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 Eliete Negreiros: O dizer da canção no samba de Paulinho da Viola

A cantora Eliete Negreiros lança livro com interpretação de diversas canções do compositor Paulinho da Viola, onde, na parte “outros escritos”, discute poesia e canção versando sobre poetas e estudiosos do assunto.

Por Marcos Aurélio Ruy

No livro Ensaiando a Canção: Paulinho da Viola e Outros Escritos (Ateliê Editorial, 2011, 216 páginas), Eliete Negreiros faz uma análise de algumas canções de um dos grandes compositores da música popular brasileira e ainda discute questões importantes da relação da poesia com a música e da arte com a vida.

Interessou para ela as canções meditativas. “Algumas canções criam uma temporalidade e uma atmosfera propícia à reflexão; são as canções meditativas, que nos induzem a refletir durante e após a sua execução”, afirma Eliete.

Para ela Paulinho da Viola produziu canções de “modo decidido e delicado com que trata e sempre tratou nossos assuntos humanos, demasiado humanos, numa época em que a vaidade e a competição tomam conta da alma, onde o mundo parece um supermercado de produtos descartáveis, tendo em suas prateleiras valores e sonhos humanos em liquidação.”

A primeira canção analisada do compositor carioca é Para Ver as Meninas, no qual, segundo Eliete, Paulinho da Viola não quis usar os elementos do samba comum: “a dor de amor e suas inúmeras, dolorosas e previsíveis variantes.” Faz um samba paradoxal que pede “silêncio, por favor”, mas segue cantando, quebrando o silêncio e desejoso de fazer “um samba sobre o infinito”. Dialético também quando confessa o seu desencanto com o mundo, mas professa a transformação em um novo mundo.

Modernidade de Paulinho da Viola

Temática pertinaz da época analisada pela autora, começo dos anos 1970. Muito do que era dito ou escrito precisava enganar a famigerada censura, portanto, escrito ou dito com figuras de linguagem. Mas, segundo Eliete, “É na contemplação que a imagem ganha força e a palavra se transforma em obstáculo. É através do olhar que ele tenta a transcendência.”

Estes são os traços, para ela, da “modernidade nas canções de Paulinho.” Para ela “a música”, de Paulinho da Viola “constrói-se pela dialética entre estes pares de opostos, tensão e relaxamento.” Provavelmente a tensão ditatorial da censura e do esmagamento social e cultural promovido pela ditadura capitalista do prazer a qualquer custo, do trabalho como deplorável e da ida como fugaz. E o relaxamento de saber que um dia vem após o outro. Já na canção Pressentimento, Paulinho conclui: “Ai! meu sofrimento, ver meu sonho se acabar.”

Em Samba Curto, o compositor expõe uma “idéia de proteção contra algo que se teme” e essa defesa ao temido se “expressa na imagem do escudo.” A letra diz “meu samba andou parado até você aparecer mudando tudo, lançando por terra o escudo do meu coração.” O autor chega à conclusão de que: “quem quiser que pense um pouco, eu não posso explicar meus encontros, ninguém pode explicar a vida, num samba curto.” Por isso, Eliete acentua que “na poética de Paulinho da Viola vejo a possibilidade de se pensar a canção como um lugar de reflexão sobre o mundo.”

Cotidiano do brasileiro

Uma canção emblemática de Paulinho da Viola é Coisas do Mundo Minha Nêga, onde narra o “retrato cotidiano” e enfrenta o dilema de aprender com as mulheres as coisas do mundo. É uma espécie de denúncia do cotidiano massacrante do trabalhador brasileiro, que vive indo e vindo de casa para o trabalho e depara com cenas da decadência das grandes cidades. O que fica ainda mais claro no samba Comprimido, no qual o trabalhador comete suicídio após bater na mulher em briga do casal.

