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A gente precisa deixar de ter medo do câncer, diz epidemiologista

“O câncer é uma doença crônica, tratável. Então, em vez de a gente se afastar do médico, achar que está condenado, a gente tem é que se aproximar, entender que a doença não é mais um bicho de sete cabeças”, diz a epidemiologista do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), Marceli Santos.

Por Joana Rozowykwiat

Marceli alerta para importância de prevenção e diagnóstico precoce / Foto: R7

Marceli é cordenadora da equipe que desenvolveu a estimativa 2012/2013, que prevê um aumento de 518 mil casos de câncer no país no ano que vem. E, nesta entrevista ao Vermelho, explica que o estudo tem o objetivo de orientar os gestores públicos para que eles se preparem, elaborando políticas de saúde voltadas para o atendimento da população e o combate à doença.  

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De acordo com o Inca, o Ministério da Saúde vai fechar o ano de 2011 com investimentos de R$ 2,2 bilhões para a área de atenção oncológica. Em 1999, esse valor não chegava aos R$ 500 milhões, diz o instituto. O aumento de recursos serviu para ampliar e melhorar a assistência aos pacientes atendidos nos hospitais públicos e privados que compõe o SUS, sobretudo no que diz respeito aos cânceres como os de fígado, mama, linfoma e leucemia aguda.

A quantidade de procedimentos oncológicos oferecidos aos pacientes do SUS aumentou em 41%. Foram 19,7 milhões em 2003, e a projeção para até o fim do ano é de 27,8 milhões de procedimentos.

Segundo Marceli, o governo federal tem investido na estruturação de unidades para tratar o câncer, mas, como a demanda está aumentando, propiciar tratamento para todos é sempre um desafio, avalia.

Nesse sentido, ela chama atenção para a importância da prevenção e do diagnóstico precoce. “Algumas lesões podem demorar vinte anos até se transformarem em uma doença maligna. Então, com uma visita regular ao médico, é possível tratar e curar essa lesão, antes disso”, alerta.

Dados do Inca apontam que o Ministério da Saúde destinou cerca de R$ 261 milhões a ações de prevenção ao câncer de mama e de colo de útero este ano. Veja abaixo a entrevista.

Portal Vermelho: O que o aumento do número de casos de câncer significa do ponto de vista da saúde pública?
Marceli Santos: O propósito da estimativa realizada pelo Inca é justamente trabalhar essa questão: o câncer é um problema de saúde pública e a cada ano devem surgir aproximadamente 520 mil casos novos de câncer. Essa estimativa tem o objetivo específico de mostrar para o gestor qual é o perfil do câncer na sua região, na sua cidade, no seu estado, para que ele possa gerenciar melhor os seus esforços, os seus recursos, no sentido de preparar as suas unidades, a sua estrutura de saúde, para atender a esses casos.

Além disso, a gente sabe que os principais cânceres (mais incidentes) têm um componente grande de prevenção. Então, na medida em que a gente vê que há um determinado perfil populacional, as pessoas podem ser estimuladas a trabalhar a prevenção, principalmente em relação ao tabagismo, mas também no que diz respeito a fazer exercício físico e cuidar da alimentação.

Vermelho: Os cânceres mais comuns (pele não melanoma, próstata, pulmão, cólon e reto, estômago, mama e colo do útero), se detectados logo no início, têm grande chance de cura, não é?
Marceli Santos: Noventa por cento das pessoas que têm câncer de pulmão são associadas ao tabagismo. Já o câncer de colo do útero é relacionado ao HPV (vírus do papiloma humano). Uma lesão desse tipo pode demorar vinte anos até se transformar em uma doença maligna. Então, com uma visita regular ao médico, é possível tratar e curar essa lesão, antes disso. Com o câncer de mama também, quanto mais cedo descobrir, mais fácil curar.

O resumo da história é: você não deve deixar de ir ao médico. Pelo menos uma vez por ano deve visitar o médico para fazer exames, se cuidar. A população deve ter esse hábito, principalmente depois de uma certa idade.

A gente precisa tirar o medo do câncer, o estigma da doença. O câncer é uma doença crônica, é tratável. Então em vez de a gente se afastar do médico, achar que está condenado, a gente tem é que se aproximar, entender que não é mais um bicho papão.

Vermelho: Há razões específicas para haver uma incidência tão grande desses tipos de câncer?
Marceli Santos: Em relação ao câncer de pele, a gente sabe que é porque temos uma população aqui que se expõe muito ao sol, inclusive por lazer. E o câncer de pele é de fato mais incidente no mundo todo, apesar de ter baixa letalidade. Os outros tipos de câncer, que passaram a ser mais incidentes no Brasil, como o de próstata, mama e intestino, são associados mesmo ao envelhecimento da população. Recentemente, o IBGE divulgou que a expectativa de vida aumentou e, à medida que isso ocorre, a chance de a gente ter algum tipo de doença relacionada à idade avançada, aumenta. E o câncer está entre uma delas.

Vermelho: Além do envelhecimento, que outros fatores estão fazendo com que os brasileiros adoeçam mais de câncer?
Marceli Santos: Pode parecer estranho, mas com a urbanização, as pessoas passam a ter uma vida mais sedentária, sem atividades físicas, se alimentam de uma forma pior, comem menos frutas, menos legumes. E, nesse ambiente urbano, as pessoas deixam de morrer precocemente, tomam mais vacinas, e envelhecem. Têm mais tempo então (para desenvolver a doença).

