Sem categoria

Sérgio Rizzo: no tempo em que filmes de Hollywood quebravam tabus

Lá se vão quase 40 anos desde que Alex (Malcolm McDowell) e seus "drugues" encararam pela primeira vez uma plateia, na pré-estreia americana de 19 de dezembro de 1971.

Por Sérgio Rizzo, no Valor Econômico

Prostrados na Leiteria Korova, tomavam algo que os deixasse prontos "para um pouco de ultraviolência". "Laranja Mecânica" (1971) ostenta ainda hoje, com seus primeiros 15 minutos, uma condição que dificilmente será igualada: a de longa-metragem industrial com a abertura mais desagradável e incômoda da história. O pacote inicial compreende espancamentos, acidentes de trânsito, enfrentamento de gangues, invasão de domicílio e duas mulheres violentadas, ao som de música clássica e de "Singin' in the Rain". E não acaba por aí.

"Videie bem", o conselho dado pela gangue de Alex ao personagem que seria forçado a testemunhar o estupro da mulher, continua a soar como provocação endereçada ao espectador. A frase é dita para a câmera, em claro recado: agora que entramos na sala, não vale desviar o olhar; o que veremos também diz respeito a todos nós, compelidos a contemplar atos de violência — "em forma bem horrorshow", segundo Alex. Não é o tipo de experiência que se espera de um filme chancelado pela indústria cinematográfica (aqui, por meio da gigante Warner Bros.) e, portanto, voltado para o grande público.

Afinal, para ousadias viscerais, existe o cinema comprometido com a vanguarda e a expressão autoral. Basta lembrar, a respeito de imagens da violência, o que fizeram no domínio independente o austríaco Michael Haneke, em "Benny's Video" (1992) e nas duas versões de "Violência Gratuita" (1997 e 2007), e o argentino Gaspar Noé, em "Irreversível" (2002). Restritos a um pequeno circuito exibidor, esses filmes enfrentaram plateias que, em tese, estavam preparadas para o embate. Mesmo assim, geraram um grau elevado de rejeição.

Como explicar que alguém tenha realizado "Laranja Mecânica" com dinheiro da indústria? A resposta tem a ver com um período estimulante em que a infraestrutura e o know-how do cinema americano eram usados para quebrar tabus, em filmes como "Perdidos na Noite" (1969), "O Poderoso Chefão" (1972) e "Taxi Driver" (1976), mas passa obrigatoriamente pela lembrança de que o alguém em questão era Stanley Kubrick (1928-1999).

Habituado desde o antibelicista "Glória Feita de Sangue" (1957) a caminhar na contracorrente, ele vinha de uma chanchada de guerra que brincava com a possibilidade de hecatombe nuclear para ironizar o poderio militar ("Doutor Fantástico", 1964) e de uma ficção científica que reformatava o gênero a partir de uma inusitada aproximação entre ciência, filosofia e misticismo ("2001, uma Odisseia no Espaço", 1968).

Publicado em 1962, o romance do inglês Anthony Burgess (1917-1993) pareceu a Kubrick um desafio à altura do espaço privilegiado que já ocupava. De um lado, o livro fornecia elementos recorrentes na obra do cineasta, como o instinto de violência associado à natureza humana, a apologia do livre-arbítrio e a presença da tecnologia no processo civilizatório. De outro, possibilitava experiências nos campos temático e formal, com o "Tratamento Ludovico" (a tentativa de condicionamento a que o Estado submete Alex) representando a confluência entre um e outro.

A ambição e o destemor de Kubrick fizeram de "Laranja Mecânica" o mais arriscado de seus filmes, com um universo de pesadelo embalado em humor negro. Diversos elementos — cenografia, figurinos, câmera, montagem, música e o dialeto de rua criado por Burgess (o "nadsat", baseado em palavras russas) — contribuem para esse aspecto peculiar.

Talvez seja também o que melhor resistiu à passagem do tempo, com sua irônica narração autorreflexiva, formato episódico e um anti-herói singular a serviço da "questão moral" que Kubrick condensou da seguinte forma: um homem pode ser bom sem ter a opção de ser mau?