Evaldo Lima – As várias faces do futebol no Brasil

“Futebol se joga no estádio?
Futebol se joga na praia,
  Futebol se joga na rua,
Futebol se joga na alma.”
  

Carlos Drummond de Andrade

Futebol e ditadura

O futebol no Brasil é mais que uma modalidade esportiva, é uma instituição nacional, patrimônio e identidade cultural da nossa gente. Ao lado das principais belezas naturais brasileiras, como o Corcovado, Praia de Iracema ou a Amazônia, o futebol é considerado um cartão postal do Brasil. Cada brasileiro, ao nascer, ganha não apenas um nome, mas também um time, um escudo e uma camisa para defender como segunda pele e manto sagrado desde os primeiros risos e prantos.

Inspiração para o que há de melhor e o que há de mais sombrio na natureza humana – amor e ódio combinados, o futebol é uma alegoria perfeita para o nosso povo em sua luta para vencer e sobressair às dificuldades, movidos pelo fervor de uma ideia ou apenas de uma bola. Assim é tarefa impossível pensar o Brasil sem levar em consideração o futebol, parte significativa da alma do seu povo.

A gênese do futebol ao sul da Linha do Equador tem uma trajetória improvável, quase acidental. Vestígios dos jogos de bola, encontrados em várias civilizações antigas do Oriente, remontam a mais de três mil anos. Entretanto, a forma moderna pela qual o futebol é conhecido foi criada na Inglaterra do século XIX, em pleno auge da Revolução Industrial. De lá o futebol seguiu o caminho de marinheiros/aventureiros ingleses e estudantes das famílias abastadas que voltavam para o Brasil da Europa.

Esporte, Forma de Arte ou Instrumento Político?

Em terras brasileiras, o futebol foi primeiramente um esporte reservado apenas para as elites, mas rapidamente se tornou fenômeno de popularidade. Seja entre os mais ricos, intelectuais, imigrantes operários e camponeses ou entre as pessoas mais humildes das grandes cidades, o futebol se tornou paixão capaz subverter valores tradicionais e driblar dificuldades, propor alternativas para a superação dos conflitos sociais de uma sociedade extremamente desigual e questionar o mito da superioridade do homem branco.

Enquanto esporte coletivo o futebol é sinônimo de fôlego, perseverança, respiração e transpiração. Contudo, o futebol também é luta de classes, catarse e poesia que surgem dos pés sonhadores do menino pobre para criar uma forma transcendente de arte corporal, com potencial para intervir nas lides políticas ou para transformar elementos da sociedade em que está inserida.

Vejamos, por exemplo, o caso dos negros no Brasil, que se aproveitaram do talento dentro das quatro linhas para escapar à estupidez do preconceito e como maneira de ascender socialmente, como cita o mestre Mário Rodrigues Filho, no livro “O Negro no Futebol Brasileiro”. Imaginemos então a história do nosso país sem futebol, e daí poderemos concluir que a luta ainda em curso contra o racismo no Brasil não teria avançado tanto, em comparação com outras nações colonizadas pela Europa.

Futebol – O Ópio do Povo

Capaz de arrebatar multidões, o futebol já foi chamado de ópio do povo, parafraseando a expressão cunhada pelo pensador Karl Marx, por se prestar facilmente à manipulação política e ideológica. Mas afinal que ópio é esse que entorpece a todos, provoca vigor e alegria e potencializa a ação? Esse potencial foi percebido e utilizado, historicamente, por diversas forças políticas, especialmente em períodos de governos despóticos. Ocultos pelo sentimento de nacionalismo ou pelo orgulho étnico, interesses pouco republicanos encontraram no futebol a propaganda perfeita dos seus regimes.

No Brasil, o Estado Novo de Getúlio Vargas(1937-1945), muito próximo do nazi-fascismo europeu, utilizou o futebol como elemento para forjar a identidade e o orgulho nacionais, articulando a comunicação entre as elites e a massa da população, através da imprensa, do rádio e do cinema. Foi o período de início da construção das grandes arenas esportivas, como o Pacaembu, em São Paulo e o Presidente Vargas, em Fortaleza. Em 1938, o próprio Getúlio Vargas participou ativamente dos preparativos para a Copa do Mundo da França. No final, o escrete canarinho fez uma bonita campanha e conseguiu um respeitável terceiro lugar.

No período que se seguiu ao Golpe Militar de 1964, essa exploração do futebol se aprofundaria, a par da tortura e da repressão. O Brasil se afirmava como potência do futebol mundial com os títulos nas copas de 58/62, e o governo militar tentava vincular as conquistas futebolísticas à imagem do país, que crescia mais de 10% ao por conta de muitos empréstimos e investimento estrangeiro – era o “milagre econômico”. Na Copa de 1970, no México, o presidente Médici era apresentado como um "homem do povo" e "apaixonado por futebol". A vitória da seleção brasileira sobre a seleção italiana por 4 a 1, na final, foi bastante explorada pela propaganda do governo Médici em slogans do tipo "Ninguém segura este país" ou "Brasil; ame-o ou deixe-o". O técnico que classificou o Brasil para a Copa de 1970 foi João Saldanha, o “João sem medo”, que acabou substituído por Mario Zagalo durante a competição por sua visão política de esquerda.

