Marco Albertim: Velório
No rosto murcho, a autoridade com que o proibira de ler papéis subversivos, dera lugar à inanição da morte. Toda a noite, o caixão fora velado por velhas como ela; nenhuma com choro no rosto, para não dar conta da espreita que cada uma tinha da morte. Ele dormira no último quarto do longo corredor, picado por mosquitos invisíveis, rivais do balbucio de uma reza puxada das contas do rosário de uma velha; a única a não esconder a espreita da morte.
Publicado 23/09/2011 16:32

Julgara, ele, que o entorno dos conhaques o tornaria familiar a perdas, adulto aos olhos miúdos e carpideiros que presumira encontrar. Legitimara-se nos goles, posto que, de todos, era o único herdeiro da perda. Chamara a amiga para tê-la como testemunha da ruptura do ritual do velório; sem remorsos, maduro e sentindo a bebida indolor. Ela se recusara, proscrita das ruas como as velhas. No bar, a um quarteirão dali, chamaram-no para sentar junto a velhos conhecidos. Com a mesma maturidade com que bebera, não aceitara o convite.
Na volta, não pedira licença para romper a lamúria muda das velhas. Trancara-se no quarto sem dar boa-noite, com as mesmas prerrogativas. Urdindo-se capaz de dormir mesmo com o estorvo dos mosquitos, enchera-se de espanto com a rapidez dos anos. O dia seguinte flagrou-o com um ou dois fios brancos na cabeça.
Não se preocupou em pentear os cabelos; desbastados há três semanas, a pressão de uma das mãos os poria no lugar; ainda que um tufo ou outro insistisse em escapar dos dedos, combinaria com o perfil duro de filho deserdado da maternidade. Vira amigos súbito sem os pais, mas seus rostos, em vez de nutrir-se na introjeção da morte alternando a vida, pendiam cambaios, carregando culpas. Dali em diante, pensou, não seriam modelos de veladores de defuntos.
Na mesa, à frente da porta do quarto onde dormira, ofereceram-lhe café; bebeu recusando a fatia de um bolo lustroso, amarelado; por fora, o lustro dando conta de seiva; por dentro, um amarelo pálido, igual à feição brancacenta da defunta. Quis fumar, foi para a frente da casa, fugindo das velhas, legitimando a fuga na fumaça do cigarro. Não evitou o rosto encovado da morta, confundindo-se na brancura espelhante do pano no interior do caixão.
Ela não mais o repreenderia por ter se juntado ao coro dos subversivos na conspiração muda contra os generais. “Você quer me matar? Enquanto você depender de mim, vai fazer o que eu mandar…! Ponha fim a esses papéis, vamos! Não. Eu mesma toco fogo neles…” Incinerou um maço de incendiárias pregações; nas chamas, ele sentiu queimarem-se também suas entranhas juvenis.
O conhaque desarranjara-lhe os intestinos. O incômodo de passar entre as velhas, em vez de conter o embrulho nas entranhas maduras, agravou-o. No vaso sanitário, inda que legitimado na herança da dor, julgaram-no portador de inconveniente incontinência. As fezes, cujo cheiro é tão universal quanto a morte, não combinam com o adubo inodoro do caminho para o céu; por isso, duas ou mais velhas engrossaram a ladainha da perda, na esperança de untar as narinas da defunta com o óleo dos enfermos.
De volta para a calçada, acende outro cigarro. Um fio de luz do sol insinuara-se na janela, riscando o rosto da morta; qualquer um, vivo que fosse, sentiria alívio ao abrigo da luz. A defunta, àquela altura, tinha nas entranhas uma pasta informe; um risco de luz, parecendo uma cicatriz no rosto sulcado, era a cota natural para a desintegração da carne. Ninguém cuidou de fechar a parte de cima da janela, um vidro quadrado, evitando a insolação post mortem.
Rodrigo, cujo propósito era se ver livre de conjeturas mortuárias, distinguira a luz. Em vez de canibalizar-se, como as velhas, entrevira nos anos as porções de pó de arroz que a mãe, nas manhãs, usara para cobrir os traços da idade. Na primeira camada, o branco nevado cobrindo o rosto, tornando-o ridículo; depois, esfregando a pequena almofada de tecido, o pó imiscuindo-se nas gretas da pele, deixando-a lisa, remoçando-a. Agora, o raio do sol, insolente, reavivando os recursos da mãe na luta contra a velhice.
“Rodrigo, prenda as pregueadeiras de meu sutiã.” De costas para ele, fechando o corpete grosso, quase uma lona, Rodrigo sentindo-se o camareiro da própria mãe. “Deixe dinheiro pra mim”, ele dizia. O pedido misturando-se a uma cobrança. Tanto ele quanto ela dando conta do compromisso entre os dois. Para não render-se de vez, ela exigindo que o filho confessasse seus propósitos para o dia. “Para onde vai?…” – “Para a escola.” – “Cuidado com quem vai conversar… Não se meta em passeatas.”