Os dois acabam numa delegacia onde o delegado afirma ser incapaz de julgar coisas do amor. Uma forte denúncia da opressão vivida pelas mulheres e da negligência policial para tratar das questões femininas. Nem a justiça se metia na briga entre marido e mulher, mesmo que ela apanhasse.

No final da música Paulinho cita Cotidiano de Chico Buarque, para realçar sua mensagem. “Um dos traços”, de Paulinho da Viola, diz Eliete “é a simplicidade, seu jeito de dizer as coisas de um modo natural”. Na canção Roendo as Unhas, Paulinho “alia os instrumentos acústicos tradicionais, ao piano elétrico, ao baixo elétrico e à bateria, sinalizando uma modernização do samba”, analisa Eliete.

Eliete Negreiros faz um breve histórico do samba carioca e avança na definição de Manuel Bandeira do que seja um poeta. Para Bandeira o poeta é “um sujeito que sabe desentranhar a poesia que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gestos, nos sonhos.”

Apresenta também uma discussão sobre poesia e canção contrariando os setores elitistas que procuram tirar do campo da literatura as letras de músicas, entendendo-as como algo diferente da poesia e mostra teorias a respeito da ligação entre música e poesia. Eliete pergunta: “sem entrega não é possível ouvir o que uma canção está querendo nos contar. Não seria este conhecimento prazeroso uma possibilidade de diálogo entre a razão e a emoção?"

Veja abaixo algumas músicas de Paulinho da Viola:

Coisas do Mundo Minha Nêga (1968)

Hoje eu vim, minha nêga,
Como venho quando posso
Na boca as mesmas palavras
No peito o mesmo remorso
Nas mãos a mesma viola
Onde gravei o teu nome
Nas mãos a mesma viola
Onde gravei o teu nome

Venho do samba há tempo, nêga,
Vim parando por aí
Primeiro achei Zé Fuleiro
Que me falou de doença
Que a sorte nunca lhe chega
Está sem amor e sem dinheiro
Perguntou se eu não dispunha
De algum que pudesse dar
Puxei então da viola
Cantei um samba pra ele
Foi um samba sincopado
Que zombou do seu azar

Hoje eu vim, minha nêga,
Andar contigo no espaço
Tentar fazer em teus braços
Um samba puro de amor
Sem melodia ou palavra
Pra não perder o valor
Sem melodia ou palavra
Pra não perder o valor

Depois encontrei Seu Bento, nêga,
Que bebeu a noite inteira
Estirou-se na calçada
Sem ter vontade qualquer
Esqueceu do compromisso
Que assumiu com a mulher
Não chegar de madrugada
E não beber mais cachaça
Ela fez até promessa
Pagou e se arrependeu
Cantei um samba pra ele
Que sorriu e adormeceu

Hoje eu vim, minha nêga,
Querendo aquele sorriso
Que tu entregas pro céu
Quando eu te aperto em meus braços
Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço
Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço

Por fim eu achei um corpo, nêga,
Iluminado ao redor
Disseram que foi bobagem
Um queria ser melhor
Não foi amor nem dinheiro
A causa da discussão
Foi apenas um pandeiro que depois ficou no chão
Não tirei minha viola
Parei, olhei, vim m’embora
Ninguém compreenderia
Um samba naquela hora

Hoje eu vim, minha nêga,
Sem saber nada da vida
Querendo aprender contigo
A forma de se viver
As coisas estão no mundo
Só que eu preciso aprender
As coisas estão no mundo
Só que eu preciso aprender

Roendo as Unhas (1973)

Meu samba não se importa que eu esteja numa
De andar roendo as unhas pela madrugada
De sentar no meio fio não querendo nada
De cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma

Meu samba não se importa se eu não faço rima
Se pego na viola e ela desafina
Meu samba não se importa se eu não tenho amor
Se dou meu coração assim sem disciplina

Meu samba não se importa se desapareço
Se digo uma mentira sem me arrepender
Quando entro numa boa ele vem comigo
E fica desse jeito se eu entristecer