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Marco Albertim: O coronel

Acordou, o coronel, após dois sonos interrompidos. No primeiro, sonhara com Gerino rindo na sua cara. Cinco dias antes, Gerino fugira com sua filha, a única que criara com a matrona Alzira. Depois, pensou que não dormiria mais; dormiu para sonhar com a filha grávida, pedindo-lhe perdão. Não a perdoou, é certo, o resíduo de mau humor não o deixou. Quando levantou-se de vez, foi ao quarto da filha.

Por Marco Albertim*

Vira-o toda manhã com a porta fechada, zelando pela virgindade de Maria das Graças; agora, aberto, devassado pelos olhos do mundo. Entrou para ter certeza, para dar cobro de seus sentidos. Cama forrada, travesseiro no lugar. Na frente, a cômoda com os restos de roupa que a filha deixara. Olhou para um lado, entre a lateral da cômoda e a parede. Viu um timbu no chão, encolhido, rabo comprido, couro espesso e pelos ralos. Saiu do quarto correndo, sem notar que a janela estava aberta, semiaberta.

– Argh!… Firmina! Tira o timbu do quarto de Maria das Graças!

A empregada veio correndo, com uma vassoura e uma pá de ferro. Podia remover o bicho pressionando-o entre a vassoura e a pá. Mas sabia do trauma do coronel, de quando fora picado pelos dentes finos de um timbu, ainda menino. Sabia enfrentar homens, o coronel… Gente! Mas timbus… Firmina matou o timbu com a lâmina da pá, mostrou ao patrão.

– Longe daqui!

Àquela altura, a mulher saíra do banheiro, subjugada à primeira precisão do dia. Apareceu na sala, ainda repondo-se nas roupas.

– O que é isso, Fabrício? Tá acordando a vizinhança!

– Que me importa! Maria das Graças foge de casa e no seu quarto aparece um timbu! É agouro, Alzira; só pode ser agouro!

– Vou mandar rezar a casa. Chamo o vigário. Ele vem com incenso e a bíblia. Aproveito para rezar por Mariinha.

– Não! Ela agora tem quem lhe proteja… E sabe rezar sozinha. Já destampou o cabaço… Agora, que se vire!

Firmina pôs a mesa. O manguzá deu conta de um cheiro mais que ativo, sedativo. O coronel sorveu-o com aparente sossego, mastigando os caroços devagar, lembrando-se do timbu.

– Ainda tem o cuscuz, Fabrício – acrescentou a mulher.

– Eu sei.

Não sabia, mas conveio que o instante era para mostrar que não perdera o domínio sobre a casa.

Quando terminou de comer, entrou no quarto. Alzira seguiu-o com os olhos. Firmina, da cozinha, olhando de través; testemunhara tudo, a empregada, até o sumiço de Maria das Graças ela espreitara; e cobria-se de recatos. Dali a meia hora, o coronel saiu do quarto; saiu fardado.

– Fabrício! Tu já estás aposentado, homem…

– E daí?! Fui aposentado com direito a tudo, até de usar a farda.

– Deus do céu. Não bastasse o sumiço de Mariinha.

Única filha do casal, Maria das Graças fora, bem dizer, comprada a um casal de moradores do sítio que o coronel tinha, distante de Goyaninha. Pobres, o homem e a mulher, já com dois filhos, pegaram o dinheiro, compraram uma posse longe das terras da cana, do cultivo do coronel. Longe para não ter a posse tomada pelas canas do coronel, fornecedor de cana da usina. Fabrício e Alzira, diferentes nos sentidos, inda que unidos na esterilidade, criaram a moça de pele negra longe da gente negra. Matricularam-na em colégio de freira, fizeram-na amiga de moças brancas, louras. Ela cresceu com as feições finas, cabelos lisos, voz doce, a modo de freira dando conselhos. Com 22 anos, terminou o curso pedagógico com distinção. Quando recebeu o diploma, pai e mãe disseram-lhe que a casa e o sítio do canavial, tudo fora passado para o seu nome no cartório.

