Joan Edesson: Memórias de Rosário
Era ainda a lua minguando quando as cabeceiras do rio pariram a enchente. O rio assombrava. Depois que se foram as águas marrons que falavam alto, as águas brutas que assustavam os viventes, ficou apenas a pele fina cobrindo a várzea, a calmaria da água assobiando baixo. Deixou aqueles medos das esperas que só conhecem os que se vão afogar.
Por Joan Edelsson*
Publicado 20/04/2011 16:23

Depois de tudo veio Rosário, como se também fosse parida pela enchente. Era ainda mais escura que as roxas terras de massapê onde o major plantava sua cana, e já trazia a mesma tristeza nos olhos que carregaria por todo o sempre. Ficou cega aos doze anos de idade, mas repetia sempre que do mundo já vira tudo o que precisava, e que a vista não lhe fazia falta. E assim era, pois os que a viam se movimentando dentro da casa, ágil em meio as suas facas na cozinha, custavam a acreditar que ela não enxergasse, e entretanto ela só tinha à frente dos olhos a retinta escuridão, o pretume da noite.
Quando emergiu da enchente trazia no colo o menino e dos peitos lhe saíam filetes de sangue, pois o leite acabara e o menino tinha fome. Repetia amiúde que Deus nos dera uma boca e dois ouvidos para falássemos menos e escutássemos mais. E mais que todos ela ouviu e silenciou, e de todas as histórias soube, e nunca um queixume ou um fuxico de sua boca saiu.
Quando foi parida pela enchente nem ela lembra mais, mas já estava lá quando o Major voltou da guerra, e quando o pai trouxe a mãe, e quando Carmina nasceu, e agora que Carmina bordava uma toalha e se preparava para a grande viagem, Rosário ainda estava lá. Mais que a própria casa, Rosário sabia das histórias e dos segredos, e das dores e das esperas de todos os que por ali passaram. Como sabia tudo, a tudo ocultava, e impunha silêncio quando era preciso, e os outros não precisavam lhe perguntar quando esse "preciso" era, pois bastava olhar os seus olhos que não olhavam e todos sabiam que a hora era de calar.
Rosário caminhou muitas terras até atravessar o rio parido pelas cabeceiras. O menino que lhe pendia do peito já era morto quando dali o arrancaram, e espantaram-se todos ao olhar para ele, que trazia os olhos abertos e risonhos, e as mãos pareciam pássaros, e o seu sexo parecia uma flor triste e pálida, uma noturna flor na sua noturna pele de morto. Rosário não queria largar o seu menino e foi preciso que o arrancassem a força e o levassem para enterrar, e ela soltava berros e urros e foi a primeira e última vez que chorou, porque doíam seus peitos sangrando e uma vez, uma somente vez ela confessou, que nunca mais seus peitos deixaram de doer, e por todo o sempre ela carregou neles a boca do menino sugando e mordendo quando o leite secou e só restavam as águas marrons da enchente.
Depois que arrancaram o menino dos seus braços e o enterraram em lugar que ela nunca soube, parece que de vez ele morreu e para sempre, pois ela nunca mais falou nele, nunca mais lembrou, nunca mais soltou nenhum daqueles urros medonhos que as gentes não esqueceram, e só voltaria a chorar muito tempo depois, quando todas as espécies já parecessem ter se acabado, depois da partida do major e dos seus cães, e do pai e da mãe, e do menino e do homem no branco cavalo que ria, e da mulher que desaprendeu chorar, muito tempo depois que o último destes já se tivesse ido é que Rosário choraria novamente, mas isso nem ela nem ninguém poderia adivinhar, nem o padre mais antigo que sua igreja e seu sino, ninguém.
Rosário mais escura que o roxo massapê das terras do major, guarda fiel, canina, de Carmina e de todos os segredos e malefícios que esta praticou, Rosário silenciosa e impondo silêncio e medo a todos com o seu olhar que não via mas era como se atravessasse a gente de parede a parede, partindo ao meio, expondo nossos órgãos para a sua cegueira.
Assim Rosário, a nascida das águas, a que ninguém sabe de onde veio e que era como se estivesse sempre ali, sem nunca se afastar, sem nunca sair, sem jamais por os pés fora da cozinha, seu reino encantado, soberana, dona das facas, dos temperos, das carnes, das ordens todas da casa, que controlava sem se afastar do mesmo lugar, dos calores do fogo, dos tições que queimavam como os seus olhos cegos quando eles cortavam alguém ao meio.
Lâmina, diamante, cimitarra moura partindo ao meio os ibéricos, os olhos de Rosário, vindos de longe, de onde não se sabe, mas presumindo-se de longe, de muito, de muito mais longe ainda que onde possa viajar nossa pequena e acanhada imaginação. Protetora zelosa de Carmina, guarda fiel, canina, os olhos e a boca e os seios e o corpo todo negro existente apenas para protegê-la, para proteger o demônio.
Rosário, pássaro e mulher.
* Joan Edesson é cearense, escritor, poeta e professor