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Angústia: quando o problema é o herói

O grande romance de Graciliano Ramos foi publicado inicialmente em agosto de 1936, quando o autor estava trancafiado nos cárceres do Estado Novo, é uma das mais importantes obras literárias modernas no Brasil.

Por José Carlos Ruy

“Angústia”, de Graciliano Ramos, publicado em agosto de 1936 (há 75 anos, portanto) é reconhecidamente um dos mais importantes romances brasileiros modernos. A história de Luís da Silva, filho da oligarquia rural decadente que se tornou funcionário público e um medíocre subliterato, fornece a trama para uma realística (e cruel) descrição (ou narração – como decidir, neste caso, o dilema proposto por Lukacs?) das contradições provocadas pelas profundas mudanças que a sociedade brasileira vivia, forjando a modernidade perversa e mal resolvida que predominou no país nas décadas seguintes.

Alguns já viram o romance “Angústia”, recheado de frustrações e de um amor fracassado, como “existencialista”. Avaliação provocada, talvez, pela ousada experiência narrativa que o romance é: tudo se passa, na mente de Luís da Silva, nos instantes seguintes ao crime que ele cometeu, o assassinato de seu desafeto Julião Tavares.

As imagens se sucedem, em sua mente, num fluxo de consciência intenso. Alfredo Bosi diz (em História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, 1972) que “o livro avança com a rapidez de um objeto que cai”. A novidade narrativa representada pelo monólogo interior e pelo fluxo de consciência, inaugurada por James Joyce e incorporada por Graciliano Ramos (e também, em outro registro, por Clarice Lispector), parece fundamentar a leitura “existencialista”. Trata-se de um recurso que permite o embaralhamento do tempo, misturando presente, passado e futuro (como ocorre, realmente, em nosso pensamento) e faz supor que toda a trama se situa apenas no indivíduo e suas vicissitudes e na maneira como ele percebe o mundo e suas contradições e reage a elas.

Luís da Silva, correndo pelo trilho da ferrovia, fugindo ao crime que cometera, repassa a trajetória concluída por aquela tragédia, revê sua miséria humana, sua impotência ante o pequeno mundo no qual vivia e que o obrigava a funções burocráticas destituídas de significado, na repartição (o trabalho alienado e sem sentido descrito por Karl Marx) ou a prostituir-se literariamente na mesquinha imprensa local escrevendo o que lhe mandassem, concordasse ou não, desde que recebesse alguns trocados para reforçar o orçamento. Revê também a aurora representada pela aparição de Marina em sua vida, e também o inferno que agravou sua frustração e a perda de sentido da vida, e que diretamente o motivo de sua ruína.

Mas é apenas superficialmente que as contradições dessa vida cinzenta e em ponto menor apontam para a visão “existencialista” da trama de “Angústia”. Focado no indivíduo e suas contradições, a obra de Graciliano (e principalmente esta, que é considerada sua obra-prima) tem um profundo sentido realista que, paradoxalmente, a forma narrativa empregada encobre e ressalta.

Alfredo Bosi incluiu toda a obra de Graciliano Ramos numa categoria analítica que chamou de “romances de tensão crítica”, sendo o “ponto mais alto da tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou”. E seu realismo, pensa o historiador da literatura, “não é orgânico nem espontâneo”, mas crítico, com seus heróis profundamente problemáticos (“o ‘herói’ é sempre um problema”, escreve Bosi), em conflito com os outros, com a sociedade e consigo mesmos.

São as contradições sociais que movem o herói problemático. Ressaltando o caráter profundamente realista da obra de Graciliano, o crítico Carlos Nelson Coutinho (no ensaio “Graciliano Ramos”, publicado no livro “Literatura e humanismo”, Rio de Janeiro, 1967) localiza, com razão, aquelas contradições no quadro das mudanças que o país vivia. Elas que encerravam a transição entre o passado colonial e escravista e inauguravam, na década de 1930, a hegemonia do modo de produção capitalista e seu corolário, o domínio cru e aberto do dinheiro sobre as pessoas, as coisas, as relações humanas em geral.

Neste sentido, a marca da literatura de Graciliano Ramos seria – diz Coutinho – a “narração do destino de homens concretos, socialmente determinados, vivendo em uma realidade concreta”, onde as contradições sociais andam de braços dados com as “lutas individuais por descobrir, no interior deste mundo alienado ou em oposição a ele, um sentido para a vida”.

A novidade narrativa representada por “Angústia” está a serviço da expressão “mental” de uma realidade contraditória. Isto é, o “fluxo de consciência” não é autônomo em relação à vida concreta do personagem, mas é reflexo dela e das expectativas favoráveis e negativas que essa existência projeta em sua consciência. Há uma ligação íntima, dialética, entre o mundo mental e as condições concretas do mundo real, ligação que desautoriza, na obra de Graciliano, qualquer compreensão de uma eventual autonomia do mental em relação ao real e concreto. Este é um ponto chave para a compreensão mais profunda dos romances do grande alagoano e condena todo enquadramento de sua obra como meramente “existencial” ou, em outra forma limitada de considerá-la, “regionalista”.

