O caminho da independência e da soberania sul-americanas
O embaixador argentino Oscar Laborde ressalta a importância da participação popular para assegurar as conquistas dos processos de integração sul-americanos e os avanços conseguidos na América do Sul, em especial na Argentina.
Por Vanessa Silva*, especial de Buenos Aires para o Vermelho
Publicado 26/09/2011 14:43
Em 1973, o general Juan Domingos Perón sentenciou, durante discurso proferido na Confederação Geral do Trabalho: “o ano 2000 nos encontrará unidos ou dominados, e por isso a política internacional, especialmente a do nosso país, tende a essa unidade, à unidade para a defesa comum. E nesta unidade nada há de mais importante do que a unidade dos povos”.
Passados 38 anos do pronunciamento de Perón, a Argentina parece ter entendido o seu recado. Para o embaixador, representante especial para a Integração e Participação Social, coordenador do Conselho Consultivo da Sociedade Civil no Ministério de Relações Exteriores e dirigente do partido Frente Transversal Nacional e Popular da Argentina, Oscar Laborde, neste momento histórico “estão dadas as condições para que comecemos o verdadeiro caminho da nossa independência como povos e de nossa soberania como nações sul-americanas”.
Em entrevista ao Vermelho, Laborde pontua as transformações que se fazem necessárias em um terceiro mandato do Partido Peronista na Argentina – o primeiro foi outorgado a Néstor Kirchner, o segundo a Cristina Kirchner e o terceiro depende de sua reeleição em outubro – e ressalta a importância da participação popular nos projetos de integração do subcontinente sul-americano.
Vermelho: Tudo indica que Cristina Kirchner será reeleita nas eleições de outubro. O que isso significa para o momento político que vive a Argentina e também para a região?
Oscar Laborde: O resultado das Primárias Abertas Simultâneas Obrigatórias – PASO (1) é uma indicação para que sigamos nesse processo. É a ratificação de tudo o que fizemos e uma grande força para continuarmos.
Agora, assim como acontece no Brasil [com o terceiro governo do Partido dos Trabalhadores], temos o desafio do terceiro mandato. Neste caso, ou aprofundamos as mudanças e modificamos a matriz, ou retrocedemos. Já não é mais possível seguir fazendo a mesma coisa. No primeiro mandato criam-se as bases, no segundo, incrementa-se a redistribuição e, no terceiro, tem que mudar a matriz.
Vermelho: O que seria essa mudança? Uma guinada rumo ao socialismo?
Oscar Laborde: Não. Este governo não se propõe ao socialismo. É um governo nacional e popular. Não é nem mais, nem menos que isso. Nenhuma das medidas tomadas por este governo, nenhuma, foi contra o povo.[…] A verdade é que, com toda a modéstia, é difícil encontrar um governo na América do Sul que tenha feito mais, se identificando com a esquerda, do que este governo.
Agora, é obvio que o capitalismo está em crise. É evidente que ele não tem dado resposta às necessidades elementares da maioria da população do mundo. Está claro que esse sistema não pode ser o “fim da história” (2), porque objetivamente não tem solucionado o problema de milhares e milhares de pessoas. Agora, se não tiver um modelo alternativo, e isso sabemos desde pequenos, o capitalismo não vai cair. Não se pode pensar em um sistema alternativo sem uma proposta alternativa!
Vermelho: E esse sistema não seria socialismo ou comunismo. Seria outra coisa?
Oscar Laborde: No geral, se pensa que a superação do capitalismo será com o socialismo, obviamente. Está claro que o capitalismo não dá respostas. Que o sistema é questionável e está em crise, é fato. Mas, caso não exista alternativa, o capitalismo será recriado. Esse é um marxismo elementar, de jardim de infância. E a primeira coisa que o marxismo ensina é que o capitalismo não vai cair sem uma alternativa.
Agora, é possível que esse pólo que está sendo criado na América do Sul crie as condições para avançar mais desde essas nossas conquistas. […] Um dos elementos desta mudança é a participação popular. Temos que dar mais ferramentas para que o povo se expresse não somente pelo voto, ou não somente pelas ações políticas comuns, mas criar uma democracia mais participativa do que representativa.
Vermelho: O terceiro mandato está relacionado com um fortalecimento dos movimentos sociais?
Oscar Laborde: Os movimentos sociais da Argentina têm uma característica muito própria e está relacionada com o que aconteceu em 2001, quando havia a ideia neoliberal de que o Estado deveria fazer o mínimo. Então, em certo sentido, os movimentos sociais suplantaram o Estado. Suplantaram o Estado ao alimentar nosso povo, ao educar, ao gerar renda e ao alfabetizar nosso povo.
Mas, agora estamos em outra etapa. Na etapa da ofensiva, e não da defensiva. Na etapa da resistência, de tentar construir um modelo alternativo. Os movimentos sociais têm que mudar de rumo. Têm que entender que existe uma diferença entre ser revolucionário, ser popular e ser de esquerda. Nessa etapa, eles têm que se integrar na constituição deste novo projeto político. Já não basta reclamar, têm que criar a consciência, se organizar para bancar este projeto e para seguir aprofundando as mudanças.
