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Ditadura: a tortura no banco dos réus

Nesta quarta (27), no Fórum da Praça João Mendes, em São Paulo, a juíza Claudia de Lima Menge ouviu testemunhas de acusação arroladas pelos advogados da família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e morto em 1971, aos 23 anos. Os parentes do jornalista acusam o coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra como autor da morte de Merlino. Ustra não compareceu à audiência.

Por Christiane Marcondes

Foram ouvidas seis testemunhas de acusação: Otacílio Cecchini, Eleonora Menicucci de Oliveira e Leane de Almeida, ex-militantes do Partido Operário Comunista (POC) e da ALN (Ação Libertadora Nacional), além do ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vannuchi, o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos e Laurindo Junqueira Filho.

Entre as testemunhas de defesa arroladas por Ustra estavam o atual presidente do Senado, José Sarney, o ex-ministro Jarbas Passarinho, um coronel e três generais da reserva do Exército brasileiro. O senador José Sarney anunciou através de sua assessoria que não comparecerá, considerando o pedido de que ele deponha uma "farsa" da defesa para atrasar o processo.

Ustra foi comandante do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operação de Defesa Interna (DOI-Codi) do 2º Exército, em São Paulo. Ele já foi condenado em primeira instância e declarado torturador em uma ação movida pela família do jornalista em 2007. No ano seguinte, por 2 votos a 1, os desembargadores acataram o recurso dos advogados de Ustra e extinguiram o processo.

Essa segunda ação se refere a danos morais e foi movida pela irmã de Merlino, Regina Merlino Dias de Almeida, e pela ex-companheira do jornalista, Angela Mendes de Almeida. “É uma luta que estamos travando há muito tempo. Chegar até aqui é uma vitória”, disse Angela.

Indignação não prescreve

A imprensa não cobriu a sessão, ninguém, além de advogados e depoentes, foi autorizado a ouvir as declarações, nem a família Merlino, apesar de ser uma audiência aberta ao público. A pequena sala onde testemunhas foram ouvidas, declarou-me depois uma fonte, mal comportava quatro pessoas.

Teresa Garbayo dos Santos, esposa de uma das testemunhas, o escritor Joel Rufino dos Santos, estava em pé, em frente ao corredor interditado, tomando conta das suas malas, já que o casal havia seguido direto do aeroporto, vindo do Rio, para o Fórum. Teresa, que já esperou o marido tanto tempo durante a prisão e exílio, estava de bom humor, conformada com o que já conhece, os entraves da lei a favor dos poderosos.

Ao lado de Teresa, próximos à sala da audiência, velhos conhecidos se reencontravam e brincavam com o disparate de ninguém poder presenciar aquele momento histórico. Uma senhora alegou, brincando, que tinha 90 anos e precisa sentar-se, o policial que guardava o corredor avisou que havia cadeiras em outro saguão. Ninguém aceitou a oferta e ninguém se afastou da passagem por onde sairiam advogados e testemunhas. Todos já demonstraram, com suas histórias, que na vida é preciso paciência.

O povo na praça

Longe da sala de audiência, uma multidão tomou a praça e fez um ato contra a ditadura e suas mortes. Maria Amélia de Almeida Teles, uma militante que participou da guerrilha do Araguaia, durante o período da ditadura militar, estava ao lado dos manifestantes e do marido, César, com o filho, Edson. Ela também foi vítima de Ustra, contra quem moveu ação e ganhou: “Se nós conseguimos provar que ele era assassino, neste mesmo Fórum, a família Merlino também vai conseguir”, garantiu.

Disse que considerava aquela manifestação um avanço: “Com ela, a gente dá mais um passo à frente. Buscar a justiça é um direito de todos os povos, estamos muito atrasados nesse caminho. O processo contra o Ustra, que nós movemos, exigia que o Estado reconhecesse que ele é um assassino e torturador, os Merlino estão pedindo reparação dos danos morais. Não tem preço, mas a condenação representará uma grande conquista, a punição virá", afirmou.
 
As famílias do Araguaia lutam desde 1980: a primeira ação na Justiça ocorreu em 1982, pedia que os desaparecimentos fossem esclarecidos. Antes de chegarem ao tribunal, esses familiares articularam parcerias, foram recebidos por Dom Paulo Evaristo Arns, pelo Julio Mesquita, do jornal O Estado de S. Paulo, pela ABI – Associação Brasileira de Imprensa, entre outras pessoas e entidades.

Com a Lei de Anistia, de 1979, Amelinha, como é mais conhecida, conta que a pergunta de todos os que perderam parentes com a repressão ficou no ar: “Onde estão nossos desaparecidos?”

Agora a continuidade da luta depende do governo assumir o fim da impunidade, defende a eterna militante: “Não é justo que só as famílias encabecem essas lutas, porque os benefícios alcançados são da sociedade, nós, que vivemos a ditadura, já perdemos várias vezes essa guerra”

Corpos desaparecidos prolongam impunidade

Ari Normanha, militante da esquerda, estava também no ato, junto com representantes da Associação Cultural Nelson Werneck Sodré. Militava na ALN nos anos 1970. E briga pelos direitos humanos até hoje: “A nossa luta é contra o fascismo, as manifestações na Europa, muito claras, mostram claramente que a intolerância e o racismo continuam fazendo vítimas e, no Brasil, continua a impunidade. Torturadores ainda estão em aparelhos do governo, são os mesmos que deram o golpe em um governo institucional , o do Jango Goulart, é o caso do Sarney, ele vai encerrar a carreira sem qualquer julgamento, sem qualquer intimação e tem ainda Paulo Maluf, Romeu Tuma, Miguel Colassuono, a turma que montou o esquema para fazer os corpos desaparecerem”.

