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No Haiti, povo continua a lutar pela independência sócio-política

Uma das colônias mais ricas das Américas, responsável por 75% da produção de açúcar do mundo, palco de uma revolução negra vitoriosa, que lhe outorgou o título de primeiro país livre do continente. Chega a ser difícil acreditar que estamos falando do Haiti, uma nação que, 200 anos mais tarde, se tornaria a mais pobre do hemisfério, vítima de políticos corruptos e da intervenção estrangeira.

O terremoto que sacudiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010 expôs ao mundo a solidão em que estava mergulhado esse pequeno país, que já serviu a muitos senhores e poucas vezes em benefício de seu próprio povo.

Os tremores de terra deixaram 220 mil mortos, 300 mil feridos e 1,5 milhão de pessoas atingidas de diversas formas. Os prejuízos giram em torno de 7,7 bilhões de dólares. Mais de um ano depois da tragédia, 1,2 milhão de pessoas ainda estão desabrigadas, vivendo em 1300 acampamentos. Uma epidemia de cólera matou mais de 4,6 mil pessoas e infectou outros 245 mil.

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Mas o Haiti que o novo governo vai encontrar sofre de males bem mais antigos. O desastre natural revelou a catástrofe produzida pelos homens, ao longo da história. Em 2008, antes de grande parte do país desabar, o Haiti já estava à beira do abismo: aparecia na 148ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano, com expectativa de vida de 60,7 anos e analfabetismo atingindo 52,9% da população. Dos quase 9 milhões de habitantes , 80% já viviam abaixo da linha da pobreza.

“O Haiti é uma vítima do colonialismo francês e de oligarquias tirânicas e corruptas, que se beneficiaram do Estado, abandonando o povo na miséria. Também é uma vítima do neocolonialismo norte-americano, que apoiou as ditaduras e nunca teve interesse no desenvolvimento do pais ”, diz Ricardo Alemão Abreu, secretário de Relações Internacionais do PCdoB.

Ele aponta que, depois de anos de exploração e instabilidade, o Haiti, mesmo antes do terremoto, já vivia uma situação caótica, de falência das instituições. “Hoje o Haiti não tem mais floresta, não tem saneamento, não tem infraestrutura básica. Tudo isso associado ao fato de que se trata de uma ilha, onde são comuns as catástrofes naturais, como furacões e terremotos”, lamenta Alemão.

Exploração e resistência

O caminho percorrido pelos haitianos até chegarem a esta situação nos remete a 1492, quando Cristóvam Colombo chegou a este território, na época ocupado por índios. Os espanhóis batizaram então a ilha, que compreendia também a área da República Dominicana, de Hispaniola. Escravizaram os índios e, algumas décadas depois, grande parte da população nativa já tinha sido dizimada pelo trabalho puxado, por epidemias e massacres.

A parte ocidental da ilha, onde hoje fica o Haiti, foi cedida à França em 1697. E tornou-se a mais próspera colônia francesa na América e uma das mais ricas do mundo – resultado da monocultura de açúcar com exploração da mão de obra escrava, agora vinda da África. Durante o século 18, o Haiti chegou a ser responsável por 3/4 da produção de açúcar do mundo.

Ao potencial econômico, somou-se o potencial progressista, quando, em 1794, o Haiti tornou-se o primeiro país do mundo a abolir a escravidão e, em 1804, foi palco da primeira revolução negra vitoriosa da história, que derrotou as tropas de Napoleão Bonaparte. O país se transformava, então, no Haiti, a primeira nação independente da América Latina e a primeira república negra do mundo.

Ao final das guerras pela independência, contudo, os negros herdaram um país devastado – estima-se que 3/4 da população havia morrido em combate. E ainda tiveram que pagar um preço alto pela sua ousadia. Com medo de que o espírito revolucionário que libertou os escravos do Haiti se espalhasse para além de suas fronteiras, o resto do mundo – escravagista – não reconheceu a independência do país, lançando-o em um isolamento que só acabaria mais de 60 anos depois.

Para aceitar a libertação de sua colônia, a França cobrou uma exorbitante indenização, que o país levaria um século para pagar e afetaria diretamente o desenvolvimento da nova república. “A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental”, escreveu o célebre intelectual, Eduardo Galeano.

O dedo do Tio Sam

Da segunda metade do século 19 até o começo do século 20, o Haiti teve 20 governantes, dos quais 16 não conseguiram concluir seus mandatos: ou foram depostos ou assassinados. Em meio aos conflitos internos, tropas dos Estados Unidos ocuparam o país entre 1915 e 1934, sob o pretexto de proteger os interesses norte-americanos.

Os EUA deixaram o Haiti, mas continuaram interferindo e influenciando sua política. Tiveram grande responsabilidade em um dos piores momentos da nação, as três décadas sob a ditadura dos Duvalier.

