“Leite e ferro”: estreia filme sobre maternidade na prisão

Estreou na sexta-feira (25) nas salas de cinema de todo o país o primeiro longa-metragem da cineasta Cláudia Priscilla. Premiado como melhor direção e melhor documentário em 2010 no Festival de Cinema de Paulínia, “Leite e ferro” aborda o tema da maternidade na prisão, especificamente no Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa (CAHMP), em São Paulo.

Por Gabriela Moncau, para a revista Caros Amigos

As presidiárias – em sua maioria encarceradas sob condenações ligadas ao tráfico de drogas – têm seus filhos e passam com eles o curto período de 4 meses atrás das grades, para a amamentação. Depois, caso os bebês não sejam recolhidos por alguém da própria família, são encaminhados a alguma instituição, abrigo, são adotados e muitas vezes nunca mais são encontrados pela mãe.

Atualmente o período de amamentação aumentou para 6 meses, mas as dificuldades estruturais para as presas que se tornam mães, bem como a falta de garantia de que as crianças serão bem cuidadas e poderão voltar para os braços maternos permanecem.

De acordo com o Relatório do Grupo de Trabalho Interministerial sobre a Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino (Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2008), apenas 20% das crianças ficam sob a guarda dos pais quando a mãe é presa, enquanto quase 90% dos filhos de presos homens permanecem sob os cuidados da mãe.

Narrativa íntima e leve

Apesar da temática pesada, o documentário narra de forma íntima e leve o cotidiano das mulheres e as suas trajetórias, retratando os bebês e as descontraídas rodas de conversa sobre sexo, solidão, crime, violência policial, religião, fidelidade e drogas.

Uma das principais personagens do filme é Daluana, apelido que recebeu por namorar o “conhecido” traficante Da Lua, com quem teve seu primeiro filho aos 14. Cresceu na rua e aos 10 anos já traficava, a primeira vez que foi presa estava grávida de novo. Passou por diversas instituições carcerárias e durante a filmagem, feita em 2007, estava pela segunda vez na CAHMP. A ausência dos dentes da frente ela explicou: os perdeu de tanto apanhar da polícia.

A diretora Cláudia Priscilla conversou exclusivamente com a Caros Amigos a respeito de suas motivações e dificuldades para a realização do documentário, a masculinização do sistema penitenciário, a política de drogas no Brasil, entre outras questões, confira:

Por que a escolha do tema da maternidade na prisão? Qual a importância de retratar essa realidade?
O que me motivou a fazer este filme foi a minha experiência com a maternidade, após o nascimento do meu filho Pedro, que hoje tem oito anos. Tive vontade de entender como essa experiência poderia acontecer em uma situação limite, tanto emocional quanto física. É importante falar dessas mulheres e tirá-las da invisibilidade. Fazer um movimento antropofágico, trazer de volta o que a sociedade excluiu.

Como se estabeleceu a sua relação com as presas e a tranquilidade para ligar a câmera?
A pesquisa é fundamental nos meus trabalhos, começo sempre com uma investigação teórica e depois vou para campo. Eu e a Lorena Delia (pesquisadora e produtora) ficamos dois meses freqüentando a instituição. Num primeiro momento conversamos com cada uma das mulheres presas separadamente e depois passávamos o dia com elas na cadeia. Nesse período criamos intimidade com as mulheres e na hora de filmar foi muito tranqüilo.

As suas curtas-metragens também abordam, de forma diferente, o tema da mulher e da sexualidade. O que te atrai nesses temas?
Escolhi retratar mulheres nos meus filmes porque é meu universo. Minhas escolhas sempre acontecem pela vontade de falar sobre alguém ou algum assunto. Fiz meu primeiro curta “Sexo e Claustro” em 2005, um documentário sobre uma ex-freira lésbica, depois fiz “Phedra” que é sobre uma atriz transexual cubana e agora lanço meu primeiro longa-metragem “Leite e Ferro”.

