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Marcelo Carneiro da Cunha: Emília e o racismo em Lobato

Caríssimos e estimadíssimos leitores, pois uns dias atrás fiz a viagem de volta de Parati e Flip ao lado de uma especialista em Monteiro Lobato.

Por Marcelo Carneiro da Cunha, no Terra Magazine

Entre uma curva fechadíssima e outra, da estrada em formato de saca-rolhas que nos leva do litoral até Taubaté, conversamos de coisas de zeppelin, e, inevitável, de Lobato e das renovadas acusações de que ele cultivava um racismo duro e seco, de se colocar ao lado do Ku Klux Klan nesse mundo de doidos em que vivemos, em parte.

Já nessa semana, em um evento de literatura em Campinas, falamos de Tom Sawyer e Huck Finn, clássicos nos quais os negros são chamados de “niggers”, e levados a passear por boa parte dos estereótipos associados ao pensamento racista do século 19 americano. O que fazer?

É complicado, muito complicado, lermos os textos e as ideias do passado, escritas em um momento em que eles não eram passado, mas sim presentíssimo. Lemos hoje o que escreveram antes de nós, e o que havia antes de nós, era muito diferente do que o hoje se tornou. Trememos lendo coisas que seguramente não faziam erguer uma só sobrancelha de nossos avós e bisavós.

Olhando para o maravilhoso The Apartment, do genial Billy Wilder, você vê, em plenos anos 60 e em NY, homens dando tapinhas na bunda das ascensoristas dos elevadores da empresa onde todos trabalhavam, algo que hoje seguramente faria algum juiz mandar o sujeito passar um tempo em reeducação no Iraque.

Em seus livros, Reinações de Narizinho como exemplo, Monteiro Lobato dá à Tia Nastácia o tratamento que era dado aos negros nos anos 30, em um Brasil que ainda hoje faz suas babás vestirem branco nas praças de São Paulo. Nos melhores casos, eles eram negros de alma branca, como a ingênua e sábia Tia Nastácia. Na época em que o Sítio foi publicado, estimados leitores, mal havia negros nos times de futebol no Brasil; nas universidades, deviam ser mais raros do que a chuva no inverno paulistano.

E, no entanto, sendo um clássico da literatura brasileira, se espera que os meninos e meninas sejam apresentados ao Sítio, que talvez ainda consigam sentir a mágica das aventuras de Pedrinho, Narizinho, Emília, do Visconde, no Reino das Águas Claras, com Tia Nastácia cuidando para que ninguém fique faminto. Mas também se espera que eles não embarquem na visão de mundo que o livro também apresenta, e que é racista. Como fazer?

Caros leitores, as coisas importantes raramente são simples. Preservar a nossa herança cultural, apresentando-a para as novas gerações é, sim, a missão da geração que está hoje ocupando o mundo na condição de gerente. Respeitar o passado é, sim, missão do presente. Ler criticamente é o que faz um bom leitor, e é misturando respeito com crítica que precisamos ler o nosso passado e seus livros. Mas precisamos ler esses livros, no original, intocado.

Uma coisa é Mein Kampf, a maldade elevada a um novo patamar de estupidez. Outra coisa são livros escritos em suas épocas e que retratem a realidade e as limitações dessas épocas. O racismo era normal, assim como acreditar na inferioridade feminina era normal, tanto que as mulheres só foram votar com Getúlio Vargas, nos anos 30. Hoje querem censurar Lobato.

Daqui a cem anos, quando todo mundo for vegetariano e comer carne for comparado ao canibalismo, os livros deverão ter as suas cenas explícitas de consumo de bife censuradas?

Tom Sawyer e o Sítio do Picapau Amarelo são grandes livros. Huck Finn é um enorme livro. The Apartment é um grande filme. Ninguém, nem mesmo a minha avó Jovita, foi levado a um comportamento racista ou sexista por ler ou assistir a uma dessas obras. Ninguém saiu matando o pai, casando com a mãe ou furando os próprios olhos por ter lido Édipo Rei, que se saiba.

Elas são obras que celebram o humano, mas que sofrem com as limitações de serem humanas, e não mensagens para a melhoria do código de comportamento do seu tempo. Eles são simplesmente obras de arte, e não experimentos pedagógicos. Eles carregam, obrigatoriamente, a nossa beleza e a nossa feiúra. Não seriam grandes se não o fizessem.

Caros e estimados leitores, o patrulhamento do que é entendido como politicamente incorreto causa estragos e tem cheiro de carolice. Eu sinto sim desconforto por ter que lidar com as idiossincrasias do passado.

Mas prefiro isso, sempre, sempre, sempre, ao conforto de colocar sobre ele uma cobertura de correção atual, como padres incomodados com nus renascentistas cobrindo com cimento o que ficaria tão melhor mostrado na sua intenção original, com a generosidade da compreensão do que éramos e do que nos tornamos, nesse processo torto, complexo e enorme que também chamamos de evolução.

Sobre tudo isso, penso no que diria Emília, a necessária e incorreta invenção de Lobato para dar conta do mundo desordenado lá fora do Sítio. Quando alguém pergunta a ela o que ela afinal é, não sendo boneca nem gente, ela responde, absoluta: "Eu sou a independência ou morte". O que me parece mais do que bem dito, e, portanto, dito.

* Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista