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A força da palavra na construção da identidade nacional

Antologia de crônicas de Joaquim Manuel de Macedo descreve a vida social, política e cultural da capital do Brasil no Segundo Reinado, temas tratados com abordagem atualíssima pelo inaugurador do romance nacional.

Por Marcos Aurélio Ruy

A editora Casa da Palavra lança o livro “O Rio de Joaquim Manuel de Macedo, Jornalismo e Literatura no Século XIX”, da editora e jornalista Michelle Strzoda (1).
O livro ajuda a compreender o período do nascimento ao fim do Romantismo brasileiro e o nascimento de uma literatura genuinamente nacional na forma de romance, pois desenha “um panorama sobre a vida social, política e cultural do Rio de Janeiro no Romantismo”.

Michelle afirma que o trabalho de Macedo “ganha vida”, neste livro, “não como ficcionista que se eternizou nos bancos escolares, mas como o jornalista-escritor, o crítico, o articulista, o homem de imprensa e o grande cronista que foi”, sendo também “precursor do jornalismo cultural que começaria a dar seus primeiros passos no Segundo Reinado”.

Para ela “a imprensa literária carioca no Romantismo, período marcado por transformações políticas e culturais da sociedade brasileira, percorre todo o livro”. Nesse período vivia-se sob os “ecos da Independência”, que difundia “as preocupações e os anseios de ideias nacionalistas e da criação de uma literatura genuinamente brasileira”. Os jornais, concatenados com o clima do momento, abriam o debate sobre o país que se queria construir.

Macedo nasceu em Itaboraí (RJ), em 1820 e mudou-se para a capital para estudar medicina, embora não tenha exercido a profissão de médico, mas dedicou-se ao jornalismo e à literatura. Seu livro mais conhecido “A Moreninha” (1844), é considerado como o primeiro romance genuinamente brasileiro e o nosso primeiro “best-seller”, justamente pelo estilo popular do escritor e também “a inovação da linguagem e o lirismo presente em sua obra”, diz Michelle. “Joaquim Manuel de Macedo seria o criador do modelo de romance brasileiro, não só pelo tom lírico, mas pela intimidade do dia a dia que a obra conseguiu incorporar”.

Joaquim Manuel de Macedo, entre eles e a imprensa, cumpriu o papel de popularizar a literatura então produzida com anseios de “expressar e formar a identidade brasileira”, afirma Antônio Candido a respeito do Romantismo. O país transformava-se após a independência. Mas “não era somente a Europa que configurava a paisagem e a cultura do Rio imperial: era notável a presença dos costumes africanos, mais precisamente no popularesco do que na elite”, diz a autora, para quem também no Romantismo a questão do povo “aparecia tanto em forma de denúncia – como na poesia de Castro Alves, em ‘Navio Negreiro’ – quanto de modo apaziguador – na prosa de Joaquim Manuel de Macedo, em ‘Vítimas Algozes’ – entre os muitos escritos sobre a questão do negro no Brasil no século XIX”. Segundo ela, “em determinados aspectos, nota-se a importação (ou apropriação) da postura do europeu pela elite e dos costumes africanos e, por que não, indígena, pelo povo”.

Para Michelle, “as pessoas, definitivamente, queriam se ver no jornal queriam ter voz, queriam enxergar sua opinião retratada ali”. Ela afirma ainda que “essa tendência permaneceu por todo o período imperial e avançou até as primeiras décadas do século XX”. Então, diz, “ao elencar os principais propósitos do Romantismo como fonte de posicionamentos modernos, destacam-se a superação das normas literárias impessoais, a escolha dos instrumentos de expressão, a democratização da forma literária e a redefinição do conceito de literatura”. 