E alguns tipos de câncer, como o de mama ou o de intestino, estão bem associados a essa questão urbana, à mudança de estilo de vida, à opção da mulher de ter filhos mais tarde ou de não ter filhos, à questão de a população comer mal, ser sedentária. Isso está muito associado à questão da urbanização. São coisas que caminham juntas. Além da idade, a gente tem essas questões associadas ao desenvolvimento.

Vermelho: Hoje o país está preparado para enfrentar esse aumento do número de casos?
Marceli Santos: O que a gente sabe é que, se olharmos para o passado, existe toda uma preocupação e uma estruturação de unidades para tratar o câncer, unidades especializadas, e existe uma área aqui no Inca que trabalha só com essa questão de avaliar essa capacidade, estimular a implantação de novas unidades de atenção oncológica e a gente tem tentado aumentar e interiorizar as opções.

A gente sabe então que aumentou o acesso ao tratamento do câncer, mas também que isso é sempre um desafio, exatamente porque que a cada ano cerca de 500 mil pessoas entram novamente nessa conta, então é preciso aprimorar isso cada dia mais. Mas não sou especialista nessa área. Minha tarefa é mostrar o tamanho do problema.

Vermelho: Já é possível perceber algum impacto da prevenção nas estatísticas do Inca?
Marceli Santos: Esse estudo específico (Esatimativa 2012/2013) faz uma fotografia, não trabalha com comparações. Mas a gente tem outro estudo, que fizemos ano passado, no qual vimos que, em alguns locais, especialmente capitais, já há uma série histórica para a gente observar. E o que percebemos é que o número de carcinomas invasores de câncer de colo de útero, por exemplo, tem diminuído. E podemos inferir isso para o Brasil, de forma geral, porque a mortalidade tem o mesmo comportamento. E isso é reflexo das políticas de prevenção.

A mesma coisa ocorre com câncer de pulmão em homens. Hoje, no Brasil, e mais expressivamente em algumas capitais, você vê uma queda da mortalidade de homens por câncer de pulmão. Já existe uma evidência de queda. Ainda não é uma queda expressiva, como já vemos em países como os Estados Unidos, mas já é uma evidência de queda. E isso também pode ser creditado aos programas de controle do tabagismo.

Vermelho:
Nos últimos anos, tem se fechado o cerco contra o cigarro…
Marceli Santos: A gente tem que entender que há uma coisa que se chama latência no câncer. Hoje, a gente está olhando uma mortalidade de um quadro de quase vinte anos atrás. A epidemia tabágica nos homens ocorreu lá pelos anos 50, 60, e hoje vemos reflexos na mortalidade. A política de controle do câncer tem pelo menos vinte anos. Então o que percebemos é que, nos homens, há essa redução na mortalidade.

Nas mulheres, ainda não. Elas começaram mais tarde a fumar, e a mortalidade nas mulheres ainda está aumentando, como reflexo disso. Essas estratégias mais recentes vêm para corroborar essas políticas mais antigas e, de fato, temos percebido que a prevalência do tabagismo tem diminuído.

Vermelho: Muito se fala do peso da alimentação no que diz respeito ao câncer. Agrotóxicos, hormônios e carne vermelha, por exemplo, têm de fato relação muito próxima com o desenvolvimento da doença?
Marceli Santos: Essa questão da alimentação tem a ver, sim, principalmente no que diz respeito ao consumo de muita carne vermelha com gordura, embutidos e defumados. Esse tipo de alimento devemos evitar. Por exemplo, para câncer de intestino já existem estudos que mostram que um fator protetor contra a doença é comer frutas e legumes, e que devemos evitar carne vermelha e embutidos e fazer atividade física, porque são elementos que têm bom fator de proteção.

Vermelho: Um estudo do Inca de 2009 afirmava que os homens teriam mais chances de ter câncer que as mulheres. E a probabilidade de morrerem também seria maior. Mas, de acordo com a Estimativa 2012/2013, o número de mulheres que devem desenvolver a doença é um pouco maior que o de homens. Por quê?
Marceli Santos: Com relação à incidência, a gente vê que o número de casos em homens e mulheres é muito próximo, mas a gente sabe que a maior mortalidade por causa do câncer é em homem.

Mas, nas mulheres, a questão é que os tumores de mama estão associados à terceira idade e são os mais incidente no Brasil e no mundo. E, como a gente sabe que as mulheres vivem mais, principalmente na faixa etária acima dos 60 anos, que é quando surge esse tipo de câncer, isso talvez explique porque temos um número muito próximo de casos novos em homens e mulheres. Na verdade, a gente tem mais mulheres expostas ao risco. A população idosa, mais exposta ao risco, é composta de mais mulheres.

Vermelho: O número de jovens com câncer também está aumentando?
Marceli Santos: O estudo não faz esse recorte por idade. Mas a gente tem na nossa página do Inca alguns pontos do país em que há análise dessa distribuição. Em São Paulo, por exemplo, há. Mas eu posso te dizer que câncer infantil é muito semelhante no mundo todo. O que sabemos, em comparação com estudos internacionais, é que existe um aumento nas leucemias, mas bem lento e progressivo. Talvez até porque nós passamos a contar a adolescência até os 19 anos.

Na verdade, eu acho que há até uma redução na incidência nessas faixas etárias mais jovens, porque a gente tem vencido esse desafio de tratar o câncer de colo do útero nas meninas e, com a prevenção, não chegamos a ter o carcinoma invasor de colo de útero que é justamente o que acomete as mulheres mais jovens.