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Para onde caminha a América Latina?

Especialistas fazem um balanço dos acontecimentos na América Latina e debatem os próximos passos da região, em texto publicado pela Adital. Entre outras bandeiras, a luta por terra e trabalho deverão estar em relevo nos diversos países latino-americanos, inclusive no Brasil, onde as fontes reconhecem que houve avanços. Mas é preciso avançar mais. O Vermelho reproduz a íntegra da matéria.

Um barril de pólvora prestes a explodir. Por vezes, essa é a definição adotada com relação à América Latina e ao cenário das lutas sociais na região. Conhecida pela pobreza, gritante desigualdade social, ditaduras militares na década de 1970, ingerência de países ricos, com suas políticas neoliberais, também é bastante lembrada por seus povos aguerridos, de resistência heróica.

Nesse início de década, cabe perguntar: para onde caminha a América Latina? Há um mosaico de fatores que torna o quadro bastante complexo. Por um lado, fala-se na ascensão de governos considerados de esquerda na última década; por outro, permanece a questão social, a pobreza, acima de tudo, acompanhada por megaprojetos de infraestrutura, "guerra” ao narcotráfico – que já vitimou mais de 40 mil mexicanos(as) desde 2006 – e a constante luta pela terra.

Para o professor do departamento de Economia da Universidade Federal de Santa Catarina, Nildo Ouriques, o grande desafio que se apresenta à região é "aprofundar grandes transformações feitas pelos programas do nacionalismo revolucionário”, entre os quais ele situa Venezuela, Bolívia e Equador. "Se não fizerem isso, a direita vai reascender; tem que aproveitar essa correlação de forças favorável, com a crise estrutural do capitalismo, agora é hora de avançar”, alerta.

Por sua vez, o coordenador do Grito dos Excluídos Continental, Luiz Bassegio, considera que houve avanços nos processos de participação popular e nas condições de vida dos povos, porém, ressalva, não foram realizadas mudanças estruturais profundas. "É preciso continuar avançando e os movimentos sociais apoiarem mais os governos que caminham nesta direção, ainda que sem perder uma visão crítica, sem cooptações e tendo no horizonte um objetivo estratégico que é o de construir uma sociedade justa, fraterna”, aposta.

No mesmo sentido, o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, Eliel Machado, pondera que as questões fundamentais das camadas oprimidas – sociais e econômicas – não foram plenamente resolvidas, contudo, as lutas anteriores servem de exemplo. "Com os eventuais erros e as conquistas pontuais, estes movimentos podem avançar mais ainda em direção a transformações mais substanciais”, explica.

Sobre os governos considerados de esquerda, aos quais se atribui boa parte das mudanças e sobre os quais também pesam conflitos com os movimentos sociais e acusações de restrição a liberdade de expressão, Eliel pede cautela. Ele defende que não se deve aplicar o mesmo adjetivo aos governos Lula, Chávez, Morales e Correa.

"Têm diferenças entre si, não só pela composição político-eleitoral de cada um em seus respectivos países, como também de cunho ideológico”, ressalta. O pesquisador cita, por exemplo, que o governo Lula não avançou na reforma agrária no Brasil, diferenciando-se da gestão anterior de Fernando Henrique Cardoso apenas por investir um pouco mais de recursos nos assentamentos já existentes.

Já Nildo Ouriques considera que estas gestões puseram o socialismo novamente em pauta. "Agora precisam avançar rumo a um socialismo comunal, abolindo o Estado burguês, o que vai depender da luta de classes, dos impactos da crise estrutural por aqui e da radicalização dos movimentos sociais, conjunto de fatores variantes de um país para outro”, assinala.

Questão social

Lançado em 1971, o livro As Veias Abertas da América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano, configura-se ainda de uma dolorosa atualidade. Em um prefácio escrito na década de 1990, Galeano expõe: 120 milhões de crianças "no centro da tormenta”, 50 milhões de desempregados ou subempregados, 100 milhões de analfabetos, a metade da população apinhada em moradias insalubres e uma produção de alimentos menor do que antes da última guerra mundial.

Essa realidade persiste. Segundo Nildo, 62% da população da América Latina é pobre e é esta condição a causadora de problemas sociais na região. "A violência está posta historicamente, não vem do tráfico; a questão da migração sempre existiu, a pobreza é que está na raiz desses problemas, que são apenas decorrentes dela”, sustenta.

De mesma opinião, Eliel considera que a luta por terra e trabalho deverão estar em relevo nos diversos países latino-americanos. "As desigualdades sociais continuam gritantes na região, inclusive no Brasil, não obstante toda a propaganda oficial em sentido contrário. O capital financeiro permanece hegemônico e ditando as políticas estatais”, aponta.

Já Bassegio realça os megaprojetos, que no caso do Brasil se somam aos megaeventos (Copa do Mundo de Futebol em 2014 e Olimpíadas em 2016). Como consequências, desalojamentos em massa e agressões ambientais, afetando milhares de pessoas, provocando mudanças climáticas e o aquecimento global.

Outro ponto importante, na visão do militante, são as migrações, "que obrigam a milhões de pessoas a estarem continuamente em movimento segundo os interesses do capital, submetendo-as à exploração no trabalho, sendo muitas vezes traficadas e sem acesso aos direitos”.

Diante de tudo isso, no entanto, os povos latino-americanos persistem. Movimentos comunitários, de mulheres e trabalhadores representam um alento e esperança. Entre estes, os indígenas parecem assumir um papel de destaque a cada ano, trazendo para a pauta a questão ambiental, o respeito à Pachamama, colocando-se contra petroleiras, hidrelétricas, mineradoras etc.

"Questionar ideia de que desenvolvimento vai dar um lugar ao sol para eles e mostrar que é possível uma outra relação”, opina Nildo, sobre o papel indígena. Para Bassegio, a maior contribuição está no questionamento da ordem capitalista.

"Buscam não uma sociedade de consumo desenfreado, mas um modo de viver onde todos tenham o necessário para viver dignamente em harmonia com a natureza”, frisa.

Crise econômica

A crise estrutural do capitalismo, iniciada em 2008 nos Estados Unidos, atinge duramente este país e a Europa. No velho mundo, a sociedade desperta, mobilizando-se de uma maneira há muito não vista. Para a América Latina, resta uma certeza: a crise já chegou a alguns países e em breve baterá à porta dos que ainda se consideram a salvo. Esta deverá ser, na opinião de pesquisadores e militantes, uma conjuntura definidora, em que governos mostrarão, de fato, a quem servem.

Para o professor Nildo, a crise "acabará com o período ingênuo de otimismo e eliminará as ambiguidades”. Os projetos alinhados com as elites tentarão cortar conquistas sociais.

"Na visão da classe dominante ela (a crise) será superada mediante o ataque, o corte de direitos sociais. Este é um grande desafio para os movimentos sociais diante da crise: garantir os direitos já conquistados, ampliar o acesso aos mesmos, conquistar novos direitos e universalizá-los”, reflete Bassegio.

Na outra ponta, a resistência ficará por conta das camadas oprimidas. "Tudo isso vai depender, por outro lado, da capacidade de resistência dos setores populares, o que envolve formação política, organização social e combatividade ideológica em tempos difíceis”, avisa.

Fonte: Adital