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Carlos Carvalhas: A luta ideológica em torno da crise

A tese de que a crise teve origem na cupidez, na ganância, na ambição desmedida de alguns, e que hoje, sobretudo na Europa, ela é a consequência da dívida pública, continua a fazer o seu caminho.
Por Carlos Carvalhas, em O Militante

É certo que houve especulação e complacência dos Bancos Centrais, que a crise rebentou em Agosto de 2007 e que começou no setor da habitação, que tomou proporções inesperadas para muitos e que a «inovação financeira» aumentou do «ponto de vista agregado o risco na economia, colocando o sistema à beira do colapso». Mas a crise não resultou da ganância de alguns, nem da falta de regulação do sistema bancário, nem do «crescimento excessivo do endividamento», que alguns consideram o exemplo mais recente e um dos mais notáveis do capitalismo na «dinâmica de expansão e contração das economias. (1) Tudo isto se verificou. Mas são apenas as aparências casuais, os epifenômenos.

Também não estamos perante «uma crise excepcional» (2), mas sim perante uma crise cíclica do capitalismo com características novas e específicas, agravada por novas situações – liberdade de circulação de capitais, deslocalizações, crescente peso das atividades financeiras e do «capital fictício», parasitário, especulativo, num quadro de domínio da ideologia neoliberal.

Crise de sobreprodução, crise de excesso de capital, cuja síntese passa pela destruição desse excesso em relação à taxa de lucro esperada. Uma crise de sobreprodução com extensão praticamente planetária «tendencialmente mundial», «sistêmica», em relação ao subconsumo das massas (procura solvente).

Perante a concentração da riqueza e a perda do poder de compra dos trabalhadores, a tentativa de saída para a produção em relação à procura solvável das massas, foi o recurso ao crédito fácil e às exportações. Isto é, procurar saídas nos mercados dos outros e numa procura a crédito.

Para salvar os banqueiros e os acionistas, os Estados foram em socorro da banca com dinheiros públicos, nacionalizaram os prejuízos, criaram os «bad banks», para depois privatizar os lucros e endossar a fatura aos contribuintes através dos impostos e do corte de despesa nas funções sociais do Estado. (3)

Depois da falência do Leman Brothers até inventaram o «Too Big to Fail», isto é serem muito grandes para falirem, deixando cair milhares de pequenas e médias empresas e bancos, nomeadamente nos EUA.

Com uma campanha avassaladora fizeram esquecer a dívida privada, a dívida da banca ao exterior, que em muitos países é superior à dívida pública, como é o caso de Portugal, e conseguiram esconder que uma boa parte do crescimento da dívida pública se deveu à crise – injeção de dinheiro público na banca, nos subsídios de desemprego e prestações sociais, injeção de dinheiros públicos para tentar estimular a economia.

Conseguiram também fazer esquecer a responsabilidade da banca nesta crise e o fato de que o posterior aumento de impostos e o corte nas despesas sociais foram a outra face dos milhões que foram canalizados para o sistema financeiro.

Ao longo destes anos temos estado a resolver os problemas da dívida privada à custa da dívida pública.

Para justificar a drenagem de recursos para a banca através do corte na despesa orçamental, inventaram com criatividade a expressão corte «nas gorduras do Estado». Não há «papagaio» que não fale nas gorduras do Estado. É a linguagem do Spa, muito na moda e que aproveita a corrente das campanhas contra a obesidade.

Mas no essencial as medidas não vão no sentido da racionalização, nem da eliminação de gastos supérfluos, mas sim do desmantelamento do «Estado social». São cortes fundamentais na saúde, no ensino e na segurança social.

Por exemplo, em Portugal o governo não corta nos subsídios à banca na ordem de milhões e esta despesa, verdadeira gordura do Estado, para utilizar a expressão destes, vai engordar os já anafados e obesos banqueiros e acionistas.

Mas não é só ao nível da linguagem e das expressões criativas. É também ao nível das Universidades e do ensino da teoria econômica. Muitas destas universidades privadas, institutos e fundações, pertença direta ou indireta de grandes grupos econômicos (mas também as há públicas), o que ensinam é uma retórica e vulgata neoliberal, bem elaborada, a que não faltam expressões matemáticas para lhe dar um certo ar de cientificidade ao serviço das classes dominantes. Charlatanismo econômico com os seus respectivos «catedráticos», os seus «acadêmicos», que procuram com argumentos de autoridade e a conivência dos media, impor as suas ideias. As ideias dominantes são as da classe dominante e a ideologia econômica dominante é a do neoliberalismo, vulgarizada por economistas e analistas nas universidades e grandes meios de comunicação, umas vezes por ignorância, por mimetismo, por interesse de classe e outras por interesse material (o filme «inside jobs» é muito esclarecedor destes casos). E, para além da linguagem, das expressões criativas e da produção ideológica nas universidades, temos também a simbiose entre o poder político e o poder econômico, mesmo à «esquerda». Lembrar que Tony Blair deixou o governo e foi trabalhar para a J. P. Morgan, que Peter Mandelson está no Lazard, Romano Prodi na Goldman Sachs, Gerard Schroeder no opaco conglomerado financeiro, energético, da Gazprom.

