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Relatório não investiga a fundo as raízes da crise nos EUA

A Comissão do Congresso norte-americano que estuda a origem da crise (FCIC, na sigla em inglês) passa a mensagem de que o modelo econômico vigente nos Estados Unidos já há 30 anos está bem, mas alguns abusos no setor financeiro o arruinaram. Evita defender a mudança estrutural e a redistribuição da renda necessárias à solução da crise.

Por Alejandro Nadal, do blog Informação Alternativa

Os Estados Unidos têm uma longa história de criação de comitês de alto nível para investigar as causas de eventos que abalaram o país. Quase todos fracassaram e até se converteram em instrumentos para encobrir fatos inconfessáveis.

Os exemplos multiplicam-se: desde a comissão Warren para esclarecer o assassinato do presidente Kennedy em 1963 até à comissão federal para investigar os atentados do 11 de setembro. A verdade é que não convenceram ninguém com os resultados apresentados.

Hoje temos um novo exemplo. Trata-se do relatório da Comissão do congresso estadunidense para investigar as causas da crise financeira e econômica (FCIC, nas suas siglas em inglês). O texto completo pode ser lido em fcic.law.stanford.edu/. Trata-se de um volumoso relato de mais de 600 páginas e é tão decepcionante como a promessa de um raio de sol antes da tormenta.

Segundo a comissão, as principais causas da crise financeira foram as seguintes: primeiro, as falhas generalizadas na regulação e superintendência financeira foram devastadoras para a estabilidade dos mercados financeiros.

Segundo, os dramáticos fracassos na administração corporativa e a gestão de riscos em muitas instituições financeiras desempenharam um papel chave nas origens da crise. Evidentemente, os mecanismos bolsistas também contribuíram para propagar os efeitos destes fracassos.

Terceiro, uma combinação de sobreendividamento, investimentos arriscados e falta de transparência colocou o sistema financeiro numa trajetória de crise. Os derivados vendidos em transações fora do controlo dos mercados organizados agravaram a crise de forma significativa.

Quarto, o governo esteve mal preparado para enfrentar a crise, o que aumentou a incerteza e o sentimento de pânico nos mercados financeiros. Quinto, o colapso sistêmico dos mecanismos de prestação de contas e do enquadramento ético do setor financeiro agravou as coisas. Por exemplo, as falhas das agências de classificação foram essenciais no processo destrutivo de um sistema sem transparência.

Mas estes são só algumas aspectos dos problemas do setor financeiro. As verdadeiras causas da crise encontram-se na sua articulação com outros processos macroeconômicos que pertencem aos setores reais (não financeiros) da economia.

Por exemplo, o relacionamento entre os padrões de investimento, gestão de inventários, salários e endividamento é um assunto irrelevante para entender as fontes da crise. O relacionamento entre a dinâmica destas variáveis e a crescente exposição financeira dos grandes grupos corporativos é outro aspecto que a FCIC preferiu não tocar.

Mais importante, o relatório ignora o relacionamento entre a distribuição funcional do rendimento (entre lucros e salários), o endividamento, os preços de diferentes categorias de ativos e as mudanças no continuum das taxas de juro.

Seria importante dizer também que a comissão considera irrelevante o tema da transformação estrutural da economia dos Estados Unidos ao longo dos últimos 30 anos. O desmantelamento de componentes estratégicos do seu aparelho industrial e a macrocefalia descomunal do setor financeiro são elementos chave numa análise das origens da crise.

As mudanças na estrutura da economia mundial são também uma chave para entender a crise. O déficit externo crônico dos Estados Unidos tornou indispensáveis os fluxos de capital de curto prazo que a China (e outros países com superávit) puderam proporcionar.

Tudo isto encerra o circuito macroeconômico para entender as origens da crise. Mas é precisamenteesse quadro o que a FCIC não pôde analisar. Com razão, a palavra macroeconomia não aparece uma só vez nas suas 633 páginas.

A FCIC omitiu discussão sobre a adesão à ideologia neoliberal a partir de 1980 e as suas implicações na distribuição do rendimento e no desmantelamento das estruturas de regulação financeira. Bem podia ter dedicado umas páginas ao nefasto papel de um establishment acadêmico acostumado à zona de conforto dos modelos que falam da domesticação do ciclo de negócios e do desaparecimento das crises.

Depois de tudo, estes modelos são a base da (má) administração de riscos de corretoras e casas de bolsa.

A análise das deficiências do relatório da FCIC não é um mero exercício acadêmico porque as implicações de política econômica são importantes. Em síntese, a FCIC quer enviar a mensagem de que o modelo econômico vigente nos Estados Unidos há 30 anos está bem, mas que alguns abusos no setor financeiro o arruinaram.

Deste modo, evita falar da mudança estrutural e da desconcentração da renda que seriam necessárias para começar a corrigir as coisas. Este é o grande engano que a classe dominante nos Estados Unidos quer manter para conservar os seus privilégios.

Uma coisa, sim, é clara: se isto é o melhor que uma comissão do congresso estadunidense pode fazer, esse país anda muito mal.

Fonte: Informação Alternativa (editado pela redação)