Isadora Fonseca: Sonhos não envelhecem
“O problema com a literatura, como com a vida, diz Don Crispín, é que afinal acabamos sempre por nos tornar um cabrões.” Roberto Bolaño, em Os Detetives Selvagens
Por Isadora Fonseca*
Publicado 30/06/2011 08:25
Tomávamos o pequeno-almoço na Panificadora Brasília, junto a centenária figueira. Torradas de queijo e café com leite no balcão vermelho. Usávamos jeans, tu polo azul e eu uma bata branca, com um quê de bordado no decote. O tempo ultrapassava-nos, tardávamos para uma reunião de planejamento da manif contra a lei da educação, hoje carinhosamente apelidada ‘Darcy Ribeiro’. Eu acendi o primeiro cigarro do dia a perguntar-te onde estaríamos dali a 15 anos. Se manteríamos a crença nas mesmas ideias, se os nossos sonhos seriam partilhados e se aquela amizade, para além do nosso desejo e entendimento amoroso, estender-se-ia. Disseste-me que sim com a tua mão de dedos longos pousada na minha coxa. E fizeste ressalvas – ao inerente amudarecimento da teoria provocado pelo empiricismo que não nos escapava, aos oceanos, aos continentes, às profissões, aos casamentos – para suster o teu sim.
O princípio
Atravessamos em uníssono as antagônicas portas de vidro do hall de entrada do Congresso Nacional. A luz laranja-queimado que tinge os fins-de-tarde de Brasília transcendia as clarabóias. Tu vinhas com o Beto, e eu com a Cris. Eras o novo rei de uma antiga linhagem de jovens que mudaram o Brasil no século 20. Muitos desapareceram, outros sucumbiram. É preciso reconhecer que alguns tornaram-se mesmo traidores. Mas tu, com o teu nome que atravessa os séculos e ultrapassa os pressupostos (no melhor que Virgínia Woolf nos pode oferecer), eras o presente. Nenhum de nós encontrara quartos de hotel disponíveis numa típica quarta-feira da capital do país. E fomos os quatro tardia e displicentemente para a casa de Romã. Uma certa tradição anarquista ainda nos habitava, e isso era bom. A noite acabou num documentário sobre a monogamia entre os lobos. Talvez tenham sido os teus olhos imensos, ou o desenho da tua boca. O certo é que compúnhamos um magnífico tom-sobre-tom em mistura de peles.
On the Road
Outono, garoa, cerveja preta, São Paulo. Ato público na Ordem dos Advogados, intelectuais contrários às privatizações de FHC. A minha e a tua presença foi citada, embora não tenhamos sido chamados para discursar. Não estávamos no ‘nosso’ campo. Ficaste incomodado. Ainda posso tratar-te por tu? Ou seria mais adequado você? Senhor Dr.? Sua excelência? Bem, o brilhante e disciplinado Wlad, líder da tua fração, bem tentou nos acompanhar. Admitiu a derrota, embora a demarcasse, e afirmou que nos deixava em paz com apelos ao bom senso naquele boteco que servia (serve?) o mais tenro sarapatel e a mais gelada cerveja do país, ali pela Vila Madalena. Foi uma longa noite, com um amanhecer inesquecível no terraço de um 15º andar. O sol a infiltrar-se na neblina, a furar a poluição. Cidade redoma, lugar sem fim ou começo, bruta e veloz. Em 360º graus eram apenas edifícios e antenas. Milhões de habitantes, mas apenas eu e tu. Na negra ordem dos teus cachos mínimos e da tua intrínseca seriedade, pediste-me em namoro.
Mnemosyne, a deusa da memória, é a mãe das musas
Quem não participou de um curso de formação política no Cajamar falhou a década de 90. O módulo era ‘materialismo dialético’, a professora Manoela Guaco mantinha um cigarro apagado entre os dedos e discorria sobre a ciência espacial. Numa caixa de papelão florido, escondida numa ilha dos mares do sul, dormem os teus bilhetes dobrados em forma de sanfona daquele dia. Combinávamos um encontro, e discutíamos em papéis mínimos se o melhor lugar seria o jardim da caixa d’água, com a vantagem da luz da lua, ou a piscina abandonada, com ou seus cadeirões em madeira desbotada. Acabamos por debater e concordar sobre o rumo da esquerda socialista e o ‘peleguismo’ da estrela vermelha docemente estirados na caixa d’água.
Tu não sabias dançar e eu era indisciplinada
Sentias-te em casa na minha casa. Ousavas discutir política e música com o meu pai artista do Maio de 68. Sempre fomos bossa-nova e MPB, esse gênero que nos antecedia e que perpetuávamos. No dia da memorável passeata – dois trios elétricos adentraram pelo Ministério Público, o que permitiu-nos em um passo aceder à varanda, ocupar a sala do procurador e todo o edifício – comemoramos na minha casa junto à Lagoa, com vinho chileno e Tom Jobim. Custou-te partir. Carregavas silêncio e a tua última t-shirt.
