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Marco Albertim: O quadro

O sonho com a mulher que quase fora sua, deixou-o com o juízo em desordem. Tão viva a imagem se impusera, que acordou crendo na sombra viva de Alzira dentro de casa. Ela – supunha Gomes – não jazia em paz, queria redimir-se do suicídio. Um resíduo de razão, no entanto, preveniu-o de delírio, e bebeu outra xícara de café.

Por Marco Albertim

No esforço de reconstituir o rosto, creu-se em acordo com o bruxo familiar a seus desígnios. O bruxo não o ajudou, e isso o afligiu mais. Para morrer desendividado, teria que pintar o rosto dela, ainda que com a lembrança puída. A memória cuidou de juntar traços incertos, no esforço de ter o impalpável fixo na tela de náilon.

O risco do lápis deu conta de episódios imprecisos. A balbúrdia do juízo podia prostrá-lo, mas deu provas de legitimidade ao propósito. Queria promiscuir-se nas nuances do rosto. Até a meia-noite usou o grafite, suando como não suara nos outros quadros. O rosto de Alzira, acostumado com o escuro do aposento onde fora confinada, não se impunha à luz, ao juízo desperto de Gomes. Ele apagara com um pano para o recomeço inúmeras vezes, suspeitando que só bordejara o rosto procurado. Na última batida do relógio, vexou-se, deixou-se levar para a cama pelo criado. Tomou o chá calmante, serenando-se na crença de rever o rosto enquanto dormisse. A tela ficara apenas borrada, nua de contornos.

Com a barba brancosa, de fios compridos, enroscados entre os dedos, expunha a tensão até pregar os olhos no sono indormido. Dormiu, e nenhum fio ajudou a repor na memória a silhueta distante. Cedo, um fio de sol pousou no seu rosto, vindo da janelinha de vidro transparente. Não cuidara de pôr a cortina, justo para absorver os raios no seu canto escuro. Agora, disputava com a luz o direito de aninhar na alma vultos velhos. Deu-se por vencido, e procurou na primeira refeição do dia a energia para repor o juízo no prumo. Tantos quadros pintara e se julgara feliz.

No meio da manhã, rendeu-se a um sono rasteiro, crendo-se capaz de tê-lo sob seu jugo; até então, não tivera outra razão para manter as pálpebras obedientes.

Alzira acudira-se no sono dele. Convinha a Gomes, pois, pôr fim à razão para deixar Alzira insinuar-se sem embaraço na sua lembrança. Ela seria compensada pelo suicídio precoce, e ele pagaria por não ter saciado a demanda de sexo dos dois.

O relógio bateu dez vezes. O criado pôs o lanche sobre a mesinha ao lado da otomana. Gomes, deitado, olhos abertos, bosquejou quase feliz por não se ter prostrado ao sono. Apreciou o gesto vicioso de Josias. Dividiu-se entre o criado e Alzira oculta na tela. “Obrigado.” Josias, tão velho quanto o patrão, teve um susto. Era a primeira vez que Gomes mostrava gratidão por quarenta anos de sujeição diária. Gomes aliciara-o para o dia a dia com bruxedos.

O pouco que comeu, encheu-o de culpa; culpou-se com um choro mudo na frente do criado. Josias era a testemunha de que Alzira não fora esquecida. “Não se lembra dela?” No vício da servidão, Josias teria arrancado os cabelos para restabelecer a feição de Alzira no pincel de Gomes. Sabia que fora uma mulher magra; no caixão, o rosto encovara para sumir da memória dos outros. Tão magra… Quase nada para ser enterrado.

Disse não com a cabeça, ele, sem coragem de falar. Gomes rabiscou com o lápis o rosto que se insinuara no sono, indistinto.

Os passos que Alzira dera na vida também foram indistintos; tantos quanto o pai permitira.

Gomes baixou o braço de repente. Assustou-se com o risco de pintar o rosto de outra. Queria o dela para dar-lhe o sossego que não tivera em vida, e para morrer, ele, sem obrigações a pagar. Alzira tinha os cabelos repartidos no meio da cabeça, e uma mecha saliente sobre a orelha, cobrindo a têmpora. Mas tinha o rosto tão fino, que a mecha teria coberto todo o rosto ou uma face inteira!… Ainda não quis arriscar-se, ele. Socorreu-se na última conversa que tiveram, os traços no rosto dela.

– Sei que vou morrer logo. Quero ser pintada por você enquanto estiver viva. Não vou lhe perdoar se não tiver o meu rosto na sua sala.

– Venha para minha casa…

Ela não conseguiu escapar do cerco do pai. Gomes nunca sentira repulsa por ele porque os pais, todos, juntavam-se no pacto para manter as filhas de joelhos no oratório de casa… Ou no confessionário da igreja.

Ao invés de se insurgir contra uma regra de todos, intrigara-o a resignada submissão de Alzira. Submetera-se ao pai e à inanição do rosto pálido. Descuidara-se para que seu nome fosse descuidado da memória dos outros.