Nos meios acadêmicos, como testemunhava entre nós ainda recentemente um docente universitário (4), (…) «Os alunos aprendem logo no primeiro ano que a instituição de um salário mínimo cria desemprego. Mais tarde, ao nível pós-graduado, será confidenciado aos poucos que lá chegarem que, à luz da evidência disponível, essa proposição é tudo menos certa. Nessa fase do processo de doutrinação, porém, eles já estarão pouco disponíveis para questionar os dogmas da profissão. Quanto aos que não atingiram esse patamar, virão cá para fora de boa-fé papaguear a pseudo-ciência que lhes foi ministrada.

Os Nóbeis atribuídos nos últimos anos comprovam que os economistas investigam assuntos de grande relevância para o entendimento do funcionamento dos mercados, como sejam a psicologia dos consumidores, a informação assimétrica, as falhas de coordenação, os obstáculos à cooperação dentro das empresas ou as condições que favorecem o alargamento das desigualdades.

Todavia, a síntese dessa investigação que é servida aos estudantes e à opinião pública ignora sistematicamente as limitações da racionalidade humana e as falhas dos sistemas econômicos que delas decorrem, em favor de uma visão cor-de-rosa do funcionamento dos mercados desregulados. Assim, embora o estudo do comportamento dos agentes econômicos demonstre que os pressupostos da microeconomia estão errados, ela continua a ser ensinada como se nada fosse.» (…)

E todos estes sábios repetem mil vezes que «não há alternativa!» O conhecido acrônimo thatcheriano «Tina», «there is no alternative», é a resposta do pensamento único e dos que são responsáveis pela situação em que nos encontramos. Não há alternativa ao capitalismo, não há alternativa ao neoliberalismo, não há alternativa ao cumprimento do acordo com a troika…
Como já alguém disse, estes propagandistas da submissão e do conformismo também não descuram o marketing e a propaganda.

O salário é sempre na boca destes um «custo do trabalho», a diminuição dos salários é embrulhada na expressão «aumento de flexibilidade sobre o mercado do trabalho» ou «moderação salarial» e o desmantelamento do Estado Social naquilo que designam por «reformas estruturais». As quotizações sociais são sempre «encargos sociais», os patrões são «empregadores», a exploração desapareceu do léxico e os trabalhadores passaram definitivamente a «colaboradores», etc., etc.

A crise do sistema monetário internacional

O curso do dólar e o euro tem sido errático ao longo destes tempos. A chamada «guerra cambial» ou «guerra das moedas» tem-se traduzido nas disputas entre países na procura de ganhos de competitividade – desvalorizações para aumentar as exportações, movimentos especulativos sobre tal ou tal divisa (o yen japonês, o franco suíço…) e a luta pela manutenção dos privilégios do dólar, moeda de reserva mundial e intermediária internacional de troca, designadamente na compra de matérias-primas – petróleo, gás – contra o euro que se quer afirmar como moeda de reserva mundial.

O dólar tem visto o seu estatuto de moeda de reserva ser posto em causa devido à dívida externa dos EUA, à emissão de dólares sem correspondência à produção de bens e serviços para a resolução dos problemas do sobre-endividamento. Por isso, os EUA, acompanhado a maior parte das vezes pela Inglaterra, tem procurado ampliar e tirar partido dos problemas da zona euro, designadamente os ligados à dívida externa dos países periféricos, para descredibilizar o euro.

As reservas de divisas mundiais representam atualmente o equivalente a 9 trilhões e 694 milhões de dólares (FMI, 31.03.2011), sendo 61% titulados em dólares estadunidenses e 27% em euros. As duas moedas representam cerca de 90% das reservas de troca mundiais. A libra e o yen são respectivamente a terceira e quarta moeda mais importantes. Há dez anos a parte correspondente ao dólar era 10% superior à atual e a do euro era menor. O euro tem vindo a afirmar-se como moeda de reserva e investidores asiáticos, tal como russos, brasileiros e outros, têm procurado ficar menos dependentes do dólar. Para se ter uma ideia dos ganhos e perdas que se podem ter com a flutuação cambial das moedas e os movimentos especulativos, basta ver que o montante médio diário das transações em 2010 foi de 4 trilhões de dólares. Estes fluxos monetários continuam a ser dominados pelo dólar. O euro subiu ligeiramente, passou de 18,5% para 19,5%. Mas a disputa continua, num quadro de grande instabilidade financeira, econômica e social.

