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André Gomes: lendo o sociólogo FHC para entender o ex-presidente

Com a comemoração, em 2011, dos 80 anos de Fernando Henrique Cardoso, uma das principais referências do pensamento liberal brasileiro, torna-se oportuno rever a sua trajetória intelectual: “no início, Cardoso se posicionava no campo do Liberalismo democrático, mas as circunstancias históricas o empurraram para uma posição conservadora da qual é ainda hoje um dos principais expoentes”.

Renomado intelectual, Fernando Henrique Cardoso marcou seu nome na história do Brasil ao passar pela Presidência da República, se firmando como uma das principais lideranças ligada aos interesses da burguesia financeira internacional associada ao Capital Industrial e Agro Mercantil.

Muitas são as críticas feitas a FHC, porém algumas delas de tão ingênuas se tornam ineficazes, mesmo lideranças de esquerda volta e meia repetem o falso argumento de uma frase a ele atribuída quando assumiu a Presidência da República, “esqueçam o que escrevi”. Pode até ser que ele tenha dito isso, mas acredito que muito mais para contemplar seus aliados do que propriamente para expressar de fato o que pensava naquele momento.

Nesse breve artigo entendo que o Governo Fernando Henrique foi extremamente coerente com que ele escreveu a vida toda. Claro que ao ser eleito Presidente, aplica seu programa com a mediação da correlação de forças e de condicionantes históricas que o impedem de aplicá-lo ao pé da letra, porém no essencial seu Governo expressa as idéias que ele sempre defendeu no que escreveu.

Assim sendo, não me parece aconselhável esquecer o que ele escreveu antes de ser Presidente, pelo contrário seria sugestivo reler. Permitiria inclusive uma melhor compreensão do que foi o seu governo e, principalmente, a formulação de uma crítica melhor situada.

Dito isso a título de introdução, a ideia aqui é resgatar algumas de suas formulações. Antes disso, porém, é importante pontuar que no Brasil, historicamente, predominou o Liberalismo conservador e mesmo esse, por vezes, esteve subordinado ao pensamento autoritário, ou melhor, vinculado a ele.

Antes do golpe civil-militar de 1964, por exemplo, os liberais se aglutinavam na UDN e já preconizavam o golpe. Dinâmica centrada nas forças armadas, o golpe militar consolida a Revolução burguesa no Brasil, Gramsci diria que a revolução burguesa no Brasil é feita pela via Passiva.

A chamada Teoria do Populismo, principal noção para explicar a política brasileira de 1930 a 1964, em grossas linhas, defende a ideia de que nesse período havia ainda a ausência de uma sociedade civil e de instituições fortes e o processo de urbanização com grande êxodo rural deixaria uma massa vulnerável aos demagogos. Há hoje uma reavaliação crítica desse período, porém liberal, nessa perspectiva o período de 1945 a 1964 foi um período liberal democrático com instituições sólidas.

A partir da década de 1950, ganha força a temática do desenvolvimento, em grande medida estimulada pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada em 25 de fevereiro de 1948 pela ONU, com sede em Santiago do Chile). Para FHC, é possível o desenvolvimento do Capitalismo brasileiro mesmo em condições de dependência e a democracia era difícil, mas em perspectiva era possível.

Breve biografia intelectual-política de Fernando Henrique Cardoso

Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro, mas se mudou ainda criança para São Paulo. Vêm de uma família de militares, há relatos de que seu pai teria participado do Tenentismo. Se formou em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e logo após publicou uma série de artigos em diversas revistas.

Há alguns exagerados que o colocam no início de sua trajetória no campo do marxismo, em nossa leitura o mais perto que chegou dessa perspectiva foi em sua participação no famoso grupo de estudos de “O Capital” em 1959 (Grupo de estudos de “O Capital” de Karl Marx organizado na USP, a partir de 1959), muito embora em alguns textos seus, Cardoso se utilize de algumas terminologias marxistas.

Seu primeiro livro publicado foi “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional”, no qual defende a ideia de que o Capitalismo brasileiro pode se desenvolver mesmo num contexto de escravidão, aliás, para ele jamais existiu escravismo no Brasil, muito menos Feudalismo.

No período em que escreve, existe forte polêmica em torno da questão se existiria ou não uma burguesia brasileira antiimperialista. Em sua tese “Empresariado Nacional e Desenvolvimento Econômico”, defende a ideia de que a burguesia brasileira já estava associada à burguesia internacional e não tinha o menor interesse em se contrapor ao Imperialismo.

