O grande e contraditório Álvares de Azevedo
O poeta viveu apenas vinte anos, mas deixou uma marca forte no romantismo, não ficou alheio à inquietação nacional e foi o clássico de sua geração.
Por José Carlos Ruy
Publicado 01/09/2011 11:54
Tivesse vivido nas décadas finais do século 20, o poeta Manuel Antônio Álvares de Azevedo faria parte, com certeza, de alguma “tribo” adolescente “dark” ou “gótica”, dadas à melancolia e ao culto de um certo “lado escuro” da vida.
Mas ele viveu um século e meio antes. Estudante da Faculdade de Direito de São Paulo, mal ultrapassou a adolescência: nasceu em 12 de setembro de 1831 e viveu até 25 de abril de 1852. Uma existência de apenas 20 anos que deixou um legado poético que faz parte dos clássicos do romantismo brasileiro.
Muitos jovens de sua época, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, demonstravam um “culto mórbido da morte”, diz o historiador Richard Morse, autor do clássico “Formação Histórica de São Paulo” (1954). Eram dados a excessos na bebida, no tabaco (alguns, há registros, no ópio) e ao desregramento sexual, marcados algumas vezes por “cerimônias” juvenis nos cemitérios da cidade.
Havia um forte niilismo em muitos deles e o ultrarromantismo de Álvares de Azevedo talvez seja a marca mais forte daquela geração, destoando dos que vieram antes, como Gonçalves de Magalhães, e de seus sucessores, como Castro Alves. O crítico Otto Maria Carpeaux identifica (em sua “História da Literatura Ocidental”) em Álvares Azevedo, um raro representante do satanismo de Byron deste lado do Atlântico (o outro teria sido o poeta mexicano Manuel Acuña, da geração seguinte).
O certo é que, numa vida tão curta, Azevedo produziu uma obra ainda tida como controversa. A “ele só nos é dado amar ou repelir”, diz Antônio Candido (“Formação da Literatura Brasileira”, de 1959). Umas das razões é a qualidade variável dos poemas, como o crítico registrou: ele deixou maus e bons versos, mas estes bastam “para lhe dar categoria mas, ainda, revelar a personalidade literária mais rica da geração”.
As influências estrangeiras são reconhecidas. Lá estão Lord Byron e Musset, mas também Shakespeare e Goethe. Influências que se traduzem numa obra aparentemente à margem das preocupações nacionalistas dos escritores de então, e voltada para o indivíduo e suas vicissitudes, para o subjetivismo, e o amor que oscila entre a devassidão e uma idealização platônica.
Mas mesmo aqui comparece a controvérsia que é a marca do autor da “Lira dos Vinte Anos”. Por um lado há a apropriação literária da linguagem comum das pessoas, uma liberdade que antecipa o espírito do Modernismo que só viria setenta anos depois de sua morte. ”Foi o primeiro, quase o único antes do Modernismo, a dar categoria poética ao prosaísmo cotidiano”, diz Antônio Candido.
Mas há também a contradição entre uma ênfase niilista que não o afastou da preocupação com a nacionalidade que se forjava, típica do romantismo. E que está registrada por exemplo no discurso de inauguração do Ensaio Filosófico, em 9 de maio de 1850: “sem uma filosofia, sem uma poesia nacional, como quereis uma nação?”, perguntou o poeta. “A cópia lívida do que vai pelo mar além poderá ser o sangue de uma nação? O parasitismo científico poderá ser condição de vida para a inteligência de um povo?” (citado por Richard Morse).
Contradições de jovem de uma vida tão produtiva e curta. Contradição que se revela, vívida, na última frase que pronunciou: "Que tragédia, meu pai!", disse nos braços do pai naquela tarde de 25 abril de 1852 e que contrasta com o culto da morte encenado durante a vida.
Obras
1853 –"Lira dos Vinte Anos" (Poesias – foi o único volume de suas obras que organizou para publicação).
1855 – "Noite na Taverna" (contos)
1855 – "Macário" (a peça de teatro)
1855 – "Pedro Ivo" (poema)
1886 – “O Conde Lopo” (1poema épico do qual restam apenas fragmentos)
Álvares de Azevedo também escreveu muitas cartas e ensaios e traduziu para o português o poema “Parisina”, de Lorde Byron, e o 5º ato de “Otelo”, de William Shakespeare.
Poemas
Se eu morresse amanhã
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã…
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
(Escrito no mês anterior à sua morte, é seu último poema, tendo sido lido na beira de seu túmulo por Joaquim Manuel de Macedo)
Pedro Ivo
Tristes coroas, sob as quais ás vezes
Está gravada uma inscrição d'infâmia !