A missão foi cumprida: “Nos cemitérios, como o da Vila Formosa, as covas foram mexidas, os rastros apagados”, lamenta. De fato, sem corpo não há crime e há a impunidade.

Ari disse que a semente mais daninha da ditadura é a educação: “Hoje o ensino público é um lixo, depósito de traficantes de entorpecentes, o nível de escolaridade é precário. Você percebe que, com esse tipo de formação, o exercício da cidadania está muito longe dos jovens.”

Ao fundo, escuto um integrante da ANAP (Associação dos Anistiados Políticos, Aposentados e Pensionistas do Estado de São Paulo), cercado de câmeras e microfones, pedir “punição exemplar” para o ausente torturador, ainda em julgamento no prédio.

Deixei a praça e volto ao prédio  e ao corredor da espera no nono andar. Leane Almeida, testemunha, estava saindo. Calculei rapidamente a idade, 40 anos depois da prisão, aos 21, ela está com 61 anos. Não aparenta: “Eu fui presa no mesmo dia em que o Merlino, o major comandou pessoalmente as torturas que eu sofri, ele dava ordens aos gritos, todo mundo escutava as sessões de tortura. Ele esteve presente em toda a Operação Bandeirantes, coordenando equipes e acompanhando interrogatórios”.

Pergunto sobre as torturas, ela conta que foi a primeira militante da ALN a ser presa e torturada. O coronel queria os nomes dos membros de seu grupo. Quando o Merlino chegou, Liane foi liberada da tortura e encaminhada para uma cela, onde ficou presa um ano e meio.
Ela diz que Merlino morreu porque não resistiu aos quatro dias de tortura ininterrupta. Viu, do primeiro andar onde estava presa, a retirada de Merlino do DOI-Codi: “O corpo dele estava inerte, acho que ainda não tinha morrido. O Ustra dava as ordens e a sua equipe jogou o corpo no porta-malas de um carro, que partiu”.

Liane para e se emociona, explica: “A memória é do corpo, não passa”.

Continuou: “Uma certeza tenho, no estado em que Merlino saiu da prisão ele não teria condições de correr para nenhum lugar, só para o paraíso”. Exalta-se quando recorda os termos da defesa de Ustra: “Ele é capaz de dizer que o Merlino foi ao DOI-Codi delatar companheiros e depois se suicidou porque se sentiu culpado…isto é um absurdo! Ele continua reafirmando essa inverdade, está no blog que ele colocou no ar há umas semanas”.

Militantes escrevem a história, governantes têm que fazer a justiça!

Liane se prepara para ir embora, finaliza: “Agora dependemos da Comissão Verdade e Justiça, como na Argentina e em outros países, ela tem mesmo que pactuar com a verdade e fazer justiça. Estamos escrevendo aqui, hoje, a história do Brasil, se haverá justiça ou não, dependerá de outros”.

Depois de Liane sai um grupo, à frente está o advogado Lúcio França, observador do Tortura Nunca Mais, ele acompanhou os depoimentos. Explica que foram ouvidas as seis testemunhas de Merlino e que foram expedidas precatórias para as cidades de Pipas (RS), Brasília, provavelmente para o ex-presidente José Sarney, que já deu a entender, via advogados, que não comparecerá para depor, a Curitiba, Águas Claras e Boa Vista. Diz que não chegou resposta de praticamente ninguém, só um dos citados deu retorno, ele acredita que tenha sido o de Curitiba.

Do que ouviu, destaca o depoimento de Paulo Vannuchi: “Ele confirmou o codinome Jorge Tibiriçá, disse que foi preso duas vezes. Da primeira prisão, Ustra não participou, já na segunda, quando Vannuchi iniciou greve de fome ao lado do seu companheiro de cela, Paulo de Tarso Venceslau, em junho de 1972, os dois foram torturados por Ustra, para que comessem. Vannuchi contou que foi massageado após a tortura. Joel Rufino detalhou que a massagem tinha o objetivo de fazer o torturado voltar a andar, mas Vannuchi não conseguiu se apoiar sobre os pés, teve que ser carregado”, conta França.

A partir daqui, um funcionário do Fórum e um policial nos expulsam do andar, pedem que o grupo siga para o elevador. Daí um jovem que se declara "estudante" faz perguntas provocativas para um dos depoentes, o homem, já idoso e claramente sofrido, responde em voz grossa, alta, diz que a ditadura acabou e que não aceitará provocações.

Todos, no elevador, após a porta fechar e o silêncio voltar, afirmam que esses que se dizem "estudantes" são policiais disfarçados, querendo causar tumulto. Torço para que eles só tumultuem em público e não interfiram nos bastidores da briga pela punição dos torturadores, luta antiga e de todos, mas principalmente dos  herdeiros da ditadura, líderes na missão de passar a história a limpo.