Fugiu com Gerino quando já tinha 23 anos, sem que houvesse suspeitas de que amasse alguém. Fabrício e Alzira tinham-na visto trocando olhares com um e com outro, nada que preocupasse. Gerino fora o único que, com insistência, passava em frente a casa. Na padaria, encontrara-se com Firmina, que o repreendera severa e cúmplice; mais cúmplice. A empregada nunca ousou um comentário dentro de casa, na cozinha. Os bigodes felpudos do coronel a intimidavam.

Quando o vigário veio rezar a casa, ela se pôs atrás de todos, balbuciando a reza, fingindo crer nas crendices do patrão. O padre, com a batina preta, mitra da mesma cor, trouxera o ajudante, seu coroinha; um moço imberbe, amarelo no rosto, nos braços, dentes fora do alinhamento, soprando a reza do vigário. Atrás dos dois, o coronel e a mulher; sem rezar, ele, mesmo confiando no poder de excomunhão do padre; pusera a farda de oficial da polícia. A mulher não se opôs porque ela mesma se enfiara num madapolão azul carregado, quase preto. Firmina quase não tinha roupa domingueira, resolvera vestir-se de preto, a mesma de quando enviuvara.

Numa quinta-feira à noite, quando o padre não tinha outros deveres, o cortejo partiu do terraço da frente; seguiu pela sala. O padre acolheu nos instintos a mesa da sala, coberta com uma toalha quadriculada. Não havia comida, mas os talheres e pratos estavam em disposição de uso, em quantidade mais que bastante para os moradores da casa. O coroinha, magro, não se deu conta do iminente festim. Na cozinha, viam-se panelas fechadas, cobertas de morins floridos. O padre distinguiu o conteúdo de cada panela, concentrou-se para não estropiar a reza. Quando saíram da cozinha, resolveu, o padre, cantar em vez de rezar . O acólito imitou-o, Alzira também, e Firmina; o coronel não, não era de cantar, nunca fora. Seguiram para os fundos, à cata de esconderijos nunca espreitados. Os sapatos do coronel e do vigário, feito borzeguins, deixando marcas no chão preto, úmido, esmagando talos verdes do capim. De volta, foram para um quarto em desuso, com trastes velhos; depois, para o quarto do casal. Alzira forrara a cama com uma coxa da mesma cor de seu vestido, azul cor de chumbo. Por último, o coronel Fabrício dando sinais de impaciência, entraram no quarto de Maria das Graças. Por sugestão de Alzira, o padre demorou-se no canto onde o timbu fora visto, incensou sem piedade o chão, a parede, molhou-o com a água benta. A reza, ali, fora retomada. Ao fim, o padre virou-se, respingou o cortejo com a água, não evitou que um pingo caísse no olho de Fabrício. Depois que o padre fez o sinal da cruz para todos, e todos o imitando, Fabrício enxugou a pupila.

Fim da cerimônia. Alzira ordenou a Firmina que pusesse a comida na mesa. A empregada correu para a cozinha, intrigada porque de seu quarto os agouros não foram excomungados.

Sentia-se o cheiro do incenso. A mesa cobriu-se de rodelas de inhame, bolos, guisados muitos, pães, cuscuz, queijo e o café soltando um fio de fumaça no bico do bule, juntando-se ao cheiro do incenso. O vigário sentou-se na cabeceira da mesa, de frente para Fabrício; de seu lado, o coroinha, que não comeria caso o padre não o autorizasse a se servir. Alzira sentou-se no lugar de sempre, ao lado do marido.

Quase não se falando, posto que a reza os depurara do costume de conversar à toa. O padre quis perguntar sobre a filha sumida; o instinto instigou-o porque a ausência de Maria das Graças deixara um vácuo na casa, na mesa. Tanto Fabrício quanto Alzira distinguiram na testa do pároco a inquirição muda, muda e ostensiva. Não demorou e voltaram a olhar para a mesa, para a comida. Firmina, da cozinha, espreitando, lendo o pensamento de cada um.

Fim da refeição. Foram sentar-se no terraço, olhando para a rua, à praça em frente, onde Maria das Graças encontrara-se com Gerino, urdindo a fuga. Era tão escura que não se distinguia o guarda noturno. A luz rala do poste, mal dando conta do piso mutilado da calçada.

O vigário, compulsivo na gula, na indiscrição legitimada pela batina, falou com a voz rouca, pausada:

– Maria das Graças não é moça de dar as costas à família, principalmente aos pais. Ela vai voltar, vai voltar para a missa de todos os domingos, ao mesmo lugar.

Alzira, rendida:

– Deus te ouça, padre Honório…

Fabrício, mudo, alisando os bigodes com o indicador e o dedo menor; olhando para o padre, rendido ao costume de a mulher, sempre a mulher, trocar palavras com o pároco de Goyaninha. Não havia suspeitas, nada a espreitar. Só o incômodo de sentir-se subjugado, sem poder dar o rumo da conversação miúda.

– Tem dúvidas, Fabrício?

Se fosse Alzira que tivesse perguntado, por certo não responderia; ou mostraria indiferença quanto ao rumo da filha, inda que a quisesse por perto para censurar-lhe a conduta, ouvir uma súplica de perdão. Mas…

– Não tenho esperança.

Tudo que obtivera na vida, fora com arbítrio, ordens severas. Fabrício não tinha esperança de submeter a filha de 23 anos a seus desígnios de militar aposentado.

– Já tinha idade para se casar. Por que fugiu? – quis saber o padre.

A mesma pergunta Fabrício já se fizera; respondera sem dizer nada culpando a si mesmo, sem admitir culpa por ser um pai zeloso dos brios íntimos da filha. Mais ainda porque sacrificara parte da juventude, já casado, na educação da menina e moça que não fora gerada nas entranhas de Alzira. Já Alzira convencera-se de que a filha temera pedir consentimento ao pai, para casar-se com alguém de família estranha, não conhecida dos instintos do coronel. Quase o culpara numa das poucas conversas à noite, antes do sono. Mas, por mais de quarenta anos, habituara-se aos silêncios do marido; mesmo sem ouvir uma palavra, distinguia-lhes os sons. Firmina, com eles há vinte anos, agregara-se a casa, cumprindo a regra de seguir os rastros dos patrões sem romper o limite da submissão.

– Nunca teve namorado aqui em casa, na frente dos pais – explicou Alzira. – Mas podia, se quisesse. Nosso erro foi não ter providenciado uma irmã para lhe fazer companhia.

Fabrício decidiu falar:

– Seria outra tragédia. As duas crescendo juntas, uma tentando a outra na conjura das fugas. A cana é pra ser moída na moenda da usina, mas as moças de juízo mole gostam de se esconder nas palhas da cana em companhia do namorado.

Firmina, recolhendo as louças na mesa, ouviu; ouviu e deu razão ao patrão. Perdera a virgindade, deitada entre uma cova e outra do canavial crescido. Riu, a sonsa.

O acólito saíra. O padre dera a autorização sacudindo a mão.

O padre despediu-se reiterando a crença no retorno de Maria das Graças. Não havia mesmo o que dizer, visto que o episódio, quase proibido de ser explicado, estava exposto no rosto de cada um. Firmina tinha na patroa uma aliada de seus instintos. Mas o coronel, calado, espreitava os cantos da casa.

Demorou uma semana, o carteiro bateu no portão de ferro. Ninguém apareceu. Ele sacudiu o portão, tilintando a sineta em cima, na ponta de uma seta. Firmina veio correndo. Segurou a carta, identificou a letra de Maria das Graças. Convenceu-se de que jamais sairia daquela casa, porque foi a primeira, seria a primeira a dar conta aos patrões de que Mariinha lhes escrevera.

