenhuma privatização, mesmo que seja de um único imóvel ou a manutenção de um serviço municipal com capacidade de operação? E o que fazer diante da legislação federal e das decisões fiscais que tornam inevitáveis os cortes orçamentários? Sob que condições é possível a participação em governos estaduais? No plano federal coloca-se a indagação: Qual seria a pre-condição de uma política de esquerda – a saída imediata da Otan ou a suspensão da integração alemã nas estruturas militares da Otan? E o que faria um governo que contasse com a participação da esquerda no caso do Tratado de Lisboa da União Europeia? Pode-se mesmo impedir que a participação no governo prejudique o caráter da Esquerda enquanto partido da crítica ao capitalismo e partido anti-capitalista?
Para além dessas diferenças, trata-se, sobretudo de saber onde e como pode-se contribuir mais fortemente para criar as pré-condições para uma mudança dos rumos políticos – na atividade extra-parlamentar e/ou parlamentar, nos sindicatos ou nos movimentos sociais, e para os partidos de esquerda, no governo ou na oposição? Como pode um partido parlamentar que tenha êxito nessa sua atividade, e mesmo no governo, não se reduzir a essa função, mas, ao mesmo tempo, tornar-se ou manter-se forte na ação extra-parlamentar e na sociedade civil? Como pode ter influência no partido o filiado que não tem mandato parlamentar ou não participe de governo, mas que haja “desde baixo”? Tambem existem diferenças sobre a questão de onde pode-se conquistar mais avanços – no plano nacional ou no europeu, ou mesmo no plano global? Qual é o significado de cada um dos campos de ação? E caso as alternativas maiores ainda não estejam colocadas: como alcançá-las de modo a fortalecer reciprocamente as lutas, ao invés de enfraquece-lás?
Quinto: a questão militar e de segurança
A recusa a operações militares alemãs, incluindo aquelas previstas no capítulo VII da Carta da ONU (operação de forças aéreas, marítimas e terrestres para a “garantia ou a restauração da paz mundial e da segurança internacional”) goza de amplo consenso na esquerda. Também a unifica a orientação pela segurança coletiva, pelo desarmamento e pelo desenvolvimento comum. As diferenças aparecem, sobretudo em relação à Otan e na questão de como se pode criar um sistema de segurança europeu incluindo a Rússia. O primado estaria especilamente na luta contra as estruturas militares existentes, ou não deveria estar orientado pela busca de um novo sistema de segurança que tornasse supérfluas instituições ultrapassadas e contra-produtivas como a Otan?
Mas também a questão sobre a constituição universal de direitos humanos está em aberto: onde está a fronteira da intromissão nos assuntos internos de Estados soberanos? Em que caso as sanções justificam-se e ganham sentido? Até onde pode se fazer crítica aberta a governos de esquerda de outros países ? E, claro, o problema sobre a possibilidade, em casos excepcionais, de uma intervenção militar que poderia contar com o apoio do partido A Esquerda. Frequentemente, menciona-se o exemplo da intervenção do Vietnã no Camboja.
Sexto: a questão da cultura política
A arte da política raramente consiste em um simples ou-ou. Além disso, a política de esquerda, que tem origem nas debilidades dos grupos sociais dependentes, e quer mudar a sociedade, está condenada a conduzir os opostos de forma a tornar possível colocar em movimento uma vela comum contra o vento. Walter Benjamin colocou o problema da capacidade dialética de colocar em ação a vela desejada. Essa é uma tarefa da cultura política e da capacidade política. Não se trata de calar os velejadores ou de lançá-los ao mar gritando, mas de esforçar-se tenazmente em influir de forma coletiva a partir do reconhecimento dos pontos fortes e fracos, de discutir os objetivos e os caminhos, de ser cooperativo com base no conquistado tendo em vista as próximas tarefas – até a próxima polêmica produtiva.
* Michel Brie da Fundação Rosa Luxemburgo, Berlim
Fonte: Neues Deutschland , 22 de março de 2010. Tradução de Luciano C. Martorano