O Banco Asiático para o Desenvolvimento há muito que pressiona os seus membros para a criação de uma moeda comum, mas poucos passos foram dados. A Rússia, a Venezuela e o Brasil têm vindo a aumentar as suas trocas nas moedas nacionais e a pressão para a reformulação do sistema monetário internacional, da parte destes países e da China, tem aumentado. A evolução para uma moeda tendo por referência um cabaz de moedas fortes com uma parte em ouro, ou para a utilização dos direitos de saque especiais do FMI com base num mesmo cabaz, são propostas que surgem com peso, periodicamente. Mas que esbarram com a oposição direta ou indireta dos EUA e da Inglaterra, que utilizam toda a sua força e pressão – designadamente militar – junto dos países produtores de petróleo, para que a sua cotação e transação se faça em dólares, mantendo o status quo do sistema monetário internacional.

O euro tem flutuado entre 1,39 e 1,45, em relação ao dólar, embora o dólar tenha manifestado uma tendência para a baixa a longo prazo. A China e o Brasil, a Suíça e o Japão vão lutando contra as pressões e movimentos especulativos no sentido da apreciação das suas moedas.

Nos EUA, o recente aumento do teto da dívida decidida pelo Congresso não suscitou nenhuma reação por parte da China. Mas este país não tem estado a comprar títulos do Tesouro americanos desde outubro do ano passado e terá mesmo reduzido o seu montante em cerca de 15 bilhões. O ministro das Finanças americano estima que a China detém 1 trilhão e 160 bilhões de dólares de títulos do Tesouro dos EUA. A China e o Japão são os maiores detentores da dívida americana.

A confrontação entre o dólar pela manutenção dos privilégios e o euro e outras divisas que procuram conquistar posições como moedas de reserva e de troca internacionais é uma luta estratégica que explica muito dos comportamentos dos EUA e da Wall Street, bem como da Inglaterra e da City e do Banco Central Europeu.

A construção de um euro forte à imagem do marco de modo a credibilizar a moeda internacionalmente como moeda de reserva é a principal linha orientadora da política monetária e cambial do BCE e não a coesão econômica e o desenvolvimento da zona euro como um todo, o que implicaria um euro muito menos valorizado. Esta política tem dificultado as exportações e agravado a situação dos países com economias mais débeis.(5)

Por sua vez, na União Europeia muitos dos países com dívidas públicas e privadas e dívidas externas extremamente elevadas jamais terão possibilidade de as resgatar. A solução, mais cedo ou mais tarde, terá de passar pelo corte da dívida (hair cut).
Reestruturação das dívidas de forma mais ou menos planejada. A recusa e o protelamento da resolução das dívidas destes países põem em causa toda a estratégia de credibilização do euro. É uma contradição insanável. E tudo isto se irá complicar quando a Grécia declarar o incumprimento, ou tiver de pedir novos empréstimos (está-se só a ganhar tempo, já se fala num corte da dívida grega de 50%) e quando a crise chegar com mais acuidade à Espanha e à Itália, pois estes dois países, como já alguém disse, são muito grandes para falirem e são também muito grandes para serem salvos «too big to fail» e «too big to save»!

Os cortes das dívidas públicas a «mata-cavalos», em períodos tão curtos, afundam os países no marasmo e na recessão, acentuando a sua insolvabilidade. E as privatizações de empresas altamente rentáveis alivia, ganha tempo, mas é a condenação a maior dependência e a maior drenagem de recursos (dividendos, lucros) para o exterior.

Os recentes ataques de Fundos Americanos a bancos europeus, nomeadamente franceses, deixando-os desprovidos de dólares, o que fez baixar a sua cotação e notação, bem assim como a posterior intervenção coordenada dos Bancos Centrais, inserem-se na estratégia anglo-saxônica de enfraquecer o euro e o sistema bancário europeu e de mostrar ao mundo a importância do dólar. Os bancos europeus tinham euros mas não tinham dólares e não conseguem financiar a compra do gás, do petróleo, por exemplo! Na mesma linha está a ampliação através da comunicação social e da imprensa financeira e econômica especializada, dominada pela City e Wall Street, dos problemas da zona euro e das dívidas públicas dos países periféricos. Mesmo algumas das declarações de Barack Obama não são inocentes e visam o mesmo objetivo: descredibilizar a zona euro em benefício do dólar (6). É por isso que quando a Alemanha, a União Europeia e o Banco Central Europeu quiseram penalizar a Grécia, ou fazem chantagem sobre a Grécia e outros países, pensando que estão sozinhos no mundo, Wall Street e a City de Londres, e as suas correias de transmissão, as empresas de «notação», aproveitaram a situação para criar um clima negativo e de dúvida sobre a zona euro, o que os obriga a «meter a chantagem no saco» e a tentar resolver os problemas.

