Sem categoria

Considerações sobre a guerra da Líbia e a “Primavera Árabe”

O intelectual marxista italiano polemiza com os setores da esquerda de seu país, destacadamente os trotsquistas, que se posicionaram em defesa da intervenção imperialisxta da Otan na Líbia. O ânimo do Portal Vermelho é debater esta palpitante questão da conuntura mundial, sem imiscuir-se nos debates táticos-eleitorais da esquerda italiana.

Costanzo Preve, no Blog de Domenico Losurdo

1 – Recentemente aderi a uma manifestação e assinei um manifesto exigindo a demissão de Napolitano, Berlusconi, La Russa e Frattini por violação da Constituição devido à nossa intervenção na Líbia. Sei perfeitamente que se trata de um ato simbólico absolutamente inútil. Como escreveu Brecht, “A ira contra a injustiça também torna a voz rouca”. Seria fácil ser insolente em face da unanimidade guerreira que uniu a esquerda e a direita, a extrema esquerda e a extrema direita, ex-comunistas e ex-fascistas (aqui o par Napolitano/La Russa é absolutamente impagável, por quem estudasse o chamado “transformismo” fora dos livros escolares). Tento não me deixar levar pela indignação e me limito a oferecer alguns pontos para a reflexão.

2 – Muitas coisas ainda não são conhecidas e talvez sejam apenas nos próximos anos. Quanto tempo durou e quando começou a preparação dos serviços secretos franceses e ingleses na Cirenaica e nas regiões berberes da Tripolitânia? Quanto foi contado sobre a colaboração entre a bruxa sionista Hillary Clinton e coveiro do gaullismo Nicolas Sarkozy para empurrar o (talvez) relutante Obama a dar o sinal verde à intervenção armada? Como foi possível enganar a Rússia e a China na ONU para deixar o caminho livre à hipócrita no fly-zone (zona de exclusão aérea), ou, por outra, quanto houve de suja conivência? Que no caso se tivesse realmente ocorrido, faria cair toda a esperança no Brics e na política euroasiática. Gostaria de saber mais, porém nada sei sobre isso.

3. Desde que me tornei um estudioso especialista em história da filosofia, não cesso de me surpreender com a facilidade com que a legitimação da guerra passou da doutrina da “guerra justa” à doutrina da chamada “intervenção humanitária”. Poupo o leitor de possíveis doutas reconstruções dessa história. Inicialmente, a guerra justa era a guerra justificada pela necessidade de exportar o cristianismo, e era portanto uma guerra de “cruzada”. Depois, a guerra justa se tornou a guerra em defesa da pátria invadida (em latim pro aris et focis), mas é claro que deste modo pode-se fazer com que o ataque preventivo passe hipocritamente como guerra de defesa.

O aparente sucesso do pacifismo nos últimos cinquenta anos não deve enganar ninguém. O pacifismo sempre foi um protesto contra o “extermínio nuclear”, para o qual, se fosse possível fazer uma guerra sem o uso de bombas nucleares, a guerra seria relegitimada (Norberto Bobbio sobre o Iraque em 1991 e a Iugoslávia em 1999). Os ritos afetados e hipócritas das chamadas Marchas pela Paz de Assis sempre foram cerimônias institucionais, nas quais os balidos rituais sempre se faziam acompanhar pela execração aos ditadores e a possibilidade de exportar os direitos humanos.

Na história da humanidade é raro que as guerras sejam conduzidas sobre a base das cartas fornecidas pelo estado maior inimigo. Ao contrário, nos últimos trinta anos viu-se esse paradoxo kafkiano. Os pacifistas berravam exigências de substituir as armas pelos direitos humanos, exatamente quando os mesmos produtores de armas escreviam sobre seus mísseis: “peace is our profession” (a paz é a nossa profissão), e os contingentes de invasores eram rebatizados de “contingentes de paz”.

Tudo isto, obviamente, é amplamente conhecido. Porém, é necessário perguntar, para além de todas as identidades de partidos ou alinhamentos, como foi possível no espaço de poucas décadas a passagem da Grande Mentira, da guerra justa à intervenção humanitária, tornada mais fácil também pela passagem do serviço militar obrigatório (que exigia motivações de manipulação ideológica alargada) a metiê de profissional das armas (inclusive mulheres), que é compatível com estratégias ideológicas menos sofisticadas (tenha-se em conta o programa de TV denominado Herat-Italia, sem esquecer quem é Murdoch, o bilionário sionista dono da Sky).

4. Segundo o modelo midiático publicitário americano, hoje as guerras são “vendidas” à chamada “opinião pública” de forma personalizada, por meio da personalização diabólica e demonização do “Ditador sanguinário”. Aqui o roteiro se repete. Em 1999 o sanguinário ditador era o sérvio Milosevic (rebatizado de Hitlerovic em uma obscena capa do Expresso, o carro-chefe do grupo Scalfari-De Benedetti), em 2003 Saddam Hussein, e agora em 2011 o sanguinário ditador é Kadafi. Este retorno personalizado do ditador sanguinário deve fazer refletir. Tudo isto está certamente ligado à mídia televisiva que requer ícones facilmente reconhecíveis, mas não basta.