Vermelho: É possível falar em união sul-americana neste momento?
Oscar Laborde: A união já existe e teve seu nascimento em 2005, quando os países disseram “não” à Alca. Quando os cinco presidentes do Mercosul disseram não à Alca (3), na cara do [George W.] Bush, disseram sim a quê? À integração. E a partir deste momento se constitui a Unasul.
E essa integração é tão poderosa que até os governos de direita participam dela. Mas, é preciso fortalecer o sujeito político. Não basta apenas ter presidentes que compreendam seu povo. É imprescindível, para acontecer esta mudança de matriz, que o sujeito político faça com que essas mudanças sejam sustentáveis. Tem que fortalecer o sujeito político para garantir que este não será um episódio temporáriol da história.
Vermelho: Uma das críticas que se faz ao processo de integração é que ela não é possível dada a diferença dos países e das propostas de governos existentes na América do Sul. Frente a isso, é possível integrar, mesmo com propostas diferentes?
Oscar Laborde: Nossa virtude é justamente sermos diferentes. A queda dos dois principais paradigmas do que é um regime de esquerda – fim da URSS e a queda dos regimes de bem-estar social europeus – fizeram com que buscássemos nosso próprio paradigma, alternativas mais voltadas para o nacionalismo popular com nossas raízes. São diferentes os fenômenos porque são diferentes os povos.
Mas, tem pouca teoria sobre isso! Esse projeto está subteorizado. Ninguém explica o que está acontecendo aqui. Quem, em 200, diria que iríamos formar a Unasul (4) e nos unir em um sistema de defesa comum? Ninguém premeditou isso e é exatamente o extraordinário desse processo. Agora, temos que fazer com que esses processos distintos encontrem a matriz comum sul-americana. Qual é o desafio agora? A construção do sujeito político por um lado, e a construção de uma matriz de pensamento latino-americano que tenha em conta a particularidades daquilo que nos une.
Vermelho: E o que é que nos une?
Oscar Laborde: Primeiro é a ideia de que o capitalismo está em crise. Claramente estamos juntos na Unasul. A vontade de estar juntos, protegendo-nos mutuamente nos une. E isso é uma novidade. Desde Simón Bolívar, San Martin, nunca houve nada parecido com isso! Outra coisa é a novidade de que o Estado tem que estar a favor dos pobres. O Estado na América Latina, antes e depois da colônia, sempre esteve dirigido pelas elites dominantes, que se associavam ao Império para prejudicar nosso povo. Essa ideia de um Estado atuante, combativo, protetor, é uma novidade. E por fim, a ideia de que a geração de um mercado interno vai produzir um sistema favorável ao nosso povo.
Vermelho: A oposição feita por grupos resistentes a esses processos de integração, cujo discurso é, geralmente, encampado pela mídia tradicional, constitui um impedimento para esta integração?
Oscar Laborde: Está claro que é um incômodo e uma grande preocupação para os grupos concentradores da economia, não tanto pelo que estão fazendo [esses presidentes], mas pelo que podem fazer. Por que a elite de São Paulo trabalhou contra Dilma? Por que com o tanto que ganham os grupos econômicos da Argentina, eles não querem Cristina? Porque eles temem o que está por vir e não o que acontece agora.
A elite está fazendo uma ação preventiva, não pelo que está posto agora, porque agora estão muito bem, estão ganhando como nunca. Então está claro que eles estão defendendo seus interesses de classe, como sempre fizeram
Ninguém pode impedir que eles atuem em defesa própria. Nós podemos dizer para as pessoas optarem por um ou outro projeto, mas não podemos dizer ao inimigo para que ele não defenda seus interesses de classe, seria infantil fazê-lo. Mas, temos que ter consciência de nossas ações. Porque se fizermos a coisa bem feita, o povo vai nos apoiar, mas se nos equivocarmos, a direita será fortalecida.
Notas
(1) PASO: As Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias são a primeira etapa das eleições argentinas. Foram realizada dia 14 de agosto, ocasião em que Cristina obteve mais de 50% dos votos.
(2) Fim da história: Teoria criada pelo estadunidense Francis Fukuyama. Segundo sua teoria, que tem como base o pensamento de Friedrich Hegel, o capitalismo e a democracia burguesa constituem o coroamento da história da humanidade, sendo por isso o sem fim, o seu destino. O ponto de equilíbrio e estabilidade da humanidade com o despontar de uma única potência, os Estados Unidos da América.
(3) ALCA (Área de Livre Comércio das Américas): Projeto encampado pelos Estados Unidos com o objetivo de eliminar as barreiras alfandegárias entre os 34 países americanos, exceto Cuba, e assim formar uma área de livre de comércio para as Américas.
(4) UNASUL (União de Nações Sul-Americanas): É formada pelos doze países da América do Sul e tem como objetivo construir, de maneira participativa e consensual, um espaço de articulação no âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos.
*Vanessa Silva é jornalista, colaboradora do Vermelho