Tese defendida em 1963 fazia crítica à interpretação dos marxistas brasileiros, que viam em uma fração da burguesia brasileira, potenciais aliados contra o latifúndio feudal e o Imperialismo. (O PCB – maior partido da esquerda brasileira do período – defendia a tese feudal e a necessidade de uma revolução democrático-burguesa, os inimigos principais eram o Imperialismo e o latifúndio feudal, assim sendo a burguesia nacional não é, nesse momento, inimiga. Por determinado período, ela poderia apoiar o movimento revolucionário na luta antiimperialista e antifeudal, a chamada burguesia compradora é que seria contra-revolucionária).

Após o Golpe militar, FHC se exila voluntariamente no Chile que, nesse momento, é governado por uma Democracia Cristã. A Cepal e outras instituições abrem espaço no Chile para professores brasileiros. Nesse contexto, FHC se insere no debate em torno do desenvolvimento, lançando o livro “Desenvolvimento e Dependência na América Latina” em parceria com o Professor chileno Enzo Falleto, sociólogo que participou do CEPAL a partir de 1973 e atuou na Universidade do Chile até seus últimos dias de vida.

Logo após, FHC passa no concurso da USP, porém não assume devido ao AI 5. Ajuda a fundar em São Paulo o CEBRAP, que se constitui como um núcleo intelectual de oposição ao regime. Publicou nesse período uma série de artigos e ensaios.

Em seguida, se aproxima do MDB e intensifica sua ação política. Em 1978, é eleito suplente de Franco Montoro ao Senado Federal, assumindo a cadeira em 1983, com a eleição de Montoro ao Governo do Estado de São Paulo.

Dois anos depois perde a eleição para a prefeitura de São Paulo para Jânio Quadros e, em 1986, se elege Senador por São Paulo junto com Mário Covas. Em 1988 torna-se um dos fundadores do PSDB, que, a essa altura, se constitui um grupo político dirigente da burguesia paulista.

Em 1989, o PSDB se desloca para o discurso Neoliberal que, na verdade, já se encontrava presente em sua carta de fundação.

Posteriormente, FHC assume no breve Governo Itamar Franco os Ministérios de Relações exteriores e, depois, o da Fazenda. Nessa última pasta foi um dos criadores do Plano Real, que seria o grande impulsionador de sua campanha à Presidente da República.

Seus Governos representaram o auge do Neoliberalismo no Brasil. Durante sua trajetória, rompeu com Florestan Fernandes, Otavio Ianni, Raimundo Faoro, entre outros.

“Autoritarismo e Democratização”: uma interpretação do texto de FHC

Embora seja um autor respeitado e de formulações importantes, Fernando Henrique Cardoso não publicou muitos livros se comparado a outros autores, mas escreveu muitos artigos e ensaios e, muitas vezes, os reunia em livro. Optei aqui pelo texto “Autoritarismo e Democratização” que me parece fornecer uma boa síntese de sua visão sobre a realidade brasileira, em particular sobre o Estado.

Publica esse capítulo em 1972, década em que está presente no pensamento de diversos intelectuais brasileiros a ideia de que seus escritos pudessem incidir na realidade política brasileira. A morte do jornalista Wladimir Herzog, na prisão, reforça a luta pela democratização e a Universidade intensifica sua presença no processo. Os intelectuais se projetam na vida política do País, essa militância político-intelectual conflui para o MDB que articulava uma frente política pela redemocratização.

Aqui os liberais avaliam que o país já está em vias de constituir instituições democráticas no Brasil e já está presente na paisagem brasileira uma sociedade civil forte e com capacidade de articulação, aparentemente nessa perspectiva estão se reunindo as condições para uma Democracia Liberal no Brasil.

Nessa obra. FHC aponta o que chama de interpretações equivocadas da realidade brasileira, mantém a visão tradicional liberal, nega o discurso do regime militar que se responsabiliza pelo desenvolvimento do Capitalismo no Brasil. Refuta também a tese do desenvolvimento baseado na super exploração do trabalho.
Formula a ideia de um “Desenvolvimento dependente associado” e localiza o que chama de “Burguesia Estatal” ou “Burguesia de Estado”. Aponta que as empresas estatais são muitas, mas que o controle dessas não é público, grupos privados se apropriam da administração das estatais e se constituem enquanto uma fração da burguesia.

