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Artigo: O futuro do mundo árabe diante da ingerência imperialista

O mundo tem acompanhado nas últimas semanas, maravilhado e estarrecido, as rebeliões que tomam conta do mundo árabe e o desmoronamento de regimes tidos como exemplo pelas potências ocidentais. Governos como os de Tunísia e Egito não só eram considerados vitrines da excelente relação do ocidente com o mundo árabe, como também serviam de entreposto para o controle político e militar do imperialismo sobre a região.

Por Juliano Medeiros e Luiz Arnaldo*

A queda destes regimes autoritários e as crises envolvendo outros países como Líbia, Arábia Saudita e Bahrein, combinadas com o surgimento de novas organizações populares, o fracasso da política de submissão aos ditames do capital internacional e o desejo de liberdade dos povos daquela região, tem colocado em alerta o imperialismo. Essa mistura explosiva que já havia alimentado centenas de greves no Egito nos últimos dois anos, mesmo sob a perseguição do governo de Hosni Mubarak, tem se alastrado por outros países, ameaçando o sensível equilíbrio dos interesses das elites nativas e da burguesia internacional no mundo árabe.

Os altos níveis de desemprego, a falta de liberdade política, a corrupção e as violentas medidas contra as oposições, além das diferenças religiosas em cada país, tem alimentado um descontentamento que agora explode em forma de revolta. De repente, o imperialismo colhe as tempestades que plantou, deixando cair por terra a máscara democrática que encobria a violência utilizada contra os povos daquela parte do mundo.

O componente religioso em segundo plano

Em carta endereçada a Engels, onde discute a natureza das sociedades asiáticas, Marx questiona: “Por que a história do Oriente sempre aparece como história das religiões?” Levando em conta os últimos acontecimentos no mundo árabe e as interpretações difundidas no Ocidente por “especialistas” de toda sorte, nunca esta pergunta esteve tão atual. Isto porque, ao contrário do que muitos afirmavam, o componente religioso ocupa um papel absolutamente secundário nas revoltas que tem varrido o norte da África e o Oriente Médio (com exceção do Bahrein), questionando os mitos difundidos pela intelligentsia ocidental, segundo a qual a separação entre política e religião seria impensável no mundo árabe.

Em artigo publicado recentemente, Robert Fisk, o badalado correspondente do jornal britânico The Independent, aborda corretamente a questão, afirmando:

“Mubarak alegou que os islamistas estariam por trás da Revolução Egípcia. Ben Ali disse o mesmo, na Tunísia. O rei Abdullah da Jordânia vê uma sinistra mão escura – da Al Qaeda, da Fraternidade Muçulmana, sempre mão islâmica – por trás da insurreição civil em todo o mundo árabe. Ontem, autoridades do Bahrein descobriram a amaldiçoada mão do Hezbollah, ali, por trás do levante xiita. Onde se lê Hezbollah, leia-se Irã. Por que, diabos, tantos intérpretes cultos, embora impressionantemente antidemocráticos, insistem em interpretar tão mal as revoltas árabes? Confrontados por uma série de explosões seculares – o caso do Bahrein não cabe perfeitamente nessa classificação – todos culpam os islâmicos radicais. O Xá cometeu o mesmo erro, só que ao contrário: confrontado com um óbvio levante islâmico, pôs a culpa nos comunistas”.

Evidentemente, isso não significa que o componente religioso inexista. Ele está presente e mobiliza as massas, na sua maioria muçulmanas, sob a ideia-força de que não há senhor acima de Alá, nem mesmo os ditadores que controlaram a região pelos últimos trinta anos. Porém, as revoltas árabes tem um conteúdo principalmente político e econômico. São rebeliões com características notadamente ocidentais que colocam em xeque a tese utilizada pelo imperialismo em sua “guerra contra o terror”, segundo a qual o mundo árabe representava uma ameaça ao modo de vida da civilização ocidental, com seus extremistas e fundamentalistas empenhados numa guerra impiedosa contra a sociedade judaico-cristã. Ao contrário, o que temos visto são jovens, operários, camponeses, militares, homens e mulheres, cristãos e muçulmanos, lutando lado a lado por emprego, democracia e liberdade, derrubando ditadores até então financiados pelas potências ocidentais em nome de algo muito mais concreto que a salvação noutro mundo.

