Joáo Carlos Haas Sobrinho, um herói brasileiro

Uma das homenagens permanentes a Joáo Carlos Haas Sobrinho é o Ponto de Cultura batizado com o nome dele na cidafe de Porto Franco, onde ele morou antes de ingressar na Guerrilha do Araguaia. O texto abaixo foi publicado no Jornal do Ponto de Cultura.

Nascido na cidade gaúcha de São Leopoldo, no Vale dos Sinos, em 24 de junho de 1941, João Carlos Haas Sobrinho formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1964, ano em que presidiu a União dos Estudantes de seu estado e também o do golpe militar.
Dedica à cirurgia, trabalhou na Santa Casa de Porto Alegre e em pronto-socorros do Rio de Janeiro e São Paulo antes de seguir para a China com um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), ao qual se ntegrara ainda no movimento estudantil.
Chegou a Porto Franco em 12 de julho de 1967. No momento em que desceu de uma perua Kombi conheceu o senhor Jano Macedo, que o apresentou a outros moradores, como o senhor Aderson Rodrigues Marinho.
Disse que era médico e iria trabalhar na região. Alugou uma casa na Rua Rio Branco, no centro da cidade, local que serviu também como seu primeiro consultório. Tinha como auxiliares a enfermeira Desirée, dona Dedé, falecida em 2005, e dona Dejacyr, que aprendeu a fazer seu prato preferido, polenta com carne de porco,e que guarda, com carinho, o pequeno guarda-roupa utilizado pelo doutor João Carlos.
Em pouco tempo, a grande procura por seus serviços,que alcançava um raio de 100 quilômetros ao redor de Porto Franco, resultou na fundação do primeiro hospital da cidade, hoje sede do Fórum.
Farmacêutico, o senhor Marinho auxiliava o médico em cirurgias mais complicadas. Registrou para amigos e família que João Carlos tinha “mãos especiais”, observação possível de ser confirmada a partir dos relatos de vários de seus antigos amigos e também de futuros companheiros da Guerrilha do Araguaia, na qual foi emboscado em 30 de setembro de 1972 por fuzileiros navais e homens da 3ª Brigada.
Aqui na região e em nossa cidade atendia aos pobres e aos ricos. Preferia auxiliar aos mais humildes, mas jamais deixou de socorrer os mais abastados. Pesquisou doenças tropicais como a malária e a leishimaniose, além da hanseníase, que até hoje acometem os mais vulneráveis cidadãos de nosso país.
À prestação pagava um autoclave comprado a seu pedido por Jano Macedo em São Paulo, para a esterilização de seus poucos instrumentos cirúrgicos. Com eles fez a primeira mastectomia realizada nesta região, como informa o doutor Jorge, responsável pelo centro-cirúrgico do atual Hospital Municipal de Porto Franco, fundado na primeira gestão do prefeito Deoclides Macedo, que conviveu em sua infância, como seu irmão Marcelo, com João Carlos.
Hélia, esposa do doutor Jorge, estudava ainda no ginásio. João foi o paraninfo de uma turma de ginasiano, única ocasião em que vestiu um terno, emprestado por seu amigo Vaner Marinho. O fato foi registrado em fotografia e no livro Meu Pé de Turumã Florido. Hoje formada em química, Hélia diz que Porto Franco foi privilegiada pela presença de João Carlos. João é também lembrado pelo pelo cidadão Waldemar Passador como o doutor que consertou a perna de um de seus filhos, na época com oito ou nove anos e que tivera a coxa da perna quebrada ao meio. Após o tratamento, “ficou tudo certinho”, conta Waldemar.
Apreciador das danças, João Carlos sempre que podia participava de eventos sociais. Uma foto o registra suado, ao lado de dona Maria, paciente da qual tirou um mioma de dez quilos. A comemoração do restabelecimento de dona Maria coincidiu com o aniversário de 27 anos do médico. A foto é guardada com carinho, como todas as outras que, felizmente, os moradores de Porto Franco preservaram e que hoje atestam a importância de sua passagem pela cidade, além de garantirem também a reconstituição da vida de quem pode ser considerado hoje o “espírito” da Guerrilha do Araguaia.
João também gostava de participar ou assistir jogos de futebol. Muitas vezes, lembra Vaner, comia poeira junto com os amigos pelas estradas de terra em pequenos caminhões para as disputas em outras cidades.