As transformações ainda não abrangiam a imensa maioria da população escrava, pobre e analfabeta. “A maioria da população não tinha acesso a essa produção editorial e intelectual, pois muitas das edições eram em língua estrangeira, traduzidas, publicadas em jornais, na maioria das vezes em rodapés literários – os folhetins”. Portanto, afirma Michelle, “a formação da autonomia nacional no século XIX passava pela cultura escrita (jornais, livros, documentos históricos, literatura em geral), pois não havia outros meios de comunicação”.

Mas, diz, “a maior preocupação dos escritores românticos era esboçar a sociedade brasileira, nesse caso, a Corte, como parte de um projeto de nação”. Para ela, Macedo desejava “entreter sem ser chato, abordar sem, ser superficial, opinar sem soar panfletário”.

O escritor Joaquim Manuel de Macedo começa a ter sua obra reconhecida como fundamental para a compreensão da formação da ideia de brasilidade e da construção de uma nação baseada em nossa cultura e nosso povo.

Nessa linha, a editora Hedra acaba de relançar seu pouco conhecido romance “A Carteira de Meu Tio” (1855) (2). Leandro Thomaz de Almeida explica que “A Carteira” é novidade porque aborda os aspectos políticos da época de modo crítico e apresenta um narrador diferente do costume da obra de Macedo que, neste livro, aproxima-se do sarcasmo presente no humor de Machado de Assis. Diz Macedo que os dirigentes da nação, poupando apenas a família imperial, “empregam no Brasil uma política que aprendem nos livros da França e da Inglaterra; improvisam no mundo novo as instituições do mundo velho, algumas das quais têm tanta relação com as nossas circunstâncias como um ovo no espeto!”

Seguem duasimportantes leituras para ajudar na compreensão da formação da nação brasileira e de seu povo.

Crônica
S. João de Itaboraí (3)

Por Joaquim Manuel de Macedo

A oito léguas de distância da cidade de Niterói se levanta uma elevada colina, sobre cujo cimo está assentada a povoação de Itaboraí. Qual fosse a sua origem, qual o seu primeiro habitante, é para nós um mistério, que o tempo tem tornado indecifrável.
Pode ser que isso nada tenha de curioso.

Mas quem sabe… é também possível que dois perseguidos amantes, fugindo medrosos, da prepotência e do poder de seus inimigos, procurando escapar a pais severos e a sua desamorável família, depois de peregrinar longos dias, chegando ao fim a essa solitária colina sossegada… saudável… bela… poética… que se pode dizer um orgulho da natureza brasileira, a julgassem azada para a vida de seus amores e aí erguessem a primeira casinha de ternura e felicidade.

O espírito do homem, que se entusiasma pelo belo, procura à força no profundo e inesgotável cofre de sua imaginação uma origem brilhante e romanesca para essa engraçada povoação, que se assenta em tão prazenteiro sítio.

A natureza é aí grande e sublime…

Essa colina voluptuosa se levanta no meio de longos vales que por todos os lados se desdobram: dir-se-ia o seio puro e entoado da campina virgem.
Ainda outra vez, a natureza é aí grande e sublime.

Ao longe… muito longe um círculo de montanhas e serranias fecha o seu horizonte: é de ver-se essa imensa linha circular formada por gigantes de pedra “negri-carrancudos”, que parecem separar o torrão, eu fecham do resto do mundo.

Ao longe surgirão as escarpadas

Rochas. Que a Niterói ao nanta ocultam,
Penedias veras escalavradas,
Que enormes tanto avultam,
O Pão de Açúcar carrancudo e ousado
E fronteiro submisso, fusco e turvo
Como vassalo curvo
O grave, feio e negro corcovado

E dentro dessa cadeia de rochedos a natureza trajando suas mais formosas galas se sorri e se pavoneia: para qualquer parte que se lance os olhos, descobrem-se longos verdes aprazíveis semeados de fazendas e situações agrícolas… veem-se orgulhosas florestas, e logo depois campinas deleitosas…

E se o sol de janeiro acaba de despontar sues raios vão refletir-se sobre os vastos canaviais promissores de abundância e riqueza, brilhando sobre as folhas verdes de suas hastes reclinadas.

