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A invenção do "esporteduto"

2. A política das denúncias: a tese de que o PCdoB teria criado um "esporteduto"

No jargão jornalístico, retranca é uma espécie de símbolo para identificar um determinado assunto que se está, como se diz, “cobrindo” com diversas matérias, de diversas formas. Assim, as matérias de O Estado de S. Paulo sobre as denúncias contra o Ministério do Esporte tiveram, por certo tempo, a retranca “Esporteduto”.

No editorial do jornal publicado na edição de 2 de novembro, pode-se extrair uma definição do que o jornal considerava ser o “esporteduto”: “Desde que, em 2003, o PCdoB de Orlando Silva e Aldo Rebelo foi premiado pelo então presidente Lula com o Ministério do Esporte, pelo menos 41 ONGs ligadas à legenda receberam recursos públicos para a execução de programas da pasta. O grosso do dinheiro ou foi desviado pelos controladores das ONGs de fachada ou, a julgar pelas denúncias que derrubaram Orlando Silva, carreado para o caixa 2 do ‘partido do socialismo’”. Essa avaliação seria, em princípio, provada com a série de matérias batizada com o nome de “Esporteduto”. As matérias, no entanto, estão longe de constituir essa prova.

Tome-se, por exemplo, a reportagem da edição de 1º de novembro com o título de “Esporte dá dinheiro para entidade que contrata consultoria do PCdoB”, com a apresentação que diz: “Dirigentes do partido reempossado hoje na pasta [a referência é a posse de Aldo Rebelo em substituição a Orlando Silva] receberam R$ 825 mil de confederação contratada quando um deles, Júlio César Filgueira, ainda trabalhava na Esplanada e foi o responsável pela assinatura de dois convênios com essa mesma associação”.

Logo em seu início, o texto diz o que se supõe estar sendo provado: “A engenharia dos repasses e as relações entre os envolvidos indicam a formação de um circuito fechado que começa nos gabinetes apoderados pelo PCdoB na Esplanada e acaba na empresa dirigida pelos quadros do partido”. Numa grande ilustração no meio da matéria são reproduzidos trechos de documentos acompanhados de legendas que revelariam “o esquema”. Os documentos são quatro:

• dois deles, de convênios entre o Ministério do Esporte e a Confederação Brasileira do Desporto Universitário (CBDU) – um de aproximadamente R$ 1,2 milhão, assinado em 2009, e outro de R$ 2,1 milhões, assinado em 2011;

• o terceiro, de 8 de agosto de 2011, é uma declaração da CBDU anunciando a Casa de Taipa Comunicação Integrada, Propaganda e Marketing Ltda. como vencedora de um processo de contratação, referente aos R$ 825 mil embolsados pela empresa de propriedade dos citados dirigentes do PCdoB;

• e o quarto contém dois trechos de uma Ficha Cadastral Simplificada, da empresa Casa de Taipa Comunicação Integrada, Propaganda e Marketing Ltda., obtida da Junta Comercial do Estado de São Paulo, nos quais se lê a data de constituição da firma, 17 de dezembro de 2009, e o nome de Júlio César Filgueira, que seria um de seus administradores e representante de duas outras empresas – aparentemente, as controladoras da Casa de Taipa.

Qual seria o “circuito fechado” que levaria dinheiro público da Esplanada para os cofres do PCdoB? Pode-se dizer que esse “esquema” está apenas nas intenções manifestadas no editorial do Estadão. A matéria não prova nada disso. O texto pretende provar que Filgueira assinou o contrato de R$ 1,2 milhão com a CBDU em 2009 e, em 2011, já como dono da Casa de Taipa, junto com outro dirigente do PCdoB, pegou R$ 825 mil, quase 75% dessa grana, para o partido.

Mas a investigação feita passa longe de questões essenciais. Não há, no texto, qualquer detalhamento do que seria a CBDU, entidade brasileira fundada em 1939 e que desde 1998 administra o esporte universitário do país. Nas minúsculas letras em que é feita a reprodução dos documentos – embora não no texto da denúncia do jornal – se pode ver que o dinheiro dos convênios foi repassado para a entidade participar de duas Universíades – jogos mundiais universitários. O montante referente ao convênio de 2009 custeou a ida da CBDU à Universíade de Belgrado, na Sérvia, com uma delegação de 175 pessoas, e o convênio de 2011, para os jogos em Shenzen, na China – os dois eventos com 13 dias de duração. Uma rápida pesquisa que O Estado poderia ter feito mostraria que, de fato, o Brasil compareceu aos dois eventos: a Belgrado, com uma delegação de 129 pessoas, junto com mais 144 países, e a Shenzen, com 210 atletas e mais 148 países.

O contrato de R$ 825 mil da CBDU com a Casa de Taipa, isso o texto explica, é para outra tarefa: a promoção da cidade de Brasília para que seja sede da Universíade de 2017. E vem de outra fonte: o governo do DF, dirigido agora pelo ex-ministro do Esporte Agnelo Queiroz, que assinou contrato de R$ 2,8 milhões para a CBDU promover o DF como sede dos mesmos jogos, na onda esportiva que fará o Brasil sediar a Copa das Confederações em 2013, a Copa do Mundo de 2014, a Copa América de 2015, a Olimpíada de 2016 e, no caso, a Universíade de 2017.

Quem quisesse, de fato, fazer uma mínima investigação dos eventuais malfeitos nos convênios teria feito também, no mínimo, essa pesquisa. E poderia concluir que parece razoável que R$ 1,2 milhão tenham sido gastos, de fato, em despesas com uma viagem de 175 pessoas a Belgrado para disputar a Universíade, que é considerada por muitos a terceira maior competição esportiva internacional. E que R$ 2,1 milhões tenham sido gastos pela CBDU na Universíade de Shenzen. Poderia concluir também que há irregularidades. No contrato era prevista uma delegação brasileira de 175 pessoas para Belgrado e, a se crer em informações da internet, foram apenas 129. Poderia pedir ao Ministério do Esporte os dois convênios para consulta. Os dados são públicos. O governo está trabalhando para tê-los, inclusive, na internet, com cada passo de sua execução.

Em vez disso, o Estadão montou – ao que tudo indica, a partir essencialmente de suas posições editoriais apenas – o “esquema” do “circuito fechado” que teria levado dinheiro do Ministério do Esporte para dirigentes do PCdoB. O repórter leu, durante todos os dias do calvário de Silva, todas as denúncias de escândalos no Ministério do Esporte dos quatro grandes jornais e quatro grandes revistas sobre o assunto. A impressão que tem é que todas são mais ou menos como essa do Estadão: chegam a conclusões muito além dos fatos observados. Uma exceção é uma denúncia da Folha de S. Paulo que mostra, com precisão, que o segundo convênio assinado por entidade controlada por Ferreira ocorre alguns meses depois de o primeiro já ter sido considerado completamente fora dos termos acordados, o que, para o repórter, significa, no mínimo, falta de controle no ministério.