Um ano e meio após a sua chegada recebeu um telegrama. Era a hora de partir para um destino jamais imaginado pelos moradores de Porto Franco. Dona Dejacyr foi a responsável pela quebra de um pacto de silêncio feito com o doutor João Carlos, após muita insistência em saber o motivo de uma certa apreensão no olhar. João lhe dissera que teria de trabalhar em outra cidade e por isso iria embora em poucos dias. Dejacyr contou a dona Dedé, que procurou o prefeito Gerôncio de Souza Milhomem, que por sua vez procurou os padres da região e o bispo de Tocantinópolis.
No dia seguinte, ao acordar após um plantão no pequeno hospital, três mil pessoas, com as autoridades à frente, manifestaram para que ele não fosse embora. Foi a maior manifestação popular até hoje realizada na cidade.
O pedido, em vão, fez João Carlos chorar. Em outros lugares era procurado por atividades que jamais cometera. Acusado de terrorismo, o aviso era para que partisse imediatamente.
Algum tempo depois, Juca, o nome que adotou na guerrilha chegou de avião em Conceição do Araguaia. Dali, seguiu para São Geraldo, no sudeste do Pará.
Foi residir numa pequena fazenda de seu conterrâneo Paulo Rodrigues, futuro comandante do Destacamento C da guerrilha. Conviveria com o cerarense Bérgson Gurjão Farias, Jorge, estudante de química da Federal do Ceará e quer seria o primeiro guerrilheiro a se morto, no início de julho de 1972. Juca e Jorge tinham praticamente a mesma altura – 1,82m – e foram muitas vezes juntos a Xambioá, palco da principal base instalada pelos militares em 1972.
Foi um soldado de Porto Franco o primeiro a suspeitar que João Carlos, o primeiro integrante da Comissão Militar da Guerrilha a morrer em combate, poderia ser o mesmo médico cirurgião dos moradores de Porto Franco, notícia que somente seria confirmada muitos anos depois, já que até hoje seu corpo, embora enterrado no cemitério de Xambioá, ainda não foi identificado.
Ao tombar na localidade de Piçarra, hoje município, Juca teve a seu lado Ciro Flávio, mineiro-carioca, quartanista de arquitetura, surfista e artista plástico, e o paulistano Manuel José Nurchis, o Gil, operário que se tornou garimpeiro ao lado de Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão. Flávio e Gil eram combatentes do Destacamento B, comandado por Osvaldo.
Presa em 1972, guerrilheira Regilena Carvalho,que fora observada por Juca após ser atingida por um ouriço de castanha lembra que, em Brasília, o general Antonio Bandeira, comandante das tropas militares, mostrou-lhe o relógio, uma caderneta e um bilhete de Juca no qual ele pedia que fossem divulgadas as anotações da caderneta. Talvez ali estivessem escritas observações sobre como tratar da saúde da população da região.
Os militares jamais devolveram seus pertences. Fotografaram seu corpo, mas negam informações mais precisas à sua identificação. Regilena viu uma fotografia de Juca morto, ladeado pelos pés da população, um retrato cheio de simbologias. Ela jamais esqueceu.
Muitas histórias sobre doutor João Carlos, João, Haas ou Juca são e serão contadas. Esta póstuma homenagem que Porto Franco lhe faz é um gesto de reconhecimento por sua amizade e dedicação aos cidadãos de nosso estado e da região tocantina. Nossa população também fica gratificada pela generosidade da família Bandeira de Miranda que ofereceu seu casarão, fechado praticamente desde o período em que João aqui viveu, para sediar, em breve tempo, após a sua restauração, o Ponto de Cultura doutor João Carlos Haas Sobrinho.
Parafraseando a ex-guerrilheira Luzia Reis Ribeiro, uma de suas companheiras do Araguaia, o título de Cidadão Portofranquino in memorian a João Carlos, é também um reconhecimento por sua ousadia em defender a liberdade política e social do povo brasileiro. Quando não tinha mais como oferecer sua amizade e a sua dedicação à medicina, João Carlos Haas Sobrinho não teve dúvidas: ofereceu-nos a sua vida.
Que o Brasil siga também esse bonito e singelo gesto de Porto Franco!