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Marcos Aurélio Ruy: A alma do Movimento Modernista de 1922

Livros trazem a proposta modernista de fortalecimento da cultura nacional, voltada para a cultura popular. A correspondência de 20 anos entre Mário Andrade e Câmara Cascudo debate a valorização da brasilidade, tema relevante nos dias atuais.

Por Marcos Aurélio Ruy

Vinte anos da correspondência entre ambos está reunida em livro, cujo teor mostra com clareza o pensamento modernista de 1922. “A amizade entre Mário e Cascudo consolida-se nas cartas”, diz Marcos Antonio de Moraes, organizador de Câmara Cascudo e Mário de Andrade: Cartas, 1924-1944 (Global Editora, 384 páginas, 2010).

Num tempo em que não havia nem mesmo computador, quanto mais a velocidade da comunicação via correio eletrônico, os escritores, com toda a dificuldade de entã,o buscavam conhecer por dentro a vida dos brasileiros para compreender a sua cultura e ajudar a construir uma identidade nacional através da cultura, numa época de fortalecimento da identidade nacional da Nação brasileira, contra as oligarquias arcaicas, antinacionais e obviamente carregada de preconceito contra o povo brasileiro.

Mas como diz a música Notícias do Brasil, de Milton Nascimento e Fernando Brant: “Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil não vai fazer deste lugar um bom país”.

Para Marcos de Moraes, o livro, “a experiência de leitura e as balizas do universo cultural atravessam o diálogo epistolar, fornecendo diapasão da camaradagem construída.” Já para Vicente Serejo “a correspondência entre Cascudo e Mário é fundamental para se compreender o olhar modernista sobre a cultura brasileira.”
 
O interessante é que ideologicamente eram opostos. Luís da Câmara Cascudo filiou-se ao integralismo, de Plínio Salgado, de cunho fascista (os “galinhas verdes”) e tratava Mário de Andrade, por vezes, como “Mário, querido, do coração bolchevista” ao qual Andrade retrucava: “então não se escreve mais para este polista com saudade? Nem ao menos você carecendo aí algum livro hitlerofachisticacamisavêrdico (…). Será que nem pra isso o Fachismo serve mais!” O escritor paulista apresentava linha progressista com simpatia ao socialismo.

Mário de Andrade resumiu o caráter do movimento modernista ao afirmar que “tentando dar caráter nacional pras nossas artes. Nacional e não regionalista”, prosseguindo, “estamos reagindo contra o preconceito da forma. Estamos acabando com o domínio espiritual da França sobre nós.”

Já Câmara Cascudo dizia que “fico meio acovardado quando me lembro que terei de rebater tanta folha, tanto ‘verso’, cotejar, pensar, resumir, explicar, esquemar, observar e mais burradas inúteis e pecaminosas enquanto um quilo de café custa 2$800 e há uma montanha dele ardendo em Santos.” E acentua: “este movimento de arte moderna no Brasil é simplesmente admirável, Pregam tudo e nada explicam.”

Anna Maria Cascudo Barreto, filha do folclorista potiguar, afirma que “mergulhando na intimidade desses dois timoneiros da cultura, garimpeiros do imaginário brasileiro, dentro do caldeirão da inspiração dos dois gênios, encontramos a essência do povo e suas manifestações. Há também o descortino do cenário político e social municipal, estadual e governamental da época.”

Para ela a correspondência entre ambos “enfim, é uma visão panorâmica da realidade do ontem, sob a ótica de mentes privilegiadas.” Ao escrever sobre as cartas, Diógenes da Cunha Lima diz que “elas têm, entre outras, a virtude de ser uma das fontes de duas décadas da história literária do país e, talvez, a primeira ligação intelectual entre o sudeste e o Nordeste.”

Mário criticava o “separatismo” paulista com o advento do Movimento Constitucionalista de 1932 e dizia a Cascudo: “você compreende demais, este Brasil monstruoso tão esfacelado, tão diferente, sem nada nem sequer ainda uma língua que ligue tudo, como é que a gente o pode sentir íntegro, caracterizado, realisticamente? Fisicamente? Enquanto me penso brasileiro e você pode ter a certeza que nunca me penso paulista.”

Para Cascudo “o sertão está morrendo engolido pelos açudes, pisado pelo Ford, cego pela lâmpada elétrica.” Já Mário esclarecia que “tem momentos em que eu tenho fome, mas positivamente fome física, estomacal de Brasil. Até que enfim sinto que é dele que me alimento.”

“Nós temos que dar uma alma ao Brasil”

A frase acima de Mário de Andrade pode definir muito bem o caráter de outro livro dele recém-lançado: A Escrava que não é Isaura: Discurso Sobre Algumas Tendências da Poesia Modernista (Nova Fronteira, 152 páginas, 2010). Originalmente publicado há 86 anos A Escrava é um compêndio do pensamento modernista, fortalecendo a tese da brasilidade para compreender o país como Nação única e vencer os estrangeirismos e elitismos predominantes e ainda hoje o são em determinados setores de nossa sociedade.
 
Segundo Marcos de Moraes, A Escrava transmite a visão de que “o movimento modernista também pudesse ser visto como uma experiência fecunda, em permanente transformação, sintonizado com a vivência do homem desse início do século 20 que trouxe, de uma só vez, trilhas em direção ao inconsciente e o arrojo tecnológico nas grandes cidades.”

Moraes afirma ainda que “se A Escrava Isaura (1875), ficção romântica de Bernardo Guimarães, ao engendrar a visão idealizada d personagem, mascarando as contradições da realidade brasileira, simboliza o filtro falseador da experiência literária, a outra, A Escrava Que Não é Isaura, de Mário de Andrade, quer, no campo da poesia moderna, instituir o compromisso dos escritores com a ‘época em que vivem’, ou ainda, em outras palavras, quer que o ‘poeta’ esteja ‘reintegrado na vida de seu tempo’."

Os dois livros mostram a visão do Movimento Modernista de 1922 com a sua sede de brasilidade para fomentar a cultura nacional calcada na cultura popular, com objetivo de sistematizar esse conhecimento de nosso povo para a construção da Nação brasileira como a conhecemos hoje. Leituras importantes para reflexões sobre o presente e o futuro. É para isso que serve o estudo da história.

Algumas obras dos autores:

Mário de Andrade nasceu em São Paulo, em 9 de outubro de 1893 e veio a falecer em 25 de fevereiro de 1945, na mesma cidade, vitimado por um enfarte do miocárdio.

Paulicéia Desvairada (1922)
A Escrava Que Não É Isaura (1925)
Amar, Verbo Intransitivo (1927)
Macunaíma (1928)
Belasarte (1934)
O Movimento Modernista (1942)
Lira Paulistana (1945)

Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal, em 30 de dezembro de 1898 e morreu em 30 de julho de 1986, na cidade em que nasceu.

Alma Patrícia (1921)
Conde D’Eu (1933)
Antologia do Folclore Brasileiro (1943)
Geografia dos Mitos Brasileiros (1947)
Dicionário do Folclore Brasileiro (1954)