De um total de 326 penitenciárias existentes no país, apenas 15 são específicas para as mulheres. Nos últimos 10 anos, a população prisional feminina aumentou 261% enquanto a masculina aumentou 106%. Você tem ideia da razão desse aumento do aprisionamento das mulheres? Como você percebe a diferença do modelo penitenciário para homens e mulheres?
Não sou especialista nesse assunto, mas sabemos que a cadeia foi pensada por homens e para homens, o que não é um detalhe. Além disso, as mulheres não possuem assistência diferenciada. Pesquisas apontam que o crescimento da população carcerária está ligada ao tráfico de drogas. Dois terços das mulheres presas no Brasil são acusadas de tráfico e a maioria delas ocupa um papel secundário como pequenas traficantes dentro de um esquema muito maior.

De acordo com dado divulgado no Encontro Nacional do Encarceramento Feminino realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), das 15.263 prisões de mulheres ocorridas nos últimos cinco anos, em 9.989 (65,4%) casos a acusação é de tráfico de drogas. O que as mulheres relatavam sobre a relação delas com o tráfico e o que você pensa da legalização das drogas?
É fato que a maioria das mulheres que está na cadeia foi acusada por tráfico. O que precisamos pensar é que essas mulheres geralmente não pertencem ao alto escalão do tráfico e não cometeram crimes violentos. Sou a favor da legalização das drogas e a favor de penas alternativas para as mulheres, porque quando elas vão presas as famílias se desestruturam e os filhos se tornam as maiores vítimas disso.

O blog do filme ressalta que aproximadamente 80% das mulheres presas são mães. Como você percebe a estrutura do sistema prisional feminino para atender essas mulheres?
Acredito que os filhos são as principais vítimas nessa história. Geralmente os homens não cuidam dos filhos quando as mulheres são presas e isso pode ser um agente reprodutor de criminalidade. É necessário pensar em penas alternativas para que esses filhos sejam protegidos. No meu entender, isso seria o ideal, mas antes de qualquer coisa é preciso olhar para essas mulheres presas de uma forma mais humana, garantir um atendimento diferenciado a essa população que atenda suas necessidades.

Presas 3Você poderia contar um pouco sobre as mulheres com as quais você conversou mais? Quais histórias de vida te marcaram mais?
Conversei com quase cinqüenta mulheres durante a pesquisa e ouvi histórias diversas. A primeira pessoa que entrevistei durante a pesquisa foi a “Daluana”, fiz duas perguntas e ela falou por duas horas…. tive certeza que estava diante de alguém especial para o documentário. Ela me encantou, além do carisma tem uma história de vida incrível, ela faz parte de uma geração “romântica” da bandidagem, roubava de quem tinha e era chamada de tia Robin Hood. A Daluana teve dois filhos no cárcere.

Uma das fortes críticas que o documentário aponta é o fato de que depois de 4 meses a mulher é obrigada a se separar do filho, e muitas vezes não consegue voltar a vê-lo. Você chegou a presenciar alguma separação? Como foi?
Uma coisa mudou desde a produção do filme até aqui, agora a legislação prevê um mínimo de seis meses, mas isso não é suficiente. Presenciei uma separação e foi terrível, é uma ato trágico, uma ruptura na vida de duas pessoas: a mãe e o filho. É preciso repensar essa situação, a criança e a mãe devem ter o direito de, ao menos, se encontrarem para não perderem os laços que constituíram durante o período em que estavam juntos. Precisamos de investimento na construção de unidades prisionais femininas, com creches e berçários.

Hoje o CAHMP já foi desativado há um ano e as presas foram realocadas. Você sabe qual a situação que elas estão atualmente?
Pelo que sei, elas estão provisoriamente em centros hospitalares, a maioria está no antigo complexo Carandiru. Isso gera ao menos duas inquietações, a primeira é que essas mulheres não estão doentes e precisam de um lugar apropriado para amamentarem seus filhos, e não de um hospital. A segunda é que elas estão ocupando leitos de outras detentas doentes precisando de cuidados médicos.

Como era a ligação das presas com o PCC ou outras organizações criminosas?
Quando fizemos o filme em 2007 só duas mulheres eram do PCC e não quiseram participar do filme.

Quais são seus próximos projetos?
Eu e Kiko Goifman (que é meu marido) dividimos a direção do longa “Olhe Pra Mim de Novo” que está sendo exibido em festivais e foi selecionado para o Panorama do festival de Berlim de 2011. Além disso, vou dirigir um curta ficção com Pedro Marques (que fez fotografia e montagem do “Leite e Ferro”) com o cartunista Laerte.