Alexandre Herculano
Perdoai-lhe, Senhor! ele era um bravo !
Fazia as faces descorar do escravo
Quando ao sol da batalha a fronte erguia,
E o corcel gotejante de suor
Entre sangue e cadáveres corria !
O gênio das pelejas parecia….
Perdoai-lhe, Senhor!
Onde mais vivo em peito mais valente
N'um coração mais livre o sangue ardente
Ao fervor desta América bulhava?
Era um leão sangrento que rugia:
Da guerra nos clarins se embriagava.
E vossa gente — pálida recuava
Quando ele aparecia!
Era filho do povo — o sangue ardente
Ás faces lhe assomava incandescente
Quando cismava do Brasil na sina….
Ontem — era o estrangeiro que zombava ,.
Amanhã — era a lamina assassina,
No cadafalso a vil carnificina
Que em sangue jubilava!
Era medonho o rubro pesadelo
Mas nas frontes venais do gênio o selo.
Gravaria o anátema da história!
Dos filhos da nação a rubra espada
No sangue impuro da facção inglória
Lavaria dos livres na vitória
A mancha profanada!
A fronte envolta em folhas de loureiro
Não a escondemos, não!… Era um guerreiro!
Despiu por uma ideia sua espada!
Alma cheia de fogo e mocidade,
Que ante a fúria dos reis não se acobarda
Sonhava nesta geração bastarda
Glorias…. e liberdade!
Tinha sede de vida e de futuro;
Da liberdade ao sol curvou-se puro
E beijou-lhe a bandeira sublimada:
Amou-a como a Deus, e mais que a vida
Perdão para essa fronte laureada!
Não lanceis á matilha ensanguentada
A águia nunca vencida!
Perdoai-lhe, Senhor! Quando na história
Vedes os reis se coroar de gloria
Não é quando no sangue os tronos lavam
E envoltos no seu manto prostituto
Olvidam-se das glórias que sonhavam!
Para esses — maldição! que o leito cavam
Em lodaçal corrupto!
Nem sangue de Ratcliffs o fogo apaga
Que as frontes populares embriaga,
Nem do herói a cabeça decepada
Imunda, envolta em pó, no chão da praça,
Contraída, amarela, ensanguentada,
Assusta a multidão que ardente brada
E tronos despedaça!
O cadáver sem bênçãos, insepulto,
Lançado aos corvos do ervaçal inculto,
A fronte varonil do fuzilado
Ao sono imperial co'os lábios frios
Podem passar no escarnio desbotado —
Ensanguentar-te a seda ao cortinado
E rir-te aos calafrios!
Não escuteis essa facção ímpia
Que vos repete a sua rebeldia….
Como o verme no chão da tumba escura
Convulsa-se da treva no mistério:
Como o vento do inferno em água impura
Com a boca maldita vos murmura:
«Morra! salvai o império !
Sim, o império salvai: mas não com sangue!
Vede — a pátria debruça o peito exangue
Onde essa turba corvejou , cevou-se!
Nas glórias, no passado eles cuspiram!
Vede — a pátria ao Bretão ajoelhou-se,
Beijou-lhe os pés, no lodo mergulhou-se!
Eles a prostituíram!
Malditos ! do presente na ruína
Como torpe, despida Messalina
Aos apertos infames do estrangeiro
Traficam dessa mãe que os embalou!
Almas descridas do sonhar primeiro
Venderiam o beijo derradeiro
Da virgem que os amou!
Perdoai-lhe, Senhor! nunca vencido,
Se em ferros o lançaram, foi traído!
Como o árabe além no seu deserto
Como o cervo no páramo das relvas
Ninguém os trilhos lhe seguira ao perto
No murmúrio das selvas!
Perdão ! por vosso pai! que era valente,
Que se batia ao sol co'a face ardente,
Rei — e bravo também ! e cavalheiro!
Que da espada na guerra a luz sabia
E ao troar dos canhões entumecia
O peito de guerreiro!
Perdão, por vossa mãe! por vossa glória!
Pelo vosso porvir e nossa história!
Não mancheis vossos louros do futuro!
Nem lisonjeiro incenso a nodoa exime!
Lava-se o poluir de um leito impuro —
Lava-se a palidez do vicio escuro —
Mas não lava-se um crime!
(Rio de Janeiro, Novembro de 1850. Em homenagem a Pedro Ivo, líder da Revolução Praieira, em Pernambuco, que, depois da derrota em abril de 1850, continuou a resistência nas matas de Água Preta, até se entregar sob falsas promessas de anistia. Fugiu da prisão em 20 de Abril de 1851, ficou escondido até embarcar rumo à Europa, morrendo durante a viagem em 3 de Março de 1852).