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Meia-Noite em Paris: outros tempos

Woody Allen evoca época em que Paris era o centro cultural do planeta e os Estados Unidos ainda não tinham entrado em sua curva de decadência. Os filmes-referências de Wood Allen, iniciados com “Match Point”, na Inglaterra, passando por “Vick Cristina” Barcelona, na Espanha, chega à França com “Meia-noite em Paris”, mesclando comédia, crítica ao conservadorismo estadunidense e mergulho no legado cultural francês.

Por Cloves Geraldo *

meia noite em paris

Seu alter-ego desta vez é o roteirista e romancista iniciante Gil Pender (Owen Wilson), em visita à cidade com a noiva Inez (Raquel McAdams) e os pais dela, John (Kurt Foller) e Helen (Mirian Kennedy). E vê a chance de reviver os anos de ouro da “Geração Perdida”, quando os jovens dos EUA esbanjavam dólares na metrópole francesa.

Mas a Paris que ele encontra perdeu há muito o clima daquela época. Está transfigurada. Ainda que a câmera de Allen percorra ruas e recantos que lembram um pouco dela. Se ela mudou, a situação dos estadunidenses, como hegemônicos, nem de longe respira aquele clima.

John, empresário, seguidor do Tea Party (Partido do Chá), facção raivosa do Partido Republicano, pragueja contra a cidade e seus sócios franceses. E não aceita as tendências progressistas do futuro genro. Os dois, nas palavras de Gil, convivem democraticamente. É a porção decadente dos EUA se manifestando numa cidade distante do que foi um dia.

Na década que Gil preferia viver, ela era a capital cultural do planeta, cheia de figuras proeminentes que circulavam por seus bares, cafés, clubes, como se fosse a Nova York de hoje. Ernest Hemingway a reviveu em seu livro “Paris É Uma Festa”. Embora a França já tivesse perdido espaço para a Inglaterra, como potência colonial, ela ainda vivia este clima nos anos 20.

Gil, embora viva em Los Angeles, faz o link entre as duas cidades, perambulando pelas ruas que preservam o encanto de uma época que ele tenta recuperar. E Allen retira delas qualquer vestígio da atualidade, principalmente de imigrantes varridos pela direita francesa para a periferia, para mantê-la no clima.

O subtexto desta leitura é a hesitação de Gil, frustrado com sua vida de roteirista em Hollywood. Embora tenha sucesso, ele não encontra satisfação no que faz. Acha que a literatura lhe dará a gratificação almejada. Sua frustração reflete a mágoa de Allen, obrigado a percorrer a Europa em busca de financiamento para seus filmes, pois não o consegue mais nos EUA. Na abertura de seu filme anterior, “Tudo Pode Dar Certo”, ele já desancava as produções hollywoodianas e os espectadores que as sustentam – agora o repete através de Gil, mostrando o quanto o sistema desgasta.

Allen faz piada com Buñuel

As perambulações de Gil por uma Paris, que transita entre a Geração Perdida (anos 20), Surrealismo (anos 20/30) e Bélle Epóque (início do século XX), configuram a época que os estadunidenses podiam dar-se ao luxo de viver na capital francesa, como senhores do capital. A farra, no entanto, desaguou no Crash da Bolsa de Nova York, trazendo a Grande Depressão. Não é à toa que “Meia-noite em Paris” é sucesso nos EUA. Evoca um tempo em que a classe média estadunidense podia gastar. A Queda de Wall Street, em 2008, deixou-lhe apenas a nostalgia. Allen capta este momento numa comédia aparentemente descompromissada.

Sua homenagem a Paris não é um passeio turístico. Interessa-lhe mais as figuras emblemáticas da época. Os encontros de Gil com elas sempre rendem boas risadas. Principalmente o trio surrealista Dalí, Buñuel e Man Ray, com suas excentricidades. Eles transfiguram o real em sonho, em crítica à moral burguesa.

O próprio elefante de Dalí (Adrien Brody) é a presença incômoda de Gil entre eles. Numa brilhante sequência, Gil põe Buñuel (Adrien de Van) em polvorosa ao comentar com ele o jantar burguês que jamais termina. Buñuel tenta decifrar o enigma que nem em seu filme “O Discreto Charme da Burguesia” (1972),dirigido por ele cinquenta anos depois, o faria.

Aliás, Allen brinca com transições, sem usar o antes e o depois, para mudar de época, recurso comum no cinema mudo e em séries de TV atuais. Numa delas, Gil encontra a evasiva Adriana (Marion Cotillard), e passam a transitar por outras épocas, em meio à ebulição criativa francesa, que às vezes seduz a ambos, noutras só a um deles. Até ele voltar ao espaço real, à noiva Inez, e fazer sua própria escolha, bem ao estilo de quem se prende não ao real, mas à fantasia. E o espectador terá a sensação de ter vivido com ele a experiência de desvendar o universo cultural cuja influência permanece.

Assim, Allen o terá levado ao mundo de sonhos, como era próprio das sofisticadas comédias hollywwodianas. Poderia estar revendo o escritor Richard Benson (Willian Holden), se esmerando para escrever um romance num quarto de hotel parisiense, enquanto se apaixona por Gabrielle Simpson (Audrey Hepburn). Richard Quine falava de amor em “Quando Paris Alucina”, no clima da Guerra Fria. Allen, cinquenta anos depois, trata de escolhas, onde o amor prevalece, mas a cidade que antes encantava, é apenas uma lembrança. Só humor dribla a corrosão da realidade imposta por dois países que transformam o sonho em pesadelos.

“Meia-noite em Paris” (MIdnight in Paris). Comédia. 2011. EUA, Espanha. 100 minutos. Roteiro/Direção: Woody Allen. Fotografia: Darius Khondji. Elenco: Owen Wilson, Raquel McAdms, Kathy Bates, Adrien Brody, Marion Cotillard

* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "TerraMãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis, "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".