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Neusa Jordem Possatti: A outra

Sentada diante do computador, com a sensibilidade à flor da pele, tento colocar em ordem minhas ideias. Há em mim uma sensação de vida mal vivida, ou parcialmente vivida, uma ansiedade de realizar coisas que se perderam, engolidas pela rotina doméstica, esperanças secretas de que algo aconteça e como clarão ilumine todo o resto.

Por Neusa Jordem Possatti*

Estou sendo vítima neste momento, às onze da noite, de um ataque de tristeza sem fim, de uma melancolia que machuca. Minha tristeza tem raízes na alma, uma doença que não pode ser auscultada, revelada em radiografia nem observada em exame de laboratório.

Nos maus momentos da minha vida, que parecem eternos, eu me fortaleço e me sinto um pouquinho mais madura. Sei que atravessarei outras fases que parecerão ainda mais sofridas e entendo que após cada uma delas estarei preparada para a dificuldade seguinte. Acho que o sofrimento não ensina muita coisa se não o encararmos de frente, ou seja, se no meio dele não o vasculharmos procurando ver por quê, como foi causado e de que maneira atua dentro da gente.

Quero mudar o jeito de olhar para mim mesma, de me ouvir, e refiro-me a um escutar mais completo, a um prestar atenção nessa coisa doce e dolorosa que vivo em mim: o amor pela outra mulher que estou construindo. Desejo que identifico nas mulheres da mesma espécie, uma espécie preterida, abafada, mas resistente, e que não aceita mais fazer de conta que está tudo bem. A nova mulher em mim é sonhadora e independente, sim. Sonha em ser amada, em ter uma vida mais palpitante. A independência me assusta antes de tê-la, talvez pela novidade. Por mais que tenha ouvido falar nela é um terreno desconhecido no qual temo me aventurar, acostumada à tutela, primeiro dos meus pais, depois do marido. Se a independência assusta pode também ser maravilhosa, porque haja o que houver, eu sei que haverá sempre alguém tomando conta de mim. Eu mesma.

A outra, a que estou construindo, seria então aquela que tinha preconceitos, restrições e não tem mais. Não se incomodará em ser, se isso lhe der prazer, livre para pôr fim aos complexos de culpa e apresentar-se aberta para o sexo e para o amor. Estou viva, e isso inclui o sexo também. A melhor estação pode ser aquela aonde ainda não chegamos. Mulher cinquentona, esbanjo sensualidade e ardor. Cuidadosamente vou empurrando a velhice com a bem malhada barriguinha. Estou ótima. No espelho vejo a outra, experimento um novo penteado, me acho bonita, abro um sorriso e vou em frente.

* Neusa Jordem Possatti é formada em Letras