Revolução?

Se compreender o caráter secular das revoltas é fundamental para se poder afirmar que a saída para o levante popular no norte da África e Oriente Médio é política, e que esta saída deve ser a construção de uma nova ordem econômica e social que liberte a região da ingerência imperialista, iniciando um tempo de liberdade e justiça social, ao mesmo tempo torna-se urgente enfrentar a polêmica em torno do caráter dos eventos que estão em curso. O principal deles, aquele que classifica os levantes populares como “revoluções em sua etapa democrática”, tese que transplanta mecanicamente a leitura aplicada à Revolução Russa de 1917 a todos os processos com potencial revolucionário e busca a partir dela interpretar realidades completamente distintas.

O conceito de revolução pode ter variados significados. Poucos hoje em dia são os que relutam em utilizar termos como “revolução industrial” ou “revolução tecnológica”. Estas são categorias que fazem parte do nosso cotidiano e foram plenamente incorporados ao vocabulário de diferentes correntes do pensamento social ao longo do último século. Em outras palavras, o conceito de revolução tomou uma abrangência tal, que tem sido empregado no campo das ciências sociais para determinar qualquer processo de transformação mais ou menos profundo que altere uma dada condição pré-existente.

Diante dos acontecimentos no norte da África e no Oriente Médio, porém, o conceito de revolução tem sido empregado para substituir a ideia de rebelião, revolta ou insurreição. O conceito, porém, pode trazer um significado muito mais complexo, e é aí que começam os problemas.

O primeiro esquema de desenvolvimento das sociedades esboçado por Marx e Engels em A Ideologia Alemã (1845) trazia a ideia básica de uma sucessão de épocas históricas, cada qual fundada em um modo de produção. A revolução, em seu sentido mais profundo, correspondia a um salto cataclísmico de um modo de produção para outro. Este salto seria provocado pela convergência de conflitos, a saber, entre as velhas instituições e as novas forças produtivas que lutam pela liberdade, e entre a classe dominante e os novos atores sociais que buscam a supressão da velha ordem em favor de uma nova classe dirigente. Porém, mesmo Marx e Engels deram certa flexibilidade ao conceito, o que permitiu classificar o processo de unificação da Alemanha levado a cabo por Bismarck como “revolucionário” ou as insurreições das aldeias indianas contra a opressão britânica, consideradas por Marx as “primeiras revoluções sociais” na história da Ásia.

Porém, mesmo dando ao conceito de revolução seu sentido mais amplo, parece um exagero classificar assim os levantes populares em curso no norte da África e Oriente Médio. Isso porque a rebelião popular em curso no Egito e na Tunísia logrou até o momento tão somente a derrubada de governos, mas não a alteração da ordem política, quem dirá econômica ou social. O processo de luta está aberto, o que pressupõe que o levante popular pode evoluir para um processo revolucionário de ruptura da ordem vigente, ou retroceder até uma saída “pelo alto”, tutelada pelos interesses do grande capital. Em cada país a luta de classes segue um ritmo diferente, daí que é possível que vejamos ambas as hipóteses ocorrendo em dois países distintos. Até lá, decretar igualmente o caráter revolucionário das rebeliões populares em distintos países é um erro que pode levar a esquerda socialista a embarcar em aventuras lideradas por arrivistas que não merecem qualquer credibilidade.