No congresso dos socialistas nos contrariamos em pleno. Eu contra a cota para mulheres na direção. Apanhaste no microfone depois de mim, mas já assumias a derrota, tu, que eras o novo líder da Juventude do Araguaia. Eu, que partia rumo ao futuro enquanto prometias garantir o presente. Belo Horizonte foi meu último congresso, despedida. Coincidiu com a entrada em cena da jornalista. Ouvi e aplaudi Fidel. Entrevistei o último caudilho, Leonel Brizola. Atropelei um jornalista da Folha e ganhei o Bauptista Vidal. O Roberto Requião ficou deveras chateado – embora, sabes, não perde a pose e o tom suave – com a pergunta sobre a violência contra os sem-terra no Paraná. O congresso era a metáfora da minha festa privada de adeus. Se calhar nós os dois não queríamos despedidas.
Durante uns tempos ligávamo-nos na altura dos anos. Da última vez tinhas apanhado uma bebedeira – simulavas um vão discernimento ao criticar o comitê; descrevias a forma a textura da minha pele; queixavas-te de não ter concluído a licenciatura e culpavas-me por não existirmos. Tive notícias diretas tuas há quatro anos. Encontraste minha irmã num bar em Brasília, ainda ocupavas o segundo escalão. Agora vejo-te pelas notícias, ouço o político e não te reconheço nos fatos. O menino tornou-se o poder. Eu estou no meio da multidão.
A verdadeira resposta da Panificadora Brasília
Pedi-te uma entrevista. Porque o teu tema tem tido destaque. Embora, confesso, não me interessa em particular, não o considero importante, tão pouco interessante. Todavia, é fato que neste âmbito teu reino chama atenção. A atualidade somada ao determinante das tuas ideias fizeram-me acreditar que valias uma pauta. Segui o procedimento padrão, apenas dei a pista de que nos conhecíamos a tua gentil assessora, com medo de me tornar ridícula por não lhe indicar o fato. É verdade que o responsável pela tua agenda foi meu líder intermediário, recebeu o meu respeito e o meu voto convicto. Pediram-me envergonhados às perguntas que eu far-te-ia. Respondi-lhes que tal era impossível – embora compreendesse, dado o lastimável estado do mundo. Passaram-se meses, fui relegada ao esquecimento, sem direito a um 'não'.
Estou furiosa. Louca contigo enquanto metáfora da minha geração e dos meus sonhos. Perplexa com a tua indiferença para com o mundo. Inquieta para com o teu silêncio autoritário e imperialista. Parece-me que te transformaste na nossa crítica, que se substituíram às pessoas, mas que os discursos e as práticas mantêm-se velhos e puídos. Outro dia, na redação, alertaram-me delicadamente sobre a impropriedade de falar de tal liderança na presença de uma jornalista. Trata-se, ao que parece, de uma história de política, amor, ideias e sonhos.
Eu não estou apenas furiosa. Sinto medo. Medo de que o poder para os meninos e para o povo seja apenas tu a afirmar-me a tua negação às velhas utopias. A tardia democracia, da qual nós políticos e jornalistas somos constituintes e garantes, não passará de um discurso bem comportado? Diz-me a verdade: és socialista e ressoam nos teus ouvidos as nossas palavras de ordem? És meu camarada e resta memória e uma antiga cumplicidade? Mantenho a raiva acesa, para garantir que não chegue a indeferença que me paralisará.
Digo-te quem sou. Para que não me temas. O tão querido Atlântico nos separa e mantenho-me bailarina. Da minha vida burguesa de assessora de comunicação passei a proletária condição de jornalista. Sou freelance, o que me dá o acréscimo de dignidade de dedicar-me aos temas que me interessam e importam. Estudo política, substantiva, não a corriqueira. Sou feminista e mudei de posição em relação às cotas, convencida pela Simone de Beauvoir. Embora, nós mulheres, continuemos a ser a alteridade. Eu mantenho-me na trincheira, contudo numa dimensão e com instrumentos distintos. As minhas crenças são exatamente as mesmas do século passado. Os meus sonhos projetaram-se, é verdade. Desde a Padaria Brasília houve outras latitudes, perspectivas, palavras e amores. Há acrescento de ponderação, de conhecimento, de disciplina, de calma para com o meu semelhante e com as ideias. Mas, na essência, reafirmo-me. Gostaria de chamar a sonoridade do teu nome em voz alta e com a devida maiúscula. Mas, há algo mais antigo, que eu nomeio de lealdade para com o que fomos e o que sou, que se impõe.
“Eu apenas queria que você soubesse
Que aquela alegria ainda está comigo
E que a minha ternura não ficou na estrada
Não ficou no tempo presa na poeira
Eu apenas queira que você soubesse
Que essa criança brinca nesta roda
E não teme o corte de novas feridas
Pois tem a saúde que aprendeu com a vida”
(Gonzaguinha, Eu apenas queria que você soubesse)