Sem categoria

Neusa Jordem Possatti: Menina mulher

A casa é de madeira. A gente dorme no chão, não tem colchão. Todo mundo deita. Somos quatro. Tem a minha mãe, que é grande e bonitona, mas ela anda sempre triste. É calada e quieta, não brinca comigo tem um tempão. O nome dela é Isabel.

Por Neusa Jordem Possatti

O Zeca é mais ou menos alto, tem olhos duros. Se tem alguém que ele respeita é minha mãe. Ela fala com ele olhando nos olhos, de igual para igual.

Tem o Curió, que não pára de tossir. Outro dia ouvi minha mãe perguntando se ele tinha notícias da mulher e dos seis filhos que ele deixou lá em Lajinha quando veio trabalhar na “panha“ do café.

E tem eu. Nunca conheci meu pai, morro de vontade. Um dia vou crescer — espero que seja logo — e vou procurar por ele, isso se minha mãe deixar.

As regras do grupo são simples, mas duras. Quem não trabalha não come. É segunda-feira, vai começar mais um dia de trabalho na roça. Todo mundo acorda de cara amarrada, até minha mãe. Tem dias que ela é legal, boazinha, mas tem dias que é bom ficar bem longe dela. Fica daquele jeito de quem quer briga e só está procurando alguém pra isso. Ela fica assim principalmente quando o dinheiro não deu pra semana toda. Tento entender quando ela fala da pobreza, da fome, da falta de uma casa nossa. O frio tá demais, o sol não vai sair antes das seis e meia. O caminhão chegou pra apanhar a gente. Não tem bancos pra sentar na carroceria.

Os galhos dos pés de café estão carregados, vermelhinhos de tão maduros. A roupa molhada gruda na minha pele, meus braços cansam de tanto colher grãos e ainda tenho que ajudar a carregar os balaios cheios. Começa a chover fino. Paramos pra comer a bóia que minha mãe preparou bem cedinho. Chove grosso. Corremos. Fugimos da chuva. Com a chuva não se trabalha. Fico alegre, vamos voltar para casa. Não se pode chamar aquilo de casa, minha mãe tem razão. Existe um monte de goteiras e elas aborrecem todo mundo.

Vou dormir cedo, todos vão também. Acordo no meio da noite e, cheia de sono, empurro a porta do único cômodo fechado da casa. Entro e paro confusa, assustada.

Encontro o Zeca e a minha mãe no chão… Fazendo aquilo… aquilo. Nunca pensei que minha mãe fosse capaz! Nunca tinha visto um homem e uma mulher fazendo aquilo. Eu pensei que ela jamais fizesse aquilo. Não, não ela. Eu sou criança. Crianças não fazem aquilo. Não. Eu sou criança. Minha mãe é mulher. Mulher faz. Eu devia ter percebido que os dois andavam cochichando pelos cantos. Eles ficam parados me olhando, sem jeito, sem o que dizer, e eu sem saber onde enfiar a cara de tanta vergonha.

— Eu saio — disse, desaparecendo e fechando a porta.

Zeca saiu logo depois. Dei uma olhada cheia de raiva nele. Sinto que ele rouba minha mãe de mim. Eu que tenho tão pouco. Sinto ódio por isso. Fico ali sem falar com ele, confusa, pensando no que eu ia falar com minha mãe quando olhasse novamente pra ela.
Minha mãe senta do meu lado:

– Chateada comigo?

Balanço a cabeça, digo que não. Minto. Continuo com os olhos grudados no assoalho. Ela começa a falar. Aprendo coisas que não sabia e vejo o que me espera quando crescer. Mulher. A palavra não explica nada, mas me apavora. Sempre que penso em crescer, me apavoro, me lembro dos dois deitados no chão… Tenho medo de crescer.

Ainda bem que eu só tenho sete anos.