A Líbia e a América Latina

No que toca à Líbia a discussão acerca do caráter “revolucionário” da guerra civil em curso neste país se torna ainda mais complexo. E não é exatamente porque Kadafi já foi um jovem líder tercermundista que expulsou as empresas estrangeiras, criou a Companhia Nacional de Petróleo, foi solidário a causa palestina à frente da OPEP e do Movimento dos Países Não Alinhados, repudiando por diversas vezes o imperialismo. Faz aproximadamente dez anos o líder líbio imprimiu uma guinada à direita ao seu governo, aproximando-se da União Européia, particularmente do arquirreacionário Berlusconi e das corporações italianas, corroborando com a retórica norte-americana da “guerra conta o terror” e passando a colaborar ativamente na repressão à migração de africanos em direção à Europa. A questão principal reside no calibre de muitos dos líderes oposicionistas, como Mustafá Abdel Kalil que até recentemente era Ministro da Justiça do próprio Kadafi ou Abdelaziz Ghoqa, líder do Conselho Nacional de Transição, órgão centralizador do comando rebelde que se manifestou favorável à intervenção estrangeira na Líbia. Não há como negar que o levante na Líbia abriu uma “janela de oportunidades” para o imperialismo, corretamente detectada por Fidel Castro quando muitos ainda afirmavam ser impossível uma intervenção militar imperialista em solo líbio. Ainda que tímido em relação aos protestos na Líbia – mas firme em relação ao Egito, Tunísia e outros aliados dos EUA – Fidel colocou a questão em termos adequados, ao referir-se ao risco de uma ação militar estrangeira:

“O imperialismo e a Otan – seriamente preocupados com a onda revolucionária que se iniciou no mundo árabe, onde se gera grande parte do petróleo que sustenta a economia de consumo dos países desenvolvidos e ricos – não podiam deixar de aproveitar o conflito interno na Líbia para promover a intervenção militar. As declarações feitas pela administração dos EUA desde o primeiro momento foram categóricas a este respeito.”

Registre-se também a proposta da Venezuela, única apresentada no terreno da esquerda para enfrentar a pobreza de horizontes do simples “Fora Kadafi”. A iniciativa do Conselho Político da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas) de propor a criação de uma “Comissão Internacional Humanitária para a Paz e Integridade da Líbia”, foi a solitária voz no cenário internacional a, simultaneamente, descartar a intervenção militar e repudiar a possibilidade de uma escalada de violência promovida por Kadafi contra seus opositores.

Sem dúvida, a melhor saída seria a simples queda de Kadafi e a instauração de um governo democrático, popular e independente, não apenas na Líbia, mas em todos os países que vivem sob a opressão de regimes como os de Mubarak ou Ben Ali. Porém, para além das saídas ideais há a realidade imperfeita da correlação de forças existente, onde não há ainda uma oposição a Kadafi capaz de encarnar este projeto: nesse caso, uma saída pacífica, garantindo eleições livres e democráticas e o retorno dos grupos de oposição hoje no exílio, seria uma alternativa capaz de canalizar a justa revolta de parte da população líbia, extenuada com os anos de corrupção e repressão advindos com a degeneração da revolução de Kadafi.

Prenúncio da tragédia: a Líbia e a intervenção militar

A decisão do Conselho de Segurança da ONU, tomada dias depois dos regimes reacionários organizados na Liga Árabe terem solicitado a Zona de Exclusão Aérea, colocou por terra as afirmações daqueles que, desdenhando do apetite e força do imperialismo, afirmavam não haver possibilidade de intervenção estrangeira na Líbia. A decisão intervencionista tem por objetivo claro impedir a vitória militar de Kadafi, que parecia até agora uma questão de dias. Isto revela que apesar de toda a aproximação do regime líbio com os Estados Unidos e a União Européia, acentuada nos últimos anos, persistem entre os dois lados contradições importantes. Tudo leva a crer que por detrás da intervenção está uma decisão estratégica de mais largo fôlego: a necessidade das forças do capital, capitaneadas pelos Estados Unidos, de assegurarem o domínio direto das fontes produtoras de petróleo. Tal como ocorreu no Iraque de Saddam Hussein, ditadores, mesmo que cúmplices do imperialismo, que demonstram algum laivo de independência, não são suficientemente confiáveis, principalmente quando governam territórios ricos em petróleo. No plano imediato, a intervenção deverá colocar a oposição ao regime numa posição subalterna em relação às forças imperialistas o que torna o destino da Líbia – entre Kadafi e o imperialismo – cada vez mais sombrio.
É claro que não devemos descartar a existência de setores efetivamente democráticos no interior do levante líbio. Ainda que até agora não se distinguam na confusão geral que é a oposição, composta inclusive de elementos saudosos da monarquia derrubada por Kadafi, é razoável supor que o levante de milhares de pessoas das classes médias e trabalhadoras não seja tão somente fruto de uma conspiração urdida em silêncio pela União Européia e os Estados Unidos. Ainda que a intervenção militar reduza consideravelmente a margem de manobra de uma oposição consequente – espremida entre os tanques de Kadafi e os bombardeios da OTAN – mais do que nunca, é necessário discernir e apoiar os verdeiros combatentes da democracia. No atual contexto, exigir a imediata suspensão dos ataques da OTAN e a abertura imediata de negociações entre as partes em conflito na Líbia é a única maneira de preservar a existência e a possibilidade de ação de uma oposição democrática e anti-imperialista.