– Se você morrer não a perdoarei desse pecado, não na minha memória.

– Não nasci para ter memória, Gomes. Já não lembro de mim. O espelho não mostra minha silhueta, não mostra a minha cor para não ter que disputar a transparência comigo. Tenho vergonha de mim, e o espelho é orgulhoso.

O único retrato de Alzira fora pendurado na sala de jantar, junto aos fundos da casa; na parede em frente à cadeira onde seu pai sentava-se nas refeições. Gomes nunca o apreciara, porque não lhe fora dada a licença para tanto.

No fim da tarde, não se livrou da angústia de trocar o lápis por um pincel. Já pintara rostos difíceis porque se mostraram sem contornos. Também perfis duros, quase sonoros. Alzira vivera pouco, deixando voz e rosto incertos. Dera fim à vida crendo em outra, talvez melhor.

Ele olhou para os cantos, supondo-se espreitado por ela. Àquela altura, Alzira não tinha forças para se insinuar no quadro.

Voltou a se deitar na otomana, sem ouvir os rogos do criado; deitou-se com o roupão sobre a ceroula colada no corpo. Tomou o chá, olhou como um adivinho para a tela. Tinha o costume de falar com os quadros; em cada semblante, a submissão ao artista. Alzira fora submissa ao pai, por isso não tinha forças para se descobrir. Ele levantou-se; já se levantara outras vezes e se dera bem só com um toque do pincel. Mas não se achou em condições de usar tintas, e compeliu-se ao grafite.

Duas da manhã, um suor gordurento cobriu-o na testa. Voltou à otomana, dormiu exausto. Acordou com febre, sem força para se levantar. Sobressaltou-se porque não fora acudido por nenhum sonho. O criado pôs a bandeja de comida sobre suas coxas. Ele mastigou olhando para o quadro vazio. Creu-se um pintor judiado pelo ofício.

Não almoçou. Josias preparou caldo verde. Ele tomou duas vezes à tarde. À noite sentiu-se pronto para não ter susto com aparições. Um banho não o remoçaria, mas o deixaria apto à captura de incidentes remotos. Perfumou-se para dar conta a alguma alma erradia, de que Alzira não fora esquecida. Nenhum rosto feminino o socorreu. A defunta se dera uma trégua.

O criado trouxe o ventilador para protegê-lo do fio de sol. Pediu que Josias cobrisse a tela com um pano escuro, incubada. Passou toda a manhã deitado.

À tarde, visita. O padre conversou sobre a restauração do altar-mor da igreja-matriz. Gomes era o único que sabia lidar com as curvas da arquitetura barroca. Não queria se ocupar de trabalho que o desviasse da escassa inspiração. O padre insistiu, queria o altar pronto antes da novena do próximo ano.

– Não temos a quem mais recorrer!…

Gomes rendeu-se pela devoção ao barroco. Sua cama era um estrado de madeira, mogno-escuro. O colchão fino, do mesmo comprimento e largura. Os dois tomaram licor sentados num banco comprido, com gravuras de anjos em alto-relevo.

Dando-se por feliz, o padre foi conferir o ateliê de trabalho; já o conhecia, quis reapreciar os petrechos, para abonar o ofício do velho pintor. Descobriu a tela coberta, surpreendeu-se. Tirou o pano todo para, perplexo, desatar o susto:

– Santa Edvirgem! Você está pintando o rosto da finada Alzira! –

O propósito era incensar a pintura com uma adulação barroca, arremedada; mas assombrou-se com a inspiração temporã.

O susto de Gomes não foi menor; não olhou para o rosto do pároco, para se acudir do rascunho no quadro. Levantou-se, foi para junto do outro, aprumando os óculos. O padre desapossou-se do trejeito servil; inquieto, confuso, inquiriu:

– O que deu no seu sossegado juízo!?

Josias conhecera o patrão no começo do ofício, deixara-se subornar na pintura mortuária. O pároco não recusaria unção ao que Gomes supunha ser a sua derradeira obra.

– Alzira queria que eu a pintasse enquanto estivesse viva. Não a pintei porque ela não teve coragem de vir aqui para servir de modelo. Agora estou fazendo seu retrato para que descanse em paz.

Não confessou o esforço vão de restituir, na memória, o rosto. Outro resíduo de razão manteve em segredo o amor que nutrira por ela. O padre remoeu-se em desconfianças, olhando-o de cima a baixo. Tornou-se mais fácil revirar a alma do amigo. “Por que não pintou o quadro logo depois da morte dela!?”

As suspeitas cresceram quando se referiu ao pai de Alzira, rezingão. Bateu amistoso no ombro do amigo. Não disse nada além de desejar boa sorte. Gomes absorveu o afago como outra parceria.

