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Mídia troca bom pelo ruim quando fala em economia

Em artigo publicado no portal Terra desta quinta-feira (29), o linguista Sírio Possenti, professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp, mostra como a mídia age para trocar o sentido das coisas e fazer com que o leitor interprete um dado positivo como negativo.

Leia a seguir a íntegra do artigo:

Argumentação, orientação

Quando conheci as teses de Ducrot sobre semântica, fiquei abismado. Finalmente, alguém tinha proposto uma teoria do sentido que evitava as explicações da lógica (que funciona segundo regras diferentes e próprias) e, ao mesmo tempo, era rigorosa, isto é, não subjetiva (ser ou parecer subjetiva é um vício que se aponta, em geral por ignorância, nas teorias não formais).

Por Sírio Possenti

Sua tese básica era que qualquer coisa que se diga é argumento para uma conclusão. Ou seja: o sentido de um enunciado é aquilo para o que ele aponta (brinca-se um pouco com a palavra "sentido", que significa também orientação, como em "sentido norte"). Se estou procurando uma casa e o corretor diz que ela é grande, este é um argumento para que eu fique com ela. Se respondo que é cara, é um argumento para eu não ficar com ela (nem preciso dizer "não quero / não posso pagar").

Um elemento "subjetivo" desta interpretação tem a ver com o fato de que julguemos que casas grandes são boas e pequenas são ruins. É um dado da cultura, da ideologia. A interpretação adequada mostra que os interlocutores falam no interior de um universo cultural relativamente partilhado.

Um dos exemplos comentados era o do copo meio cheio / meio vazio, que quase todos os comentaristas, os econômicos e os esportivos, repetem. O que Ducrot queria dizer é que importa pouco o que significa objetivamente "copo meio cheio / meio vazio", expressões que poderiam ser sinônimas, se fossem apenas descritivas. Ou seja, não importa que o copo contenha metade do líquido que pode conter. O que importa é se o discurso vai na direção do copo vazio (estamos bebendo) ou se vai na direção do copo cheio (estamos enchendo). "Ainda tem meio copo" e "Já bebemos meio copo" informam sobre a mesma quantidade de bebida, mas uma das falas deixa os bebuns tranqüilos, enquanto a outra os deixa alvoroçados…

Me lembrei dessas teses, que estudei há 30 anos, quando ouvia o noticiário sobre emprego / desemprego na semana passada. No dia 20, o IBGE liberara dados sobre novos empregos em novembro. Cito uma das notícias:

"O Brasil registrou a criação de 42.735 vagas com carteira assinada em novembro. Este é o pior resultado do ano e o pior mês de novembro desde 2008, quando houve fechamento de 40.821 postos de trabalho. Os dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) foram divulgados nesta terça-feira (20) pelo Ministério do Trabalho. Na comparação com novembro de 2010, o resultado foi 69% menor, quando foram gerados 138.247 postos de trabalho. Em relação a outubro, segundo o Ministério do Trabalho, houve redução no ritmo de crescimento do emprego –quando foram criadas 126 mil vagas, queda de 66% na geração". (as ênfases são minhas, e destacam bem explicitamente o lado negativo da notícia).

Agora, vejamos uma informação que circulou dois dias depois:

"O número de pessoas desempregadas, nas seis principais regiões metropolitanas, ficou em 5,2% em novembro. A taxa é a menor desde 2002".

Quem lê as duas conclui que as notícias informam que houve um bom número de empregos novos. A diferença é que a primeira insiste na comparação com meses ou anos anteriores. Assim, seu sentido é que a coisa piorou. A segunda não exclui a primeira, mas seu sentido é que a coisa melhorou, há tempos não estava tão boa.

Entre parênteses: os locutores e comentaristas estavam felizes no dia 20, dando uma notícia ruim; e estavam chateados no dia 22, dando uma notícia boa (noblesse oblige). Parece estranho? Não deveria ser o contrário? Ora, não sejamos Cândidos!

O que quero dizer? Só que, com o mesmo dado, pode-se enfatizar seu lado positivo ou o negativo. Pode-se expressar otimismo com uma redação como "apesar da crise, o Brasil criou 42 mil empregos em novembro. Embora o número seja menor que o do mês anterior, ele seria comemorado na Espanha". E pode-se apresentar o bom dado sobre desemprego como uma praga: ainda há mais de 5% de desempregados. Traduzindo em números, a coisa fica ainda mais feia: são milhões, como o número de favelados, conforme informação de alguns dias depois (é há um implícito, que nem os jornalões precisam repetir: desemprego de 6% não é desemprego, segundo as "boas" medidas econômicas dominantes).

Só quero dizer que a mídia não precisa mentir para ser de oposição ou de situação. Basta carregar as tintas de um dos aspectos da notícia. A seleção brasileira caiu no ranking da Fifa? Isso é ruim. Mas está na frente da Argentina, o que é bom…

PS – O ano está acabando: versão pessimista. Outra está para começar: versão otimista. Desejo aos leitores que sua vida melhore (ainda mais). Desejo isso especialmente aos que lêem sempre outra coisa nas colunas: eles sofrerão menos.

Sírio Possenti é professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso, Língua na Mídia e Questões de linguagem. Título do Vermelho