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Violência de gênero: A insustentável leveza de ser [mulher]

"A mulher não é nada mais do que o que o homem decide que ela seja; assim se chama ‘segundo sexo’ querendo dizer com isso que aparece essencialmente perante o homem como um ser sexual: para ele, ela é sexo, e o é de um modo absoluto. Ela se determina e se diferencia em relação ao homem e não em relação ao que ela mesma é; ela é o que não é essencial frente ao que é essencial. Ele é o sujeito, o absoluto: ela é "o outro”. Simone de Beauvoir (O segundo sexo, 1949).

Por Vanessa Silva

violência mulher

O mais de meio século que nos separa das palavras proferidas por uma das precursoras do feminismo foi marcado por diversas conquistas femininas na sociedade, mas é inegável que a dominação masculina ainda se faz presente impondo às mulheres situações de violência, submissão e até mesmo morte (feminicídio).

A violência sexual contra mulheres e meninas é uma das manifestações mais claras dos valores, normas e tradições da cultura patriarcal presente na América Latina, que levam os homens a crer que têm o direito de controlar o corpo e a sexualidade das mulheres.

O Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) divulgou, em 2007, um extenso relatório sobre a violência de gênero na América Latina. Com o título: “Nem uma a mais. O direito de viver uma vida livre da violência na América Latina e no Caribe”, o documento de 142 páginas que mostra como o machismo cultural ainda prevalece na região.

Segundo o relatório, no Uruguai, a cada nove dias uma mulher morre vítima de violência doméstica e na Bolívia, 53% das mulheres afirmaram já terem sido maltratadas fisicamente pelo companheiro. No Brasil, 30% declararam já ter sofrido violência física extrema e uma em cada 5 declarou ter sido vítima de violência doméstica.

À época da divulgação do relatório, a responsável pelo Unifem para a região, Marijke Velzeboer-Salcedo declarou que “a concepção cultural machista, que tolera a desigualdade, gera obstáculos à implementação das leis e delega o problema da violência de gênero a um segundo plano”. Segundo ela, esta ideia ainda é predominante em amplos setores sociais.

Sexo e virgindade

De acordo com o estudo Violencia sexual em Latinoamérica y El Caribe: Análisis de datos secundarios (Violência sexual na América Latina e no Caribe: Análise de dados secundários) realizado pela Iniciativa de Investigação em Violência Sexual (SVRI, na sigla em inglês), publicado em 2010, “o valor concedido à virgindade está profundamente arraigado à cultura da América Latina e do Caribe”, outro fator que revela o conservadorismo cultural dessas sociedades.

De tradição majoritariamente machista a América Latina tem suas normas hierárquicas de gênero muito arraigada na moral católica, que define os papéis de mulheres e homens, como aponta o relatório. “Neste tradicional ambiente cultural e religioso, o papel mais influente das mulheres é o da Virgem Maria [cujas características são a castidade e a maternidade]. (…) As normas tradicionais e religiosas legitimam a discriminação contra as mulheres; portanto, não são protetoras, mas servem principalmente para reforçar a subordinação”.

De fato, em muitos países da região, as mulheres virgens são valorizadas, enquanto as mulheres ou garotas que tiveram relações sexuais antes do casamento são consideradas “indignas” e, portanto, alvos “justificáveis” de agressões, como aponta o estudo.

De acordo com o documento , estudo realizado em áreas rurais da Guatemala em 2002 constatou que a penetração forçada era considerada uma violação quando cometida contra uma mulher virgem com quem o agressor não pensava em se casar, mas não quando cometida contra mulheres que já haviam tido relações. No Caribe, estudo semelhante constatou que as garotas que perderam a virgindade antes do casamento e foram violentadas “mereciam” a agressão. No Peru, alguns homens declararam que “ninguém crê que elas foram forçadas a fazer isso [manter relações]”.

Essa situação é agravada pelo fato de muitas meninas e mulheres não denunciarem as agressões por medo ou vergonha. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), seis em cada dez mulheres já sofreram violência física ou sexual ao longo da vida. A violência doméstica, cometida por companheiros, incide sobre 25% a 50% das mulheres e, a cada 4 minutos, uma é agredida em seu próprio lar por uma pessoa com quem mantém relação de afeto. Além disso, dados da mesma organização afirmam que a América Central e o Caribe ocupam a terceira e a quarta região no mundo com mais feminicídios.

Mas, o que leva um homem a ser violento?

Segundo Sérgio Barbosa, membro do Coletivo Feminista e integrante da Campanha do Laço Branco, “A violência depende de um conjunto de fatores muito complexos. O principal é o machismo e se soma a isso outras coisas, como alcoolismo, o uso de drogas e violência social. Claro outros fatores também contribuem, como o tipo de educação, modelo da sociedade baseado no patricarcalismo e a repressão que existe sobre os sentimentos”. Ele assinala que, “em uma sociedade com papéis muito definidos, a violência tende a aumentar”.