Desdobramentos possíveis e a posição dos socialistas

Na Líbia, a intervenção militar já está em curso e busca preservar os interesses do imperialismo na região. No Egito, a Junta Militar, financiada por décadas pelo Departamento de Estado dos EUA, trabalha para mantar o establishment intocado; enquanto na Tunísia, mesmo com a formação de um governo provisório sem a presença de elementos do antigo regime, ainda é cedo para apostar numa transição para algo efetivamente mais avançado. Quais são, então, as variáveis que podem determinar os desdobramentos em torno das revoltas no mundo árabe?

Poderíamos utilizar as palavras de Rosa Luxemburgo na luta contra o revisionismo de Bernstein para afirmar que, no caso dos países árabes, “a sorte da democracia está ligada à do movimento operário”. Sem o fortalecimento das organizações populares independentes, as rebeliões podem sofrer derrotas incalculáveis. Da mesma forma, assim como Rosa Luxemburgo assinalou em relação à Alemanha, também nos países árabes a “reforma legal” dos regimes pode levar ao “reforçamento progressivo da classe ascendente, até se ter esta sentido bastante forte para se apossar do poder político e suprimir todo o sistema jurídico, substituindo-o por outro”. Ou seja, a conquista de reformas profundas no sistema político em países como Egito ou Tunísia são, de qualquer forma, um avanço que pode contribuir para a melhoria das condições gerais de luta dos trabalhadores no curto e médio prazos. Assim, diante da ameaça real de uma saída para a instabilidade política através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes – conciliação que pode se expressar sob a figura de acordos “pelo alto” – a luta pelo cumprimento de reformas democráticas profundas pode contribuir decisivamente para a reorganização de uma alternativa popular nestes países.

Diante deste quadro os socialistas tem tarefas inadiáveis. A primeira é, além de expressar seu mais duro repúdio ao regime líbio, condenar explicitamente a intervenção militar estrangeira. A segunda é manifestar o entendimento de que na oposição se misturam setores muitas vezes contraditórios e que, portanto, conceder o título de “revolucionários” a generais que até ontem comandavam a perseguição e a morte de comunistas e socialistas na Líbia, é um erro infantil. Em outras palavras, nosso apoio e solidariedade estão reservados exclusivamente aqueles que lutam por uma Líbia democrática e anti-imperialista. E a terceira e não menos importante tarefa, é defender uma saída que permita ao povo líbio e dos demais países árabes, cujos ventos da liberdade tem feito estremecer a ordem vigente, construir uma nova ordem social, política e econômica. Ou seja, defender que a liberdade, a democracia, a justiça e a auto-determinação, só poderão florescer no norte da África e no Oriente Médio sob o socialismo, sem jamais deixar de considerar o atual estágio da luta de classes em cada país. Cumprindo estas tarefas talvez os socialistas ocidentais possam dar uma efetiva contribuição, não só ao mundo árabe, mas às massas trabalhadoras de seus próprios países.

* Luiz Arnaldo Campos e Juliano Medeiros são colaboradores de Unamérica

Fonte: Unamérica