A dívida externa dos EUA também não é resgatável e só se pode manter enquanto o mundo continuar a comprar dólares e títulos do Tesouro americanos.

A resposta à crise, sobretudo da parte da UE, tem-se inscrito na ortodoxia neoliberal – diminuição dos salários, liquidação de direitos, desmantelamento do Estado Social, privatizações, com todos os países a procurar ao mesmo tempo nas exportações a solução para a marasmo econômico. A absolutização da redução do déficit através da diminuição de salários, pensões e prestações sociais vai continuar a agravar não só a situação social, como a situação econômica e financeira.

Na verdade, todos estes planos de austeridade têm em comum passar a fatura para os contribuintes e os trabalhadores, alimentar a recessão e sobrestimar as receitas futuras. Por isso, não é de estranhar as sucessivas revisões em baixa do crescimento destes países e de crescimento mundial. Está-se numa nova espiral descendente econômica e financeira. E os dois principais vetores da política econômica continuam a ser: diminuição dos salários e mais crédito para relançar o crescimento. Precisamente os vetores que estiveram na origem da crise do «sub-prime» e desta crise – uma distribuição desigual do Rendimento Nacional, a concentração da riqueza e o desenvolvimento do crédito para manter o consumo.

As contradições do capitalismo têm-se agudizado, bem assim como as rivalidades interimperialistas, designadamente em torno das perspectivas do sistema monetário internacional. É a esta luz que têm que ser vistos os desacordos entre os EUA e a UE na resposta à crise, ou as declarações de Tim Geihner em nome dos americanos, na reunião dos ministros das Finanças da UE, na Polônia, no dia 27 de setembro, de que os europeus deveriam reforçar o Fundo Europeu de Estabilização Financeiro (FEEF) a fim de terem meios para reforçar os seus bancos.

Estas divergências ainda ficaram mais claras na reunião anual de Washington de 24 e 25 de Setembro de 2011, do FMI e BM: os americanos dando prioridade aos programas de criação monetária para relançar a economia e a UE dando prioridade à estabilização das finanças públicas e da banca através de dinheiros públicos. (7)

Contradições do capitalismo

São conhecidas as contradições fundamentais do capitalismo, que esta crise expressa com toda a clareza e evidência, bem como a luta de classes nos seus diversos planos. E a este propósito não deixa de ser reveladora a declaração há uns meses atrás do multimilionário americano Buffet de que ele sabia que estava a haver luta de classes, mas que era a sua classe que estava a ganhar, para mais recentemente vir defender um novo imposto sobre os ricos («deixem-se de apaparicar os ricos»). É a consciência de quem sente que é melhor dar alguma coisa antes que as coisas dêem para o torto!

Mas no quadro atual há uma nova contradição, simultaneamente ampliada e consequência de uma das maiores conquistas das classes dominantes na nossa época: a liberdade de circulação de capitais.

Essa contradição resulta das deslocalizações facilitadas pela livre circulação de capitais e impulsionadas pelo avanço das novas tecnologias, designadamente telecomunicações, informação e que têm também estado no centro de uma mistificação ideológica. É a exportação de capitais de forma exponencial (Lênine, “O imperialismo estado supremo do capitalismo”), expressa nas fórmulas de globalização das mercadorias e globalização financeira (ver, entre outros, Jacques Sapir, “La demondialization”, ou Eric Laurent, “Le scandale des deslocalizations”).

As deslocalizações, sobretudo pelos grandes grupos econômicos e financeiros (mas até pelas administrações públicas) (8), deram lugar a altíssimas taxas de lucro destas empresas e a uma fantástica evasão fiscal. Mas com a passagem do tempo viu-se que a destruição de empresas resultante das deslocalizações maciças não foi compensada pela criação de empregos nos serviços e novas tecnologias. Que os empregos perdidos não se situavam só nos baixos salários, pois atingem hoje os empregos mais qualificados e os níveis salariais mais altos – investigadores, quadros informáticos, engenheiros e especialistas de ponta –, nem que a repatriação dos lucros tenha irrigado toda a economia – teoria do derrame. O que se verificou e está a verificar é a intensificação da concentração da riqueza, condenando o consumo de massas e o consumo popular (9) e agravando a procura solvente e o escoamento da produção. Hoje esta situação tende a agudizar o quadro social e as tensões sociais e políticas.

