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Neusa Jordem Possatti: O dia que a mãe da gente morre

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É fim de tarde. O sol está indo embora, mas antes disso risca de vermelho o céu cheio de nuvens. Estranho quando o caminhão lotado de diaristas pára bem na porta da minha casa. Aqui não é o ponto de parada. O pessoal que salta da condução vem cansado da roça. Estão todos de cabeça baixa, olhar triste e mal me olham quando passam por mim. O último a saltar é o Zeca e é só quando ele desprende a lateral do caminhão e a madeira balança no ar, deixando o assoalho da carroceria à vista, é que vejo um corpo inerte de mulher. Custo a reconhecer minha mãe e mais ainda a acreditar que é dela o corpo sem vida que o Zeca carrega nos braços e deposita com cuidado na esteira de taboa que forra o chão do único quarto da nossa casa. Ninguém fala comigo, mas ouço aquela gente que invade a cozinha, a sala e o quarto resmungando em voz baixa “coitada… tão nova”. “Num minuto estava panhando café, no outro, esticada no chão”… “é o coração… para morrer, basta estar vivo”.

Eu nunca vi ninguém morto. Pensei que ia ter medo quando visse. Agora, não sei o que pensar. Tudo o que consigo imaginar é que o céu está azul demais para um dia em que a mãe da gente morre. Deveria estar chovendo uma chuva fina, dessas que deixa o coração da gente triste e nem cantoria de passarinhos deveria haver. E esse vento que fala no meu ouvido e brinca com o meu cabelo podia saber que não é hora nem lugar. O som alegre do auto falante anunciando a chegada do circo na cidade enche a rua de meninos que acompanham a passeata. “Hoje tem espetáculo?” “Tem, sim senhor…” “Na rua do buraco?” “Tem sim senhor…” “Eu vou ali e volto já…” e a meninada ensaiada, responde: “…eu vou buscar maracujá.” Pela primeira vez não vou atrás do palhaço que dá cambalhotas no ar convidando para o espetáculo da noite de estréia. Entro em casa, passo espremido no meio daquela gente e chego no chão do quarto. Escolho acreditar que minha mãe está dormindo. Pego a mão dela entre as minhas, mas estão frias, sem calor. Só então eu compreendo que é dor, a fisgada no meu coração. Deito sobre o corpo dela e choro.