François Duvalier, o "Papa Doc", governou o país de 1957 a 1971. Baseou sua gestão no terror policial dos tontons macoute (bichos-papões), aboliu os partidos políticos, perseguiu a oposição, torturou e matou dissidentes. Autoproclamou-se presidente vitalício. Ao morrer, em 1971, foi sucedido por seu filho, Jean-Claude Duvalier, o "Baby Doc", que ficou no poder até 1986, quando foi deposto por uma rebelião popular.

O ex-padre Jean-Bertrand Aristide tornou-se o primeiro presidente eleito pós-ditaduras. Um ano depois, contudo, foi deposto por um golpe militar, mas acabou voltando ao cargo, com o apoio dos Estados Unidos, já no final do mandato.

Em 2001, Aristide foi reeleito, mas mais uma vez não conseguiu concluir o governo. Ele foi derrubado em 2004, após violentas revoltas nas ruas e sob acusação de corrupção e fraudes eleitorais. O dedo dos Estados Unidos também estava lá, desta vez, apontado contra Aristide.

Laboratório do humanitarismo

Com o intuito de garantir a segurança no país à beira de uma guerra civil, o Conselho de Segurança da ONU criou, em abril de 2004, a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah), liderada por tropas brasileiras. O objetivo era desarticular os grupos armados e assegurar a realização de eleições – que ocorreram em 2006 -, para trazer estabilidade política e financeira ao país. Isso foi há sete anos. A Minustah continua no país até hoje.

A presença das tropas estrangeiras desencadeia opiniões contraditórias dentro e fora do país. Há quem diga que a ajuda internacional é imprescindível em um país tão depauperado. Mas muitos questionam a forma deste auxílio. Outros chegam a caracterizar a presença das tropas como uma ocupação militar.

“Não se trata de uma ocupação, e nenhuma força séria haitiana será a favor da saída imediata da Minustah. Mas é preciso trabalhar para criar as condições para uma saída planejada dessa missão, que foi criada para atender a uma emergência, e deve ter caráter temporário”, lembra Ricardo Alemão Abreu.

Para ele, mais que atuar como uma força de segurança, a Minustah deve ampliar a sua atuação no sentido de desenvolver e fortalecer as instituições no país. “A ajuda dos países deve se converter em cooperação, para que as funções de defesa e de segurança passem a ser feitas pelo próprio estado haitiano. Ela não pode nunca se traduzir em tutela, nem em intervencionismos”, defendeu Alemão.

Logo após o terremoto, o atual presidente do Haiti, René Préval, destacou que a criação de empregos e incentivo ao comércio local deveria ter ênfase da ajuda humanitária. Segundo ele, a ajuda estrangeira, especialmente com envio de alimentos, poderia ameaçar a economia haitiana, pois compete e desencoraja o comércio local. Os apelos parecem não terem sido ouvidos.

O diplomata Ricardo Seitenfus, que representou a Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti, declarou, certa vez, que o Haiti vive sob a influência do sistema internacional, das ONGs e da “caridade” universal. “Mais de 90% do sistema educativo e sanitário estão em mãos privadas. O país não tem recursos públicos para assegurar o funcionamento mínimo de um sistema estatal. Resumir o Haiti em uma operação de paz significa deixar de enfrentar os verdadeiros desafios do país. O problema é socioeconômico”, afirmou.

Seitenfus tocou em uma questão bastante polêmica, a atuação das entidades internacionais e ONGs no país, muitas vezes classificado como uma espécie de laboratório do “humanitarismo” contemporâneo.

“Para as ONGs transnacionais, o Haiti se transforma em um lugar de passagem obrigatório. Diria até pior: um lugar de formação profissional. (…) Existe uma relação maléfica ou perversa entre a força das ONGs e a fraqueza do Estado haitiano. Algumas ONGs existem somente por causa do mal haitiano”, afirmou o diplomada, em entrevista ao Le Temps, depois da qual terminou sendo afastado de suas funções no país.

Em entrevista ao Estado de S.Paulo, o professor de relações internacionais da PUC/SP, Reginaldo Nasser, ressaltou que, por trás das ajudas estrangeiras, há os interesses nacionais, um projeto de direcionamento político.

Mas o principal problema da permanência das ONGs, apontam especialistas, é que a ajuda nunca é estruturadora, sempre de urgência, portanto, sem planejamento, coordenação ou controle por parte do Estado haitiano. E, desta forma, gera dependência. Hoje, cerca de 60% do orçamento do Haiti é proveniente de doações internacionais, o que dificulta a autonomia de qualquer governo.

O assunto traz à memória a escrita de Eduardo Galeano, que resgata a hipocrisia da comunidade internacional em relação a esse pequeno país e sua história de resistência. Em poucas linhas, ele lembra o olhar enviesado de quem espera a próxima catástrofe no Haiti, pronto para “ajudar” um povo “incapaz de governar-se”:

"As revoluções, concluíram alguns especialistas, levam ao abismo. E alguns disseram, e outros sugeriram, que a tendência haitiana ao fratricídio provém da selvagem herança da África. O mandato dos ancestrais. A maldição negra, que empurra para o crime e o caos. Da maldição branca não se falou.”

Por Joana Rozowykwiat
Da Redação