Futebol na Taba de Iracema

Em Fortaleza, os dois principais estádios foram construídos em épocas ditatoriais. O Estádio Governador Plácido Castelo, mais conhecido como Castelão, o maior estádio do Ceará, foi inaugurado em 1973, durante um dos períodos mais sombrios da Ditadura Militar no Brasil. Já o tradicional Estádio Presidente Vargas, localizado no bairro do Benfica, foi inaugurado em 1941, no auge da ditadura estadonovista de Getúlio Vargas.

O estádio Presidente Vargas (PV), tombado pelo patrimônio histórico e local de afeto dos fortalezenses, passou por recente reforma executada pela Prefeitura de Fortaleza que buscou conciliar a modernidade e tradição de um equipamento de mais de 70 anos. Pelo querido PV desfilaram as chuteiras imortais de jogadores campeões mundiais desde a Copa de 1958 até 1970, craques como Gildo, Ademir da Guia, Mozart, Lúcio e Jacinto, entre tantos outros. O PV foi o palco do milésimo jogo de Rei Pelé, mas o Ceará estragou a festa vencendo o time do Santos por 2X1. O lendário anjo das pernas tortas, Mané Garrincha, jogou no PV pelo Fortaleza em amistoso, no dia 28 de janeiro de 1968, contra o Fluminense. Não poderia deixar de mencionar o último título invicto do campeonato cearense, conquistado pelo glorioso Ferroviário no PV em 1968.

Foram muitas histórias bonitas e outras nem tanto. Uma ação política sombria privou o Ceará e o Brasil de um dos maiores talentos que já jogou no PV – a tragédia aconteceu em 30 de agosto de 1970. À época, o Brasil experimentava o sabor amargo da Ditadura Militar. Na data citada, ocorreu a prisão do Fernando Antunes Coimbra, o Nando. Ele, que é um dos irmãos de Zico, jogou brilhantemente no Ceará Sporting Club – dentre outros grandes clubes, mas teve sua história reescrita após este triste acontecimento político.

O Caso Nando

Nascido no Rio de Janeiro, em Quintino Bocaiúva, Nando teve o privilégio de ter seis irmãos, sendo três deles também muito talentosos com a bola no pé. São eles José Antunes Coimbra Filho, conhecido por “Zeca”, que jogou no Fluminense-RJ; Eduardo Antunes Coimbra, o “ Edu”, que jogou no América-RJ; e, claro, o Zico, o “Galinho de Quintino”, maior ídolo da história do Flamengo. Os outros dois, Antônio e Maria José, ficaram afastados das quatro linhas.

O sucesso dos quatro irmãos Coimbra no futebol era motivo de orgulho, mas o posicionamento político progressista de Nando e de vários membros da família atraiu os olhares pérfidos dos agentes da repressão, que temiam que a influência deles dentro e fora dos campos fosse usada para combater o regime militar. Nando, que a par da carreira no futebol, havia entrado para a Universidade de Filosofia do Rio de Janeiro, chegou a ser professor do Plano Nacional de Alfabetização (PNA), projeto baseado nas propostas do pedagogo Paulo Freire para combater ao analfabetismo entre jovens e adultos. Com o Golpe de 1964, o PNA foi encerrado, pois estava promovendo ideias “subversivas”, jargão dos militares para definir todos que lutavam em defesa liberdade de expressão.

A perseguição política sofrida por Nando, posteriormente à sua prisão pelo regime militar é uma mancha vergonhosa na história do futebol brasileiro. A intolerância de um governo antidemocrático interrompeu a sua carreira, e nos privou de desfrutar por mais tempo do sua aptidão invulgar e sensibilidade para o futebol-arte. A prisão de Nando não era punição suficiente para os militares, e toda sua carreira profissional foi da ditadura. Forçado ao exílio, Nando tentou jogar futebol fora do Brasil e foi para Portugal, país de origem dos seus pais, mas lá terminou sendo ameaçado pela polícia política do ditador Salazar, a mando da ditadura brasileira.

Nando, que para muitos que o viram jogar seria um craque superior ao próprio Zico, teve o curso de sua vida alterado por um período trágico da nossa história. A sua reabilitação pública, pelo estado brasileiro através da Comissão Nacional da Anistia, é um ato de justiça, um testemunho às gerações futuras para que nunca cometamos os mesmos erros ao permitir que a nossa liberdade e democracia sejam ameaçadas.

Nem todos que amam o futebol serão grandes atletas, mas todos aprendem a lição de que jogar bola também é opção de educação para a vida e seus irmãos simbolizam um pouco do sonho brasileiro de talento e superação, euforias e tristezas de um país que ainda luta para construir a cidadania extensiva a todos e que precisa resgatar páginas arrancadas da nossa memória. Viva o futebol, viva Nando e viva o povo brasileiro!

Evaldo Lima é Historiador, Bacharel em Direito e Secretário de Esporte e Lazer de Fortaleza

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