Fabrício e Alzira, dormindo, depois do almoço. Firmina bateu na porta do quarto. Alzira interrompeu o sono, mas sem o mau humor do marido.

– Carta de Mariinha!

Estava endereçada ao pai e à mãe. Alzira abriu-a às pressas. Pensou em acordar o marido; caso o fizesse, ele tiraria o papel de suas mãos, para ler sem trair a ferocidade. Alzira leu ali mesmo, na frente de Firmina. Não era uma carta longa, mais ou menos uma folha com listras horizontais. A letra da filha, redonda, desenhada, no modo como aprendera das freiras no colégio. O modo bem-comportado deu mostras de preocupação com a saúde dos pais, de Firmina – a negra legitimou-se junto da velha. Pediu desculpas por ter sumido sem dar avisos, e disse, para desgosto da mãe e de Firmina, que podiam dar a um pobre os restos da roupa que deixara na cômoda. No meio, surpreendeu dizendo que, àquela altura, não sabia se a tinham como filha. Queria voltar, estava com medo, mas só voltaria se fosse em companhia de Gerino, que a levara para a casa dele como um tesouro descoberto.

– Ela pode voltar! Gritou Fabrício, à noite, segurando a carta com os dedos trêmulos.

– Ela está casada! – disse Alzira.

– Amigação! Minha filha saiu de casa pra se amigar com um estranho.

– Para com isso, Fabrício.

– Parar como? A casa e o sítio estão no nome dela. Quem estiver amigado com ela, vai tirar proveito.

A carta foi guardada na mesa de cabeceira, ao lado da cama do casal. Fabrício não quis ser o guardador das novas familiaridades da filha. Entregou-a à mulher, como fizera quando pagara as primeiras despesas com Mariinha.

Manhã seguinte, Alzira foi à casa paroquial. Mostrou a carta ao padre.

– Preparem-se para receber Maria das Graças de volta. Ela vai voltar. Não esqueçam de me convidar para o jantar de comemoração.

– E se ela vier em companhia do rapaz?

– Recebam-no também! Se ele vier é porque tem o propósito de viver com ela. Não vão se negar ao casamento no altar da igreja.

– Estou com medo.

– Com medo de ver sua filha feliz?

– A felicidade dá medo.

A porta da frente se abriu. O coronel Fabrício não pediu licença para entrar; já a tinha pelo legado hierárquico de Goyaninha. Sentou-se na poltrona ao lado do padre, cruzou as pernas e disparou:

– Não vão se casar na igreja sem antes se casarem no cartório. Em regime de separação de bens! Quero testar as boas intenções do rapaz.

– Isso é com vocês – disse o padre. – Quando decidirem pelo matrimônio sob a bênção da Igreja, me avisem para eu enfeitar o altar.

A porta da frente se reabriu. Firmina apareceu mais morta que viva, sem saber a primeira palavra para dar conta do que, conforme seu rosto, desabara na casa do coronel Fabrício. O vigário mostrou-se curioso. Expulsara os agouros da casa, consultaram-no sobre o futuro da filha, tinha o direito de ouvir o que o rosto transido de Firmina escondia.

Por fim:

– É Mariinha. Ela voltou. Está em casa.

– Está sozinha? – quis saber o coronel.

– Não…

O padre chamou o coroinha, ordenou que providenciasse água-benta. Puseram-se em formação de cortejo. O coronel tinha um carro do tipo Rural. Pôs-se na direção, o padre ao lado; atrás, Alzira, Firmina e o coroinha.

A formação entrou em casa cumprindo a hierarquia. No terraço, Maria das Graças, sentada ao lado de Gerino, um moço de sua cor, com o rosto mais queimado. Os dois ficaram em pé, quando todos saíram do carro. O coronel não evitou olhar para o ventre da filha.

Não houve cumprimentos. Maria das Graças foi a primeira a falar:

– Meu irmão, Gerino…

*Marco Albertim é escritor e jornalista. Ganhador do Premio Nacional Osman Lins de Contos, da Fundação de Cultura do Recife.