Se a tempestade se avizinha e silva o vento, dobra-se à força deste o mandiocal, que se encapela e joga como o oceano que a procela agita.

Uma manhã de inverno?… rompe uma aurora em junho?… pois o véu da cerração envolve todos esses vales, e um lago imenso e sossegado à vista se oferece, de onde, à medida que se vai ostentando o astro radioso, surgem quais gelas ilhotas, formosos outeirinhos, até que ao calor do dia o lago se desfaz, e desaparece como se tivera sido apenas o sonho engraçado da natureza adormecida.

E todas essas cenas se apreciam e se gozam, porque a colina de Itaboraí está levantada sobre suas terras, como o capitólio de sua Roma; como o trono de seus estados.
Mas não iremos além… porque nem à nossa pena é dado pintar com justas cores tanta beleza; nem jamais se pintou a natureza com a riqueza de suas graças.

É em cima dessa colina coberta de reverdescente relva que se vê o templo de S. João Batista, alvo e sereno; semelhante a uma garça, que de asas abertas se equilibrasse sobre as verdes águas de um oceano sem tormentas.

Quatro estradas, que fronteiras se namoram, dão entrada par AA povoação, que nem por ser pequena e irregular deixa de tocar o viajante, pelas graças que lhe empresta sua feliz posição topográfica.

Forma a povoação cinco ruas e a praça em que existe o templo, e da qual a estampa que acompanha este artigo representa uma parte.

Os melhores edifícios, que se veem em Itaboraí, são a Igreja Paroquial, o Paço da Câmara Municipal, o Teatro, a Casa do Mercado e a casa do Exmo. Conselheiro José Bernardino Baptista Pereira, na qual foi outrora hospedado o avô de S. M. Imperial.

O povo itaboraiense é hospitaleiro, lhano, e pacífico: houve tempo em que sobre ele se quis lançar a nódoa de agitado e rebelde; porque não soube negar abrigo e socorro a brasileiros a quem o jogo da revolução tinha comprometido, ou a política da época perseguia.

Rico, saudável, alegre e cheio de proporções para ser grande, Itaboraí todavia ou permanece estacionário, ou sem progresso e quase imperceptível, grande, nobre e preciso se olvida e se despreza…

Há só uma consideração, que pode tudo, que nunca se esquece, que dirige todas as nossas seções… o interesse próprio.

Nunca houve época que tão de perto pertencesse ao egoísmo.

Se grandes gênios não têm nascido em Itaboraí, filhos dele podem ser apontados, representando papéis, que ninguém chamará secundários, na grande cena política, na magistratura, na administração provincial etc.

E, todavia, Itaboraí permanece estacionário, ou seu progresso é quase imperceptível!!!!!!

Concluiremos este artigo recompilando o seguinte soneto:

As tuas armas, pátria idolatrada,
Meu berço feiticeiras embalaram;
Teus prados a meus brincos prestaram
Da vida mais dos anos na alvorada.

O Várzea, e sua margem suspirada
Uma infância de flores me doaram;
Ah! Se esses dias já p’ra mim findaram,
Deles resta-me a ideia eternizada.

Por dever tudo à terra, onde nasci;
Entes, por quem minh’alma é repartida,
Ela terna aviventa junto a si.

Sensível gratidão lhe é pois devida;
Aceita, encantador Itaboraí
Meus pensamentos, coração e vida.

(1) Michelle Strzoda. O Rio de Joaquim Manuel de Macedo: Jornalismo e Literatura no Século XIX. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2010

(2) Joaquim Manuel de Macedo. A Carteira de Meu Tio. São Paulo, Editora Hedra, 2010

(3) Publicada no jornal “Ostensor Brasileiro”

*Marcos Aurélio Ruy é colaborador do Vermelho