Na rua, em direção ao trabalho, ela, com o vestido justo no corpo não de todo entregue à velhice, chamando a atenção de homens da sua idade; casados, solteiros, na inconfessa briga contra os anos. Não a quisera casada com outro homem, não toleraria dormir no quarto vizinho ao da mãe, não com outro homem. O pai, o pai de Rodrigo, largara-a depois de ouvir ruidosas queixas de ciúme. Quando abriu a porta para sumir de vez, ela, esgotados os rogos, acenou para o filho rogar ao pai. Santiago ainda olhou para trás, para o filho pequeno na porta do quarto. “Não vá, meu pai…” Já ouvira a voz chorosa do filho, amedrontara-o com a brusquidão de pai intolerante. “Depois eu volto”, disse. Rodrigo acreditou. Berenice, não. Os dois jantaram sós na noite do mesmo dia, o primeiro jantar sem a presença de Santiago; jantar vago, inda que o espectro de Santiago no entorno da mesa jungindo-os a comer sem fome.
O sol, àquela altura, cobrira todo o rosto da morta, vincando-o, incitando-o a novo acesso de ciúmes. Santiago soubera da morte da ex-esposa. Velho, por certo crendo que nenhuma ironia dos anos o poria descoberto à doentia possessão de Berenice, foi ao velório. Trouxera o enteado, o filho da mulher que substituíra Berenice. Não teve interesse em olhar para a defunta, o rapaz. O padrasto, na sala, olhou-a uma única vez. O ricto de pesar desnudando o peso dos anos em seu próprio torso. Vendo-a, viu-se num ataúde igual; quase se sentindo culpado por aquela morte. De volta à calçada, encostando-se no carro que o trouxera, apertou o ombro de Rodrigo sem nada dizer; não tinha mesmo o que falar. Os anos de separação tinham deixado um vácuo entre os dois. Queriam se falar e não sabiam como. Beneficiaram-se com a passagem da banda musical, a mesma que, num ano distante, tocara para entreter os pés, as pernas, os corpos de Santiago e de Berenice.
Pai e filho com a mesma lembrança. Rodrigo, menino, rindo com os passos bêbados do pai; com a mãe se deixando levar. A banda, agora com outros músicos, uma moça segurando o bombardino, atiçando a mente dos dois. O maestro, em respeito, ordenara o silêncio dos instrumentos. Santiago, distraindo-se na indumentária com novas cores dos músicos, perscrutou no silêncio a profundidade do vácuo entre ele e o filho. Rodrigo, no silêncio, ouviu a música dançada pelos pais.
Depois, com a vinda de um padre do convento próximo em direção à igreja para a missa do domingo, Jandira, a irmã mais moça da falecida, interrompeu o trajeto do religioso. Moço, com a batina marrom, ela o tinha como confessor e consolo de sua viuvez precoce. “Venha aqui, por favor…” Puxou-o pela manga de um dos braços. Ele a evitou para não se confessar na frente de todos; entrou na sala, rezou uma ave-maria sem contrição. Ela o chamara para a ressurreição. Ele a recusara pleno de impotência. Também isso distraiu os sentidos vazios de Santiago e de Rodrigo.
Distraíram-se mais quando uma das velhas, segurando a enfiada de rezas nas duas mãos, anunciou-lhes o instante de fechar o caixão. Fecharia-o, ela mesma, se lhe dessem a prerrogativa de apontar a boa fortuna da alma de Berenice; sem descruzar as mãos, sem interromper o balbucio. A sorte deixou-a órfã de escolhas; e como um aflito deserdado, cresceu o balbucio.
Santiago e Rodrigo, olhando-se, subiram ao mesmo tempo no batente de acesso à sala. “Não quero olhar para ela”, confessa Rodrigo; confessa rogando a cumplicidade do pai para a derradeira contrariedade com a mãe. Santiago, que a contrariara na longínqua infidelidade, consente; repõe a mão no ombro do filho; dali, fácil seria estendê-la para os olhos de Rodrigo, acudindo-o. A mão e os dedos, no entanto, movem-se sinistros, feito salamandras cegas.
Nenhum dos dois teve coragem de fechar o caixão. A velha do rosário entreviu a chance que lhe fora recusada sem palavras; impulsou o corpo, as contas balançaram. Mas Jandira, que na despedida do padre forçou-se na conversa com a alma da irmã, adiantou-se. Sorveu o miasma da carne, creu-se com deveres além da vida.