O rompimento da cadeia de violência é um processo traumático e difícil para as mulheres. Quando um homem espanca uma mulher, junto com seu corpo, ele espanca também suas ilusões, sonhos e projetos investidos na relação. Trata-se também, muitas vezes, de uma questão de dependência econômica. Quanto mais frágil e sem recursos financeiros a mulher é, mais importância ela atribui ao marido, seu protetor, e à casa, seu porto seguro.

Segundo a coordenadora de saúde sexual do Coletivo feminista, Ana Fátima Macedo Galati, geralmente “os homens que praticam violência doméstica são homens considerados ´normais´, que trabalham, são ‘bons’, têm comportamento social adequado, mas praticam violência dentro de casa, ao contrário do que mostram as novelas, que colocam esses homens como sendo doentes, psicopatas”. Ela pontua ainda que o fato de o homem violento ser bem aceito na sociedade, ajuda na desvalorização da mulher, que muitas vezes passa como mentirosa ao relatar ser vítima de violência.

A conseqüência…

A violência de gênero é também uma questão de saúde pública, como revelam dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird). Segundo dados destas instituições, a cada 5 anos, a mulher que sofre violência doméstica perde 1 ano de vida saudável. Além disso, o estupro e a violência doméstica são causas importantes de incapacidade e morte de mulheres em idade produtiva.

De acordo com Ana Fátima, as conseqüências não-mortais da agressão por parceiros, incluem lesões permanentes; problemas crônicos, como dor de cabeça, dor abdominal, infecções vaginais, distúrbios do sono e da alimentação; doenças de efeito retardado, como hipertensão e doenças cardíacas; além de danos à saúde mental, “como síndrome do pânico, depressão medicamentosa, baixa auto-estima e o comportamento de infelicidade”, pontua.

O papel de cada um na sociedade

Quando crianças, é comum que as meninas ganhem bonecas e panelinhas e os garotos bolas e carrinhos. Essas brincadeiras, aparentemente inocentes, delimitam desde cedo o papel de cada um na sociedade, como exemplifica Ana Fátima: “O papel da mulher é colocado para a menina quando é dado um bonequinho para ela cuidar e amamentar. Ela também é estimulada a seguir os passos da mãe, então, os brinquedos que ela têm reproduzem as atividades maternas. Os meninos por sua vez, ganham bolas, e podem sair de casa para jogar futebol, ganham carrinhos, e podem se aventurar!”

Pais conscientes, portanto, devem dar brinquedos parecidos para seus filhos, como complementa Ana: “Que medo é esse de um menino ter e brincar com um boneco? O pai muitas vezes não deixa porque diz que o menino pode virar ‘maricas’, quando na verdade, o mínimo que esse menino que gosta de brincar de boneca vai ser, é um bom pai! Não necessariamente ele será gay, não é o brinquedo que a criança ganha na infância que o orienta na vida sexual.”

Assim, a menina desenvolve sua identidade de gênero no contexto de identificação com a mãe, em uma relação continuada, já o menino se separa da mãe, nega as qualidades femininas para estabelecer sua identidade masculina. “Este tipo de educação é reforçada pelas relações de gênero, pelo poder mesmo, onde em nossa sociedade, qualquer sentimento já se traduz como algo feminino” comenta Sérgio, que acrescenta: “Nós, homens, somos educados com valores voltados para a força, honra e coragem. Só que isso tudo se reverte contra nós. Basta olhar o número de [garotos] jovens que morrem e as causas dessas mortes”.

Hoje já tem diversos grupos que trabalham com a questão da masculinidade e do novo papel do homem na sociedade atual, como ressalta Ana Fátima: “muitos homens querem freqüentar palestras de conscientização porque querem saber o que fazer com esse poder que ele não quer ter. Ele quer chegar em casa e dividir as tarefas com sua companheira, sem que isso faça dele menos masculino, porque também tem homens que sofrem com esse papel”.

Mudança

De acordo com o trabalho dos especialistas em violência sexual da SVRI, nos últimos anos, as sociedades latino-americanas e caribenhas vêm experimentando importantes mudanças sócio-demográficas, que estão transformando as normas tradicionais de gênero.

No Brasil, os estudos revelaram que os homens jovens mostraram menos tolerância de todas as formas de força sexual em comparação com os homens de idade mais avançada. Da mesma maneira, as mulheres jovens da Nicarágua estão mais propensas a deixar uma relação abusiva, do que as de idade mais avançada.

Da mesma forma, os governos latino-americanos e caribenhos têm dotado suas legislações de instrumentos para combater este tipo de delitos, sobretudo após a convenção assinada na cidade de Belém do Pará, em 1994, pelos membros da (OEA).

* As entrevistas que constam na reportagem foram concedidas à repórter em 2008