Só, na otomana, voltou a olhar para a tela, tentando descobrir os traços de Alzira entrevistos pelo padre. Ela se mostrara para outro, justo o homem que rezara a missa de sétimo dia, inda que a contragosto por se tratar de defunta voluntária. Quis falar com ela, suplicar à tela para desassombrar o contorno do rosto. Só podia usar o pincel com tintas, depois que o lápis riscasse os contornos. Culpou-se por estar quase cego, ter gasto os olhos por cinquenta anos com outros rostos. O padre atestara o esforço de Alzira se pôr rediviva, justo ele, que cria em milagres. Inda que não chegasse ao fim da pintura, a alma de Alzira, por certo, se nutria no reconhecimento de seu rosto pelo padre que poderia ter celebrado seu casamento.

Gomes pacificou-se na hora da refeição. Fiou-se nos rogos do criado, para dar sustância às noites indormidas. Teve, por fim, depois de dois meses da visita, coragem de juntar o pincel ao óleo. Na expiação, no arremedo de alegria, pressionou com força o pincel. Viu com assombro a densidade da cor, diferente da brandura descorada do rosto de Alzira. Removeu a tinta com o pano. O susto deixou a mão sinistra. Sentou-se sob a luz do fio de sol. Imiscuiu-se na fulguração para entender-se com algum diabinho que o acudisse.

-Maldito seja eu!

O criado enxugou-o na testa; com um pano úmido, deixou-o na fresca.

– Deve se poupar por hoje. Amanhã terá mais energia para pintar.

Segurou na mão do criado.

– Josias, não me deixe enquanto eu não terminar o rosto de Alzira.

O criado trouxe um copo com suco de romã, para gozar, Gomes, da boa fortuna do fruto.

Era um fim de tarde. Deitado, Gomes acordou na manhã seguinte; com fome, muita fome e remorso no juízo. Queria se distrair. Deixou passar o fim de semana, foi trabalhar no altar-mor. Josias o acompanhou com as ferramentas, com alívio por ter outra vez os rogos atendidos.

Não menos feliz o padre o chamou para almoçar no convento, comer a galinha abatida naquele dia. Mostrou os afrescos do refeitório desbotando, soltando lascas. Gomes olhou para cima com dificuldade, distinguindo outros defeitos no painel. Começou a trabalhar à tarde. O padre maçara-o com perguntas sobre o quadro com Alzira. Josias, ouvindo tudo, mudo, olhando-os sem coragem. Gomes, inconfesso, deixara escapar:

– Alzira não está conosco para reclamar o quadro. Mas fará um bem a sua memória ter um quadro póstumo. Se está arrependida de ter tirado a vida, sua alma sentirá alívio ao se ver lembrada.

O padre tornou-se parelho no que Gomes julgava ser o tênue limite entre a pintura dadivosa e a espreita da defunta.

A sós com o criado, sentou-se numa das poucas cadeiras em frente ao altar. Ali, os beatos ouviam sem ruídos a voz do celebrante. Josias, cumprindo o ofício, removeu com uma espátula cascalhos de tinta soltos sobre o altar. Tão velho quanto ele, nutrindo-se na fé, com pouca força no corpo. Os palpites da voz carunchosa de Gomes, percutiam como uma prédica.

No fim da tarde, a luz escura da abóbada acentuou a penumbra do altar. Josias desceu da escada. Dia seguinte seria a lixação, depois a pintura; daí em diante, só ele com a habilidade de pintor recuperaria os querubins sumidos com a tinta seca.

Desceram para o salão. Do lado esquerdo, lembrou-se da imagem da Virgem olhando para o corredor do meio, o rosto recurvo. Parou, olhou para cima. Josias, com o instinto cúmplice, abriu a escada para um dos dois fazer uso. Gomes subiu, aproximou-se do rosto da imagem, tirou do bolso de trás uma lanterna. Com ajuda da luz, mirou cada pormenor do rosto. A paixão por rostos barrocos fundiu-se à difusa lembrança do rosto de Alzira. Dois minutos depois, convenceu-se de que fora o rosto da santa que vira no sonho.

Em casa, o criado cumpriu a ordem de acender uma vela sob a tela. Gomes deitou-se na otomana depois de enxugar o rosto com uma toalha, e tomar o caldo quente. Pediu para cobrir a tela, cuidando que Alzira, sob o recato, podia recurvar o rosto como o da santa. Sentiu prazer por ter cumprido um dever demente. Dormiu sem interrupção. Acordou sem remorso por não ter pensado em Alzira.

Cedo voltou à igreja. O padre, da sacada, convidou os dois para o desjejum no refeitório. Gomes acenou com a mão. O padre comeu com outros ajudantes. Não estranhou porque Gomes tinha o costume de se entreter em cada minúcia da decoração da igreja. Foi para o altar, não viu ninguém; adiantou-se para o salão e deparou com ele sobreposto na escada aberta em quatro pés. O rosto de Gomes, salpicado de tons róseos, amarelos, dava conta de um trabalho febril. Em sua frente, pendurada na saliência do pórtico de mármore em volta da imagem, pusera a tela onde insinuara o rosto de Alzira. Os traços do lápis tinham sumido, dando lugar à silhueta da santa. Josias ajoelhara-se no banco vizinho, rezando, segurando com irrefletido prumo cada conta do rosário.