O ditador sanguinário é também uma extrema metamorfose degenerativa do imaginário antifascista da segunda guerra mundial. O imaginário antifascista partia da tríade diabólica personalizada pelos três grandes ditadores (na ordem de malvadeza, Hitler, Mussolini e Franco), mas não se limitava certamente a esta última, porque adicionava o socialismo, o comunismo, a luta contra o colonialismo, o racismo, o imperialismo, etc. Depois da catástrofe do triênio 1989-1991 e da vitória de tênis nos círculos universitários do paradigma do Totalitarismo de Hannah Arendt, todos estes elementos foram varridos e o que restou foi o estereótipo do ditador sanguinário, se possível com suas mansões equipadas com torneiras de ouro e banheiras Jacuzzi revestidas de pele humana.

Isto poderia em parte explicar a total rendição da cultura de “esquerda” ao modelo do ditador sanguinário. Até mesmo Samir Amin (Il Manifesto, 31 agosto 2011), embora condenando a intervenção da Otan diagnosticando com precisão as razões “imperialistas” da guerra da Líbia, sente a necessidade de atacar ferozmente o derrotado, qualificando Kadafi como “bufão” . Sou contrário a atacar o vencido, mesmo que com motivações pseudo-marxistas. Não me interessa corrigir com o lápis azul a ingenuidade do Livro Verde ou sancionar os indubitáveis elementos kitsch de seu comportamento. Kadafi foi e é um grande patriota e um combatente anti-imperialista, pan-árabe e pan-africanista, mil vezes superior aos cães e porcos que lincham os negros e que venceram exclusivamente por causa dos bombardeios da Otan.

5. A vergonha da cultura de esquerda a propósito da guerra da Líbia foi de tal ordem que é quase difícil de descrevê-la. Todos se deixaram enganar pela retórica sobre a “primavera árabe” patrocinada pelo emir do Catar e da Al Jazeera. O fato é que esta “cultura de esquerda” (exemplo disso é o jornal Il Manifesto, do qual Liberazione é tão somente uma variante sindicalista) é agora apenas uma variante radical do individualismo da esquerda pós-68, indubitavelmente pós-burguesa, mas também e sobretudo ultra-capitalista.

Nesta vergonha se destacou particularmente o trotsquismo, em todas as suas variantes, da Esquerda Crítica ao Partido Comunista dos Trabalhadores (Ferrando) ao Partido da Alternativa Comunista (Ricci). Todos estes morderam a isca da estupenda revolta das massas líbias, que sendo, contudo, privadas de um bom partido revolucionário trotsquista, viram a sua magnífica vitória ser “roubada” pela intervenção da Otan.

Aqui o doutrinarismo celebrou em solidão o seu máximo triunfo. Os resíduos dogmáticos do trotsquismo querem sempre uma revolução “pura”, aliás puríssima, porque se não for pura será sempre bonapartista, burocrática, “campista” (Castro, Chávez, etc.). Estes desventurados me lembram um frustrado que, não podendo casar com a mulher mais bela do mundo, a única com quem queria casar, se tranca no banheiro a masturbar-se sonhando com esta Vênus ideal. Miseráveis! A Otan, os sionistas e os EUA massacram um combatente anti-imperialista, e estes idiotas celebram a queda do ditador sanguinário!

6. Não tenho absolutamente nada a ver com Napolitano e o ex-PCI . Estes já se reciclaram, em 1956 estavam com a URSS e, hoje, em 2011 estão com os EUA. Como eu jamais os estimei antes, não me desiludiram. Os únicos que mantiveram uma posição honesta foram os colaboradores de “Ernesto” (hoje “Marx XXI”), mas estes são os mesmos que por anti-berlusconismo querem aliar-se com Bersani e Napolitano, ou seja, com os que bombardeiam a Líbia. Que expliquem aos seus militantes e se conseguirem fazê-lo, é necessário concluir que os seus militantes não são militantes, mas “militontos”.

O verdadeiro problema é o de elaborar hipóteses sobre a chamada “primavera árabe”. Como disse com argúcia Zygmunt Bauman em uma entrevista ao La Stampa, interessante será o verão árabe, porque a primavera já passou. Por ora estamos no campo das hipóteses. Creio que em um certo sentido o 2011 árabe será, vinte anos depois como o 1991 soviético. O 1991 soviético encerrava o ciclo das revoluções comunistas do século 20 em seus aspectos de revoluções operárias e proletárias burocraticamente degeneradas ou não, isto é outra história), através de uma majestosa contrarrevolução restauradora da nova classe média crescida no interior do mesmo aparato formalmente “comunista”. O 2011 árabe encerra o ciclo das revoluções nacionalistas árabes a partir de 1945 (nasserismo egípcio, kadafismo líbio, baathismo iraquiano e sírio etc.), em que as novas classes burguesas favorecidas pelo mesmo despotismo partidário-militar precedente agora se autonomizaram, e buscam uma relação direta e não medida militarmente com a grande globalização financeira capitalista.

Estou enganado? Sou muito pessimista? O futuro logo o dirá.

Tradauzido do italiano pela redação do Vermelho