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Guatemala: As vítimas esquecidas dos experimentos dos EUA

Os camponeses guatemaltecos Federico Ramos Meza e Manuel Gudiel foram obrigados a prestar o serviço militar em 1946. Depois de seis meses no quartel, sua unidade foi deslocada para dar apoio a tropas norte-americanas ali entrincheiradas.

Por José Elías, em El País

 “No dia seguinte, fomos chamados à enfermaria dos ‘gringos’. Nos aplicaram injeções. Começava o experimento do diabo”, narra Ramos com o olhar perdido. Ele e seu companheiro acabavam de ser vítimas das práticas de eugenia postas de moda pelos nazistas alguns anos antes.

Entre 1946 e 1948, um grupo de médicos norte-americanos, dirigidos por John Charles Cutler, sob o patrocínio direto da Secretaria de Saúde do Governo norte-americano, inoculou sífilis e gonorreia, sem que o soubessem, em soldados, prisioneiros, prostitutas e até crianças de um orfanato. 696 guatemaltecos foram usados como cobaias para provar os efeitos curativos da penicilina no combate a estas doenças venéreas.

Durante décadas, ninguém se lembrou das vítimas nem de suas famílias, que permanentemente sofreram os efeitos das doenças. Mas no outono passado, a pesquisadora norte-americana Susan Reverby encontrou os arquivos do já falecido Cutler e trouxe o escândalo à tona. O presidente Barack Obama se desculpou por telefone com o mandatário guatemalteco, Álvaro Colom.

“É o abandono em que se encontram as vítimas, lutando dia após dia para driblar a miséria, que nos animou a entrar com o processo”, dizem os advogados do escritório guatemalteco de advocacia Hiram Sosa Castañeda que, junto com uma empresa norte-americana (Henry Dell, especializada em casos de lesa humanidade) denunciaram o Governo dos Estados Unidos, e depois farão o mesmo com o Governo da Guatemala e uma farmacêutica.

Ramos, que está com 86 anos, e Gudiel (85) sobreviveram durante todos estes anos à beira da miséria, e nas condições mais adversas, contam em seu povoado, Las Escaleras, uma recôndita e humilde aldeia a leste do país. O primeiro assegura que ninguém lhe explicou o que estavam fazendo quando recebiam as injeções. “Teria que estar louco para aceitar fazer parte de um experimento dessa natureza. No quartel, já se sabe, só se obedecem ordens”.

Os efeitos da doença começaram a se manifestar três meses depois. A partir de então, a cada 15 dias eram levados à clínica, para uma revisão. “Apesar dos incômodos e dores cada vez mais fortes, nunca fomos dispensados da nossa rotina de soldados”, disse Gudiel. Depois de terminar o serviço militar (que durava dois anos) foram abandonados à própria sorte, má, pelas consequências que sofrem até hoje.

Ramos sofre dores frequentes de cabeça e tem problemas nas articulações. Ainda supura e urina sangue. “Nunca me curaram. O máximo a que chegaram, foi dar um alívio passageiro”. Acrescenta que seus filhos e netos estão pagando as consequências. Sua filha mais velha perdeu a vista ainda criança. Gudiel está quase cego, sofre de incontinência urinária e tem chagas nas pernas. Ao ignorar a natureza de sua doença, contagiou sua mulher. Um terceiro companheiro de infortúnio, Celso Ramírez Reyes, morreu em 1997. Seu filho, do mesmo nome, conta que uma de suas irmãs e sua filha maior são cegas, ao passo que o caçula sofre de ataques epilépticos. Ele sofre permanentemente de dor de cabeça e dos músculos. “Como somos muito pobres e não podemos pagar um médico, temos que nos conformar com remédios caseiros”, se lamenta com um gesto de absoluta impotência.

A memória pode ter perdido fidelidade. Já se passaram mais de 65 anos, mas Ramos e Gudiel lembram que alguns de seus antigos companheiros sofreram amputações do pênis, o que levou muitos deles ao suicídio.

Os advogados explicam que estão confiantes em que o Governo de Washington irá indenizar as vítimas – recordam que os afro-americanos submetidos ao mesmo experimento no Alabama foram indenizados –, mas vaticinam um processo lento e complicado. Caso se chegasse a um acordo extrajudicial, o caso poderia ser resolvido em nove meses; se forem a julgamento, pode demorar anos.

Denunciarão o Governo da Guatemala por ter permitido os experimentos e abandonar as vítimas. “Não temos muitas esperanças na justiça local, o que nos obrigará a recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, antecipam os advogados. E, finalmente, irão processar uma companhia farmacêutica, cujo nome não revelam. “Sabemos qual é e que ganhou muito dinheiro com a comercialização da penicilina”, garantem.

Os níveis de infâmia ultrapassam qualquer limite, ao grau de estender os experimentos a crianças pequenas, com o agravante de ter compaixão nem dos órfãos. Marta Lidia Orellana, de 74 anos, lembra como, sendo uma criança de 10 anos, foi tirada do pátio de recreio do internato e levada à clínica do orfanato. “Me obrigaram a tirar a roupa. À força me abriram as pernas e começaram a mexer na minha vagina. Foi muito violento. Ainda tenho pesadelos e me acordo gritando, banhada em suor”, conta ruborizada.

Insiste em que também a ela não explicaram nunca o porquê de tais exames, quando em toda a sua vida nunca havia ficado doente. Disse crer que os médicos eram norte-americanos, “porque eram muito altos e loiros”. As vezes em que se atreveu a perguntar sobre o tratamento, lhe respondiam com violência – “fica calada”, gritavam – e a ameaçavam com tapas. “Sim, havia um doutor guatemalteco, de sobrenome Cofiño, que era muito grosso”, confessa.

Acrescenta que, após abandonar o orfanato, com 17 anos, não recebeu nenhum tipo de continuidade no tratamento. “Meu grande problema foi que não me expediam o certificado de saúde exigido para qualquer trabalho, com um único argumento: “Tens sangue ruim”. E lembra que, grávida de sua filha menor, era vacinada com penicilina, sem importar o risco que isso implicava para o seu bebê. “Deus os perdoe!”, exclama, antes de se perder na lembrança com lágrimas nos olhos.