Por um lado, os governos sentem-se pressionados pelas populações sem emprego e com sucessivas reduções de poder de compra e nível de vida, e é a essa luz que se têm de ver os apelos de Barack Obama e Sarkozy à reindustrialização dos respectivos países, e, por outro, a pressão do grande capital que quer manter o status quo defendendo cada vez maior liberalização do comércio internacional, maiores garantias para os seus capitais exportados e opondo-se a qualquer forma de defesa da produção local ou interna. O protecionismo passou a ser um tabu e a «livre concorrência não falseada», o dogma dos dogmas e o mito dos mitos do desenvolvimento econômico. Os que lucraram, com as deslocalizações até se servem de argumentos sociais. É curioso ver representantes do grande capital a exaltar o livre-cambismo que, segundo eles, criou «milhões de empregos no Terceiro Mundo» e retirou «milhões da fome e da miséria». A intensa campanha ideológica deixou desarmada certa «esquerda» que não põe em causa o capitalismo e que se colocou na primeira linha na repetição de slogans bem elaborados, como o «não à Europa fortaleza», «não ao protecionismo», «sim à globalização regulada»…

Hoje mais de metade dos produtos manufaturados consumidos nos EUA e na Europa são importados. E, agudizando ainda mais as contradições, os produtos que antes tinham ciclos de vida longos têm vindo a ter ciclos de vida cada vez mais curtos pela variação de pequenas alterações tecnológicas, de forma, de cor, tornando cada vez mais difícil a sua amortização.

Nos EUA são cada vez mais os que se interrogam sobre se as deslocalizações são benéficas ou nefastas para a América.
Para convencer os americanos dos benefícios das deslocalizações, os grandes grupos econômicos contratam empresas especializadas e acadêmicos, pagando e subsidiando «estudos» enganadores e parciais.

Vários relatórios são autênticos documentos de lobbying pró-deslocalizações. No entanto, depois de vários estudos, a publicação do «Outsourcing América» pelo «American Management Association» sobressaltou políticos e acadêmicos ao evidenciar os efeitos negativos e ao mostrar que apesar disso muitos responsáveis políticos e promotores das deslocalizações continuam numa situação de negação.

É neste quadro de crise global do capitalismo, com as velhas e novas contradições, que se devem analisar os acontecimentos e impulsionar a luta de massas, a luta popular, em todas as frentes.

Notas

(1) Fernando Alexandre, Crise Financeira Internacional. Estado de Arte. Ver Gandra Martins e outros. Universidade de Coimbra, 2009.

(2) Ibidem.

(3) O BPN e o BPP irão custar ao erário público muito perto de 4,5 bilhões de euros.

(4) João Pinto e Castro, Jornal de Negócios, 15.06.2011.

(5) Portugal tem sido particularmente afetado pelo euro forte devido à estrutura das suas exportações e ainda porque a taxa de câmbio definida no momento da adesão se traduziu numa desvalorização da peseta em 30% e do escudo em apenas 12%.

(6) Com a recente campanha americana sobre a crise europeia – veja-se, entre outras, a recente declaração (26.09.2011) de Barack Obama, em Silicon Valley, de que a crise do euro assustou o mundo, o dólar recuperou terreno e os títulos do Tesouro americanos voltaram a ser reconhecidos como valores refúgio! Fantástico!

7) Com o agravamento da crise, mesmo os mais ortodoxos vão cedendo: Wolfgang Schauble, ministro das Finanças alemão, disse que não se opõe a que a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade, que deve substituir o Fundo Europeu de Estabilidade, não espere por 2013. Por sua vez, a nova diretora do FMI pede com urgência o aumento dos meios financeiros do FMI, no que tem tido o apoio dos chineses e a oposição dos americanos!

(8) Eric Laurent, no seu livro Le scandale des deslocalizations, cita o caso de um trabalhador americano que, telefonando para a segurança social para procurar conhecer os seus direitos por ter perdido o emprego, se deu conta que estava a falar para a Índia, para onde se tinha deslocalizado aquele serviço da Administração Pública.

(9) Joseph Stiglitz diz que os EUA são cada vez mais um país rico com populações pobres.

Fonte: O Militante, revista de reflexão e prática do PCP, Edição Nº 315 – Nov/Dez 2011