Como em todo grande romance e todo grande romancista, o que interessa a Graciliano é o que há de universal no particular e no singular. Assim, no indivíduo Luís da Silva ele encontra uma situação humana profunda e significativa não de um “homem” abstrato, de uma universalidade “conceitual”, mas de homens concretos e reais que vivem em situações reais e concretas. Assim, pensa Coutinho, “as deformações psíquicas do personagem, sua frustração agressiva, e sua incapacidade de equilíbrio estão todas centradas sobre a miséria, sobre a sua inferioridade econômica e social”. E no medo ante a decadência e da ruína. Graciliano “retrata magistralmente a psicologia típica do pequeno burguês: a luta por atingir a condição de grande burguês, por subir na hierarquia social, e o profundo recalque que decorre da constatação de que é impossível esta ascensão”, conduzindo à revolta e à frustração agressiva, que se agravam na luta do personagem para não se proletarizar e cair na miséria.

Esta relação dialética entre particular, singular e universal transparece também no uso de vivências locais que geraram o rótulo de “regionalista” aplicado a uma obra tão universal quanto a de Graciliano.

É um rótulo que a crítica mais informada e rigorosa rejeita. É “precária, se não falsa, a nota de regionalismo que se costuma dar a obras em tudo universais” colmo a de Graciliano, escreveu Bosi. “Nada existe nele em comum com aquele estreito regionalismo”, concorda Coutinho, para quem a “Graciliano interessa apenas o que é comum a toda a sociedade brasileira, o que é ‘universal’”.

Angústia

(Alguns trechos)

“Ao chegar à rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um enorme desejo de apertar-lhe as goelas. O homem perturbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.”
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“Um mês depois éramos inimigos. (…) Marina estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares. (…) O sem-vergonha metera-se na casa, ficava lá horas, íntimo da família, unha com carne. Empurrava a porta, entrava como se aquilo fosse dele.”
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“Julião Tavares passava como um pavão. E o pessoal se calava, arregalava os olhos para Marina, que não ligava importância a ninguém, ia fofa, com o vestido colado às nádegas, as unhas vermelhas, os beiços vermelhos, as sobrancelhas arrancadas a pinça. (…) Sim senhor. Que bicho de sorte! Marina fazia água na boca dos homens.”
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“Por que foi que aquela criatura não procedeu com fraqueza? Devia ter-me chamado e dito: ‘Luís, vamos acabar com isto. Pensei que gostava de você, enganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangado comigo?’ Eu teria respondido: ‘Não fico não, Marina. Você pode se casar contra vontade? Seria um desastre. Adeus. Seja feliz.’ Era o que eu teria dito. Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acontecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até com orgulho.”

“— “Minha Santa Margarida…” O dono da bodega, triste, fincava os cotovelos no balcão engordurado. As crianças faziam voltas em redor da barca de terra e varas. A rapariga pintada de vermelho espalhava um cheiro esquisito. O engraxate escutava histórias de capoeiras. O homem acaboclado cruzava os braços, mostrando bíceps enormes. O mendigo estirava a perna entrapada e ensanguentada. As moscas dormiam, e o mendigo, com a multa esquecida, bebia cachaça e ria. Passos na calçada.
Quem ia entrar? Quem tinha negócio comigo àquela hora? Necessário Vitória fechar as portas e despedir o hóspede incômodo que não se arredava da sala. Mas Vitória contava moedas, na parede, resmungava a entrada e a saída dos navios. A placa azul de D. Albertina escondia-se a um canto, suja de piche. Todo aquele pessoal estendia-se perfeitamente. O homem cabeludo que só cuidava da sua vida, a mulher que trazia uma garrafa pendurada ao dedo por um cordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro Vaqueiro, as figuras de um reisado, um vagabundo que dormia debaixo das árvores, tudo estava na parede, fazendo um zumbido de carapanãs, um burburinho que ia crescendo e se transformava em grande clamor José Bahia acenava-me de longe, sorrindo, mostrando as gengivas banguelas e agitando os cabelos brancos.”

“José Bahia, trôpego, rompia a marcha. Um, dois, um, dois… A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Bahia e vinha deitar-se na minha cama. Quitéria, Sinhá Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os vagabundos, vinham deitar-se na minha cama. Cirilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o chão, vinha deitar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar-se na minha cama. As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades.”

“Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, (Julião Tavares) voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali eu era um homem… A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu … Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai dava no poço da Pedra, a palmatória do mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da repartição, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça.”

“O proprietário da casa, o diretor da repartição, o chefe da redação são homens que me dominam sem mostrar o focinho, manifestam-se pelo arame, num pedaço de papel.”