Fala-se na formação de uma técnico-burocracia que realiza ações voltadas para a acumulação. Defende o termo autoritarismo mais adequado que a noção de Facismo para explicar a realidade brasileira. Fala dos intelectuais como se esses não fossem vinculados a uma perspectiva e a uma referência de classe, retoma a ideia de uma “democratização substantiva”.

Para o pensamento liberal no Brasil, o Estado não é público e representa interesses de grupos privados, em sua tese, Estado e Sociedade estão articulados. Para FHC, é preciso superar a dicotomia entre estado e sociedade presente no pensamento político brasileiro. Aponta que, na América Latin,a mesmo o discurso democrático prioriza o Estado e vida social coletiva e não a liberdade individual, que é o fundamento do Liberalismo.

Fala em cidadania e representação, critica os Liberais brasileiros que, segundo ele, historicamente estiveram pendurados no Estado, teriam sido derrotados não só do ponto de vista teórico, mas também político.

No Brasil o Estado é protagonista da revolução burguesa, ele tem um projeto e puxa as classes. Critica o que chama de estatismo de esquerda e de direita, para ele ambos se desdobram no fortalecimento da empresa pública para conter o desenvolvimento da privada.

As empresas públicas, nessa perspectiva, são utilizadas como aparato político, o próprio Estado é um campo de disputas políticas, setores lutam em si como facções defendendo interesses distintos. É contrário a saída de uma revolução democrática, reforça a ideia de tendência a burocratização consagrada por Max Weber. Para ele o Estado brasileiro é um Estado de desenvolvimento do Capitalismo, o que se pode discutir é se é um Capitalismo de Estado ou de mercado.

Aponta que a Ditadura Militar conseguiu rearticular Estado e Sociedade Civil, as alianças fundem interesses públicos e privados e as estruturas de poder são muito mais cooptativas do que representativas.

Defende a necessidade de se estabelecer um contra peso como instrumento para equilibrar o poder, ou seja, era preciso fortalecer as instituições da sociedade civil.

Para ele, existe um problema na interpretação da realidade brasileira, em geral, não se leva em conta o entrelaçamento entre estado e sociedade. Fernando Henrique Cardoso fornece uma formulação teórica para a burguesia que a essa altura em novas condições poderia ser liberal de fato.

Nesse sentido, encerro apontando a ideia que é o objetivo central deste breve artigo, ou seja, há grande coerência entre o que escreveu o Sociólogo Fernando Henrique e o que praticou o Presidente FHC.

Essa formulação que descrevi em linhas gerais é um dos argumentos centrais para justificar o processo de privatizações, desnacionalização e desregulamentação da economia brasileira de 1994 a 2002.

Para o Deputado Federal Aldo Rebelo –elogiado por FHC por combater a tese e não o homem — no seu Governo, FHC transformou o Estado em anti-estado. Aldo lembra que em alguns momentos chegou a se considerar a ideia de substituir os Ministérios por agências reguladoras. Parece-me válido lembrar que FHC assumiu seu primeiro Governo em 1994, afirmando que uma de suas tarefas centrais era dar fim à “Era Vargas”.

Seu pensamento se encaixou como uma luva no discurso do "consenso de Washington", de 1989.

O FMI monitorava as economias nacionais, em particular as da América Latina, impondo o seu receituário ortodoxo. Do que vislumbrava um novo padrão de acumulação de Capital, a burguesia internacional de dentro e de fora do País depois do desastre de Collor, não poderia encontrar quadro melhor para aplicar com êxito o Neoliberalismo no Brasil.

O êxito só não foi completo devido à forte mobilização dos movimentos sociais que impediram retrocesso maior, como o Fórum Nacional de Lutas, criado durante os Governos de FHC.

O Fórum unificou os movimentos sociais e populares e realizou diversas manifestações, entre as quais se destaca a Marcha dos cem mil em 1999, em Brasília. Além disso, foi realizado massiva campanha dos movimentos sociais contra a Área de livre comércio das Américas (ALCA)

*André Gomes é graduando em Ciências Sociais pela UNESP/Marília, Presidente do PC do B em Marília/SP e secretário nacional de formação da Nação Hip-Hop Brasil