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Mal-estar

Por Marco Albertim

foice e martelo

Judite entrou em minha casa sem avisar; tinha licença para isso, posto que seu coração, no embrulho, dividira-se entre o meu terraço e o quarto de sua casa. Não disse uma palavra; não tinha por que dizer, porquanto o rosto se mostrou prenhe de rogo. Sentou-se no chão do terraço, encostou as costas na parede. Queria chorar, conteve a lágrima a custo; na penúria de sua alma, seria demais entrar sem aviso, expor uma chaga a quem nunca a espiara sem tirar a vagueza dos olhos. Ainda assim, arrisquei a perguntar-lhe o que ocorrera. Manteve-se calada. Para não contrariá-la, não me mostrar em desagrado, disse que ficasse à vontade com sua dor; isso mesmo, com sua dor, visto que nos olhos perdera a crença em santos, credos; se ouvisse uma reza, o pranto precipitar-se-ia tão abundante quanto a descrença.

O marido ficara em casa. Por certo não a segurara, não tivera argumento para se mostrar marido inteiro.

Ela continuou me olhando. Temia, eu, ouvir uma confissão súbita; um rogo de amor cuja entrega seria um sacrifício. Podia chamá-la para perto de mim, segurar sua mão, um afago nos cabelos. Os olhos fundos de desespero impeliram-me para ela; o mesmo desespero grudou-me à rede onde estava deitado. Levantei-me, fui para o quarto, liguei a televisão. Chamei-a. Deitei-me, ela sentou-se de lado, no chão, com as costas no lado da cama. Deus do céu! Ela está só comigo, a cama é de casal, as paredes são tão frias que dão impulsos de insurgência. Acode-me, no entanto, a frigidez com que a vi juntar-se a Genaro.

Não gosto do noticiário no televisor, mas prendo-me ao que diz o apresentador, fingindo crédito nas suas palavras. O fingimento é tão tênue quanto os vagos olhares que votei, voto a Judite. Ela juntara-se a Genaro no limite de sua solidão; juntar-se-ia ou nunca teria outro. Creu-se tão feliz quanto ele, também no difícil equilíbrio entre se manter com a mulher que o rejeitara, e a aparição de Judite; ela só, descasada, com rudimentos de cultura, quase aposentada no trato com alunos do curso primário.

Tive estima por ela, o bastante para sustentar uma conversa de duas horas sob uma palhoça na beira do mar. Inda que descaísse para um assunto insosso, cobrindo-o de um interesse postiço, suportei-a na justificativa do sopro do vento, no sorvo da cachaça, como um opiófago. Cedo mostrou seus limites, cedo criei fastio.

Quer água? – perguntei. Disse que sim, ela, sem abrir a boca, com os olhos e os ombros descaídos. Não bebi a água na cozinha, trouxe meu copo e o dela cheios. Beber água em companhia de alguém é socorrer-se das recusas do dia.

Senti alívio quando a vi casada, mesmo suspeitando da curta duração do consórcio. Ele, Genaro, queimara a energia da juventude no fogo da luta de classes; testemunhou soldados baionetando amigos na avenida. Muitos anos com insônia, pesadelos. Foi negligente. O inimigo infligiu-lhe perdas. Ele não procurou entender o prejuízo dos fatos. Para quê? Todos em desvantagem!… Caiu no desvão. Ganhou dinheiro como comprador de indústria, ganhou além da conta. Casou-se. Casa com piscina, churrascos abundantes. Na sala, imagens barrocas para preservar o fino gosto do intelectual… Com vagas lembranças do credo marxista. Encheu-se de costumes mundanos. A mulher, professora com hábitos de madame reclusa, recusou-o devagar, rejeitou-o de vez.

Quando se mudou para a casa de Judite, ele esqueceu alguns livros de que fizera uso na juventude. A mulher, a primeira, para enterrar a memória do casamento, deixou-os no portão do ex-marido; jogou-os no portão.

Deu-me todos eles, Genaro; como um derrotado de guerra, entregou os despojos ao inimigo; entregou sem que lhe pedisse.

Ela estava ainda sentada no chão, cambada, tão mole quanto os pensamentos do marido que não tivera assunto para mantê-la junto. O noticiário no televisor mostrou-se mentiroso, infundado, feito a crença de Genaro no socialismo. Na última vez que a proclamara, o Savoy tinha meia dúzia de garçons servindo chopes, coxinhas; correndo, os garçons, para satisfazer o apetite da derradeira célula comunista no centro do Recife.

– No passarám! – teria gritado Genaro, urdindo uma leva de militares na avenida Guararapes.
Os militares não passaram, não saíram do quartel, não àquela altura. Ele sorveu a bebida crendo-se vencedor. Os amigos baionetados tombaram. Ele sobreviveu, creu-se vencedor.
Genaro virou um réptil. Sua mulher, Judite, não sabia disso, inda que o visse arrastando a perna peca, da artrose nunca cuidada. Agora, tem de seu lado um amigo do marido, um arremedo de amigo; a crença de que sou amigo convém, porquanto é útil a seus propósitos de acudir-se em mim. Olho para o relógio, os ponteiros se acumpliciam à moleza trazida por ela. Se eu a tocar, absorvo os miasmas de seu marido. No esforço de se livrar das quizilas, ela respira ruidosa. Sinto o cheiro de Genaro; é um cheiro asqueroso, quase um fedor; igual a seu elogio a Fujimori. Ela quer falar, confessar que cometera um erro ao se casar com Genaro. Não quero ouvir, conheço o perfil de seu marido, tenho de cor o código genético dele.

Com o fim do noticiário, ela vai sair. Desligo a televisão, vou para o terraço. Ela me segue, segue-me como uma cadela submissa. Não tem ideia de que o embrulho de sua cabeça instalou-se no meu estômago. Na altura, não sou soberano no usufruto da casa; acompanho-a, assisto-a na enfermidade.

Genaro transpira como um mefítico. No caminho de sua casa para a minha, Judite, ligeira, suara, sua o suor dele. Está sentada de novo, olhando para mim, rogando solução. Não tenho solução para o seu caso, quero dizer. Genaro, na mutação das idéias, tornara-se um refugo. Ela não o conhecera na juventude, não o vira no meio do povo, educando para libertar; não assistiu a sua lenta mutação. Conheceu-o cavoucando a história de militantes que, como ele, transmutaram-se; era a busca de congêneres.

Juntara-se ao verme, Judite. Cansou-se sem nunca ter sido mulher com o sentimento do mundo. Quero me ver livre dela, para o gozo do juízo que tenho do renegado.
Por fim, diz a única